Um mesmo juiz ameaçado em Alagoas e no Paraná. “Esse juiz pensa o quê, vou colocar dinamite e vou explodir a casa dele”
Foi por meio de uma conversa de bar que o juiz Ferdinando Scremin Neto ficou sabendo de um plano para matá-lo em 2013. Ele atuava na Vara Criminal de Palmeira dos Índios, cidade alagoana onde viveu o escritor Graciliano Ramos. Segundo o CNJ, o estado de Alagoas está no topo quando o assunto são juízes ameaçados: lá, a cada mil, 47 estavam nessa condição em 2017.
Alguém ouviu um homem dizendo que dez indivíduos já estavam na cidade prontos para cometer o crime e avisou a imprensa local, que repassou a notícia ao juiz. O assassinato era tramado pelo familiar de um traficante preso por determinação de Scremin Neto.
A gravidade da situação fez com que ele solicitasse a proteção de uma escolta, que o acompanhou por um ano e meio até que deixasse Alagoas para voltar ao Paraná. A decisão, diz, foi motivada pela vontade de retornar ao seu estado natal, mas também teve um incômodo com o contexto de risco em que vivia.
Seguido por dois policiais militares 24 horas por dia, ele passava a semana em um apartamento em Palmeira dos Índios, mas sua esposa e a filha recém-nascida viviam na região metropolitana de Maceió. “Houve um evento em que um carro ligado a um possível suspeito estava rondando a casa da minha família”, relembra. “Então, transformei minha casa num bunker: coloquei cerca concertina, aquela cerca militar, nos muros; comprei dois cachorros rottweiler; coloquei câmeras à distância; avisei o comando da Polícia Militar na área para ficar de prontidão; e acompanhava minha família à distância pelas câmeras e alarmes através do celular. Tudo o que você pensar de segurança, eu tinha.”
Como os outros juízes ouvidos pela Pública, Scremin Neto conta que uma das piores consequências das ameaças era ver sua família sentindo na pele os efeitos da insegurança. “Minha esposa sempre reclamava de muita solidão. Algumas vezes me ligava dizendo que tinha alguém tocando a campainha e eu estava longe, aí ligava para a polícia ir lá. É um estresse que a família toda sofre junto ao magistrado.” De lá para cá, a vida social do casal também se transformou. “A gente gostava de caminhar com os cachorros na rua, isso era bem comum. E nós cortamos. Ir em shows ou eventos na comarca, também só se tiver acompanhamento, sozinhos não vamos.”
De volta ao Paraná, depois de ter prestado um novo concurso para a magistratura, sofreu novas ameaças, dessa vez na pequena cidade Ubiratã, no noroeste do estado, entre 2015 e 2016. Lá, ele também era juiz da Vara Criminal. “Eram basicamente presos que mandavam bilhetes e recados pelos policiais que faziam a escolta, eram mais intimidações. Começaram a perguntar se o juiz andava armado. Teve uma ocasião em que o preso disse que ia colocar uma bomba na casa do juiz – ‘esse juiz pensa o quê, vou colocar dinamite e vou explodir a casa dele’. Isso tudo vindo de pessoas que dominavam o tráfico de drogas na cidade”, relata.
Pela segunda vez, Scremin Neto se viu andando escoltado e, agora, utilizando ainda um veículo blindado cedido pelo Tribunal de Justiça do Paraná. A medida protetiva durou aproximadamente um ano. Hoje, o magistrado atua na Vara Criminal, da Família, Infância e Juventude de São Miguel do Iguaçu, município próximo à fronteira do Brasil com o Paraguai e a Argentina. “A gente acaba mudando totalmente a nossa rotina. Evita lugares públicos e aglomerações, evita a vida social na comarca – a vida social fica muito restrita. E, no fundo, a gente acaba aprendendo a conviver com as ameaças, porque, se você ficar muito encanado também, enlouquece. Não fica normal, mas você incorpora essa nova realidade na sua vida.”
Piauí – No combate à grilagem de terras, escolta 24 horas. “Era trabalho-casa, casa-trabalho”
O juiz Heliomar Rios Ferreira também viu sua rotina ser reduzida basicamente ao trabalho após ter sofrido ameaças enquanto estava à frente da Vara Agrária de Bom Jesus, no sul do Piauí. As primeiras tentativas de intimidação ocorreram em 2012, por meio de áudios e bilhetes anônimos com promessas de morte ao juiz, que por mais de seis anos atuou no combate à grilagem de terras na região pertencente ao Matopiba, na divisa entre seu estado, Maranhão, Tocantins e Bahia. Matopiba, segundo a Empresa Brasileira de Pesquisa Agropecuária (Embrapa), é a última fronteira agrícola do país e compreende uma área tomada pelo cerrado.
“Nessa época, minha família morava comigo em Bom Jesus, éramos eu, minha filha e minha esposa. Tive que mandá-los para Teresina, financiar casa de última hora. Fiquei em Bom Jesus, andando escoltado 24 horas, e minha família num condomínio fechado lá em Teresina também com escolta, que rondava o condomínio”, narra Ferreira. “Andavam comigo, num primeiro momento, dois policiais militares, e depois apenas um. Isso 24 horas por dia: todo dia dormia comigo, ia para o Fórum comigo, almoçava, jantava, merendava. Era muito ruim, privacidade zero.”
A escolta, diz o magistrado, não deixava espaço para lazeres ou outras atividades que não a profissional. “Minha vida lá [em Bom Jesus] era do Fórum para o apartamento, do apartamento para o Fórum. Praticamente não saía. Tendo em vista o modelo de segurança, a gente não podia se expor muito. Hobby? Praticamente nenhum. Não tinha como fazer isso, principalmente numa cidade do interior. A cidade é pequena, todo mundo se conhece, conhece seu carro, sabe para onde você vai. Era trabalho-casa, casa-trabalho.”
Embora os autores das ameaças sejam desconhecidos, Ribeiro as atribui ao seu trabalho pela regularização fundiária da região de Bom Jesus, que pressupôs o bloqueio e cancelamento de milhões de hectares em matrículas de imóveis. “Recebi uns quatro bilhetes dizendo para eu não subir ao cerrado, senão iriam me matar, que eu não fosse em determinado lugar porque tinha um pessoal me esperando para me matar. Eram as inspeções que eu fazia nas áreas para ver quem é que estava produzindo, quem é que não estava, quem eram os reais ocupantes. O pessoal não gostava disso porque eu ia ver realmente a realidade, não era só aquilo que chegava para mim no papel no gabinete”, relata.
O juiz viveu escoltado por aproximadamente dois anos e meio e utilizou veículo blindado do Tribunal de Justiça do Piauí até 2018. Após as primeiras tentativas de intimidação, conta que recebeu da presidência do tribunal um convite para assumir uma vara em Teresina e ficar perto da família, mas negou. “Eu disse [à presidente do tribunal]: se a senhora fizer isso, estará dizendo que o Poder Judiciário perdeu. Esse vai ser o recado. E quem vai perder é toda a população, a democracia. Me deixe lá e me dê a segurança devida, as condições para trabalhar, que eu topo. Aí permaneci lá.”
Em novembro do ano passado, Ribeiro foi promovido e assumiu a 1ª Vara da Comarca de Piripiri, no centro-norte piauiense. “Agora moro com minha família no litoral do Piauí. Estão estudando na cidade, e eu pretendo ficar aqui até a minha aposentadoria. Daqui não sair mais.”
Da execução de Patrícia Acioli aos mecanismos de proteção
“O fatídico assassinato da juíza Patrícia Acioli mostrou que a política institucional de segurança de juízes precisava – e ainda precisa – ser constantemente aperfeiçoada”, destacou à Pública o conselheiro Márcio Schiefler Fontes, coordenador do Comitê Gestor do Sistema Nacional de Segurança do Poder Judiciário, vinculado ao CNJ.
Por isso, desde então, aumentou a preocupação das autoridades em aprimorar as medidas de proteção prestadas a magistrados que sofrem alguma forma de constrangimento pela realização de seu trabalho.
Atualmente, são do CNJ as principais medidas para garantir a segurança dos magistrados brasileiros. A Resolução nº 104, de 2010, foi a primeira das medidas, antes da morte de Patrícia Acioli, “no contexto em que a realidade da criminalidade, em especial a organizada, passou a refletir no aumento de registros de ameaças e mesmo atentados a juízes”, explica o conselheiro Márcio Schiefler Fontes, do CNJ.
A resolução estabeleceu que os Tribunais Regionais Federais e de Justiça deveriam, em um ano, tomar providências para reforçar a segurança das varas criminais – como a instalação de câmeras e detectores de metais nos fóruns –; instituir comissões de segurança para avaliar os casos e prestar assistência a juízes em situação de risco e criar o Fundo Estadual de Segurança dos Magistrados, regido por leis em cada estado.
Em julho 2012, uma novidade vinda do Congresso: foi sancionada a “Lei do Juiz Sem Rosto” (nº 12.694), resultado de um projeto de lei sugerido à Câmara dos Deputados pela Associação dos Juízes Federais do Brasil (Ajufe). A lei estabelece que, em processos envolvendo organizações criminosas, o magistrado poderá pedir a formação de um colegiado para tomar decisões delicadas, como decretação de prisão, transferência de presos para instituições de segurança máxima, entre outras. Ficou determinada também a adoção de medidas para reforçar a segurança dos prédios da Justiça, além de normatizado o uso de armas por servidores dos tribunais.
Já o CNJ editou, em 2013, a Resolução nº 176, que criou o Sistema Nacional de Segurança do Poder Judiciário (SINASPJ) e, três anos depois, em 2016, publicou a Resolução nº 239, que instituiu a Política Nacional de Segurança do Poder Judiciário, na qual há a preocupação de resguardar não apenas os magistrados em situação de risco, mas também servidores e cidadãos que utilizam os órgãos de justiça. Ela trata ainda da segurança da informação e de instalações do Poder Judiciário como um todo.
A política previa também a criação do Departamento de Segurança Institucional do Poder Judiciário (DISPJ), formalmente instalado em 2017, que desde então busca reunir e organizar as notificações sobre juízes ameaçados que chegam ao CNJ de maneiras diversas, por meio não só dos tribunais, mas das associações de magistrados, CNJ, organizações não governamentais, entre outras. O DISPJ lançou, em 2017, um guia de segurança pessoal para magistrados.
Sobre as comissões internas de segurança, cada Tribunal de Justiça tem a prerrogativa de criar as suas – segundo o CNJ, até 2017, 82% dos tribunais as haviam implantado. A Pública conversou com o juiz Ygor Figueirêdo, membro da Comissão de Segurança do Tribunal de Justiça de Alagoas, o estado campeão em número de magistrados ameaçados – atualmente, oito deles são protegidos. A comissão alagoana, instituída em 2016, é composta pelo presidente e vice-presidente do tribunal, três juízes e o chefe da assessoria militar, e não se reúne com periodicidade constante – depende da demanda, indica Figueirêdo. Sempre que um juiz afirma estar em situação de risco e solicita medida protetiva, o grupo delibera de maneira colegiada, o quê, de acordo com o CNJ, 71,6% das comissões de segurança realizavam em 2017. Mas não só: “Aqui em Alagoas a gente também usa a comissão para aspectos de segurança de uma forma geral, das unidades jurisdicionais e do próprio jurisdicionado que as frequenta”, explica.
Quando chega um caso para avaliação, a comissão precisa agir rapidamente. “Se a ameaça a um juiz chega a se concretizar, o Estado fica muito fragilizado. A gente não pode deixar que isso aconteça, não por corporativismo, mas pela representação que aquela figura tem no sistema de combate à criminalidade. Então, quando há o pedido, a não ser que seja uma coisa realmente esdrúxula, num primeiro momento a gente defere”, expõe o juiz. Depois da análise do tribunal, o requerimento segue para o setor de inteligência da Polícia Militar, que averigua as ameaças. É o Conselho de Segurança Pública do estado que define os termos da medida protetiva: quantos agentes farão a escolta, se será integral ou apenas em determinado período do dia. Em caso de emergência, qualquer um dos membros da comissão pode decidir pela medida e, em um segundo momento, ela é examinada conjuntamente.
Figueirêdo afirma ainda que normalmente um prazo de três a quatro meses é estabelecido quando a proteção é concedida. “Quando passa o prazo, a gente intima o magistrado para que ele diga se persiste a situação de ameaça ou não. Se persistir e for comprovada, permanece a escolta, senão a gente tira.”
Para o juiz, o maior trunfo da comissão é prestar o serviço com agilidade. “É muito mais fácil para o presidente do tribunal entrar em contato com o secretário de Segurança do que um juiz do interior do estado. O juiz às vezes não tem o contato dele, ou tem uma dificuldade de acesso maior. É isso que a gente consegue fazer com maior celeridade”, analisa. “O juiz representa uma peça-chave no sistema de segurança criminal. O ataque ao magistrado não é o ataque àquela pessoa física, e sim ao sistema de segurança pública. É o que ele representa para o sistema de segurança que é o objeto da proteção. As organizações criminosas se fortalecem muito quando o ataque é a uma pessoa de valor simbólico.”
A juíza Laura Benda, presidente da Associação Juízes para a Democracia (AJD), avalia como correto o caminho que está sendo construído para aperfeiçoar a segurança dos magistrados, mas é necessário “um incremento não só de orçamento, como de planejamento dessas ações”. Um ponto a ser reforçado é a inclusão da família do profissional ameaçado nas medidas de proteção. “Possivelmente, há razões práticas, de orçamento e estrutura, para que isso não aconteça. Mas o CNJ e os tribunais precisam estudar a questão da proteção também sob esse aspecto, senão será uma proteção sempre insuficiente”, pontua.
Laura reforça também a importância da produção de dados sobre a questão, algo que começou a ser feito muito recentemente pelo CNJ. “É muito importante para que todos conheçamos a radiografia do cenário envolvendo a proteção aos juízes e a segurança institucional, mas também precisamos de informações mais constantes para que o próprio CNJ possa acompanhar com rapidez os casos individuais daqueles que estão sob ameaça.”