Dados do relatório global de investimento de 2019 da Conferência das Nações Unidas sobre Comércio e Desenvolvimento (United Nations Conference on Trade and Development - UNCTAD) demonstram que os valores provenientes de auxílio financeiro externo (Official Development Aid - ODA) em todo o mundo não alcançam o valor de 200 bilhões de dólares, comparado com os investimentos estrangeiros diretos (Foreign Direct Investments - FDI) que, no mesmo período de 2018 apresentaram um valor superior a 600 bilhões de dólares, ou mesmo do capital especulativo, na ordem de 400 bilhões de dólares. Outra análise interessante a partir desse dado é a evolução perene e baixa dos recursos de auxílio financeiro ao longo dos anos, sem demonstrar um crescimento vertiginoso ou variações.[1]
Analisando o referido relatório da UNCTAD pode-se inferir que um país não irá se desenvolver unicamente com a entrada de capital proveniente de ajuda financeira externa. Ao contrário do ocorrido durante o Plano Marshall do pós-2ª Guerra Mundial, em que os Estados Unidos promoveram a reconstrução da Europa Ocidental a partir da entrada maciça de recursos para infraestrutura e serviços, essa realidade não se observa em outras partes do mundo, à exceção de auxílios externos em regiões estratégicas para fins geopolíticos, como a ajuda financeira para a Coreia do Sul e Japão.
Em específico, o Fundo Monetário Internacional, ou FMI (International Monetary Fund - IMF) foi criado pelo Acordo de Bretton Woods em 1944, junto com o Banco Internacional de Reconstrução e Desenvolvimento (International Bank for Reconstruction and Development - IBRD). Ambas instituições, com sede na capital dos Estados Unidos, Washington D.C., apesar de serem informalmente qualificadas como irmãs, configuram-se como organizações internacionais para o Direito Internacional Econômico.
A história de atuação do Fundo é marcada por inúmeras críticas por parte dos países em desenvolvimento, principalmente por aqueles que se encontraram em situação de crise fiscal. O Fundo foi criado a promover a estabilidade financeira dos países membros em períodos de crise de balanço de pagamentos de curto prazo. A partir do percentual de quota previsto por país no Fundo, os países podem realizar saques (em inglês, swaps) de forma automática. Somente quando a quantia é de alto montante, o Fundo Monetário estabelece a assinatura de contrato de empréstimo (em inglês, stand-by arrangement). A aprovação de um grande pacote financeiro de recuperação depende, portanto, dos votos dos países membros.
Nesse ponto, observa-se que a própria estrutura do poder de voto do Fundo é marcada por forte desigualdade, ainda refletindo o contexto político internacional do pós-2ª Guerra Mundial, em que os Estados Unidos figuram como o membro com o maior percentual de quotas.
Em 2010, o Conselho Executivo do FMI aprovou a maior redistribuição de quotas, com aumento do percentual para emergentes,[2] principalmente para os países do BRIC (Brasil, Rússia, Índia e China).[3] Apesar da aprovação da reforma das divisão das quotas percentuais do FMI ocorrer em 2010, no contexto da crise de 2008, somente em 2016 houve propriamente a efetivação da medida, após a aprovação do Congresso dos Estados Unidos.
Com a reforma, a China torna-se o terceiro maior país com poder de voto, sendo que todos os países do BRIC inserem-se dentre os dez maiores membros com poder de voto. A China aumentou o seu percentual de voto de 3,8% a 6,08%, enquanto que o Brasil possui após a reforma 2,22%, a Índia 2,63% e a Rússia 2,59%. A reforma significou um crescimento do papel das economias emergentes, principalmente da China. Juntos, os BRIC somam 13,52% dos votos. Incluindo o percentual do poder de voto da África do Sul no FMI (0,64%), apesar de não ter sido contemplado com aumento na reforma de 2010, os BRICS correspondem a 14,16%.
Na reforma de 2010, os Estados Unidos reduziram o seu percentual de 16,7% a 16,5%, mantendo ainda uma cota superior a qualquer outro país membro do Fundo e poder de veto em decisões importantes do FMI, que exigem 85% dos percentuais de voto. A título de comparação, a China possui um percentual um pouco superior que a Itália, apesar de ser a segunda maior economia mundial. Os 27 países da União Europeia e o Reino Unido correspondem a 29,6% do poder de voto no FMI, apesar de aprestarem 16,7% do PIB mundial, enquanto que os BRICS respondem por 31,4% (dados de 2017). No Banco Mundial, cujas demandas por reformas não foram submetidas à aprovação, os BRICS correspondem a 12,9% do poder de voto.[4]
A partir do contexto do FMI, o pacote de recuperação financeira aprovado para a Argentina foi o maior da história. Tratou-se no montante de US$ 57 bilhões, assinado durante o governo Macri em 2018.[5] Contudo, o pacote é condicionado ao compromisso do Estado em realizar reformas estruturais na economia e na sociedade, como o controle da inflação e a redução do déficit fiscal. Observa-se que a decisão pela concessão do pacote financeiro valeu-se inclusive de questões políticas, ao conferir um aceno do Fundo para o governo de caráter liberal (ou neoliberal), com o intuito de assegurar uma credibilidade do mercado, restando alheia a discussão sobre medidas a promover benefícios à sociedade argentina. O relatório de avaliação pós-concessão, do próprio FMI, reconhece que o pacote não promoveu os objetivos esperados.[6]
Dessa forma, outras soluções que não se restrinjam ao tradicional pacote de austeridade fiscal, devem ser consideradas como viáveis a promover a recuperação econômica e o desenvolvimento de longo prazo. O governo posterior na Argentina, sob a presidência do Alberto Fernández, apresenta taxas de crescimento estimadas em 10% para o ano de 2021 e a aplicação de um plano econômico com políticas desenvolvimentistas.[7] [8]
A partir do exposto, é necessário investigar com profundidade a pertinência da recorrente aplicação de medidas de austeridade a condicionar a concessão de auxílio financeiro do Fundo, uma vez que seus programas defendem a manutenção de cartilhas ultrapassadas, ainda inseridas em um contexto neoliberal da década de 1980 e 1990, mesmo tendo a sociedade internacional vivenciado a crise de 2008. Nesta crise, iniciada nos Estados Unidos, foram aplicadas medidas de facilitação de crédito e de recuperação do sistema financeiro privado, o que demonstra uma evidente disparidade de condutas.
Mesmo diante do maior pacote de recuperação financeira na história do FMI, os resultados econômicos e, sobretudo, sociais, foram novamente negativos em um país que sofre recorrentes crises financeiras. Essa realidade se observa também em outras nações latino-americanas.
- UNITED NATIONS CONFERENCE ON TRADE AND DEVELOPMENT - UNCTAD. World Investment Report 2019. 12 June 2019. Disponível em: <https://unctad.org/webflyer/world-investment-report-2019>. Acesso em: 20 jan. 2021.
- Conforme a nota de imprensa do FMI (nº 10/418): This historic agreement is the most fundamental governance overhaul in the Funds 65-year history and the biggest ever shift of influence in favor of emerging market and developing countries to recognize their growing role in the global economy,' IMF Managing Director Dominique Strauss-Kahn said after the Executive Boards decision. (INTERNATIONAL MONETARY FUND - IMF. IMF Executive Board Approves Major Overhaul of Quotas and Governance. Press Release. nº 10/418. 5 de novembro de 2010. Disponível em: www.imf.org/en/News/Articles/2015/09/14/01/49/pr10418. Acesso em: 29 mar. 2021).
- Observa-se que os membros do BRIC assumiram a posição dos 10 maiores detentores de quotas no FMI, tendo a China assumido a terceira posição. Essa decisão ocorreu na 14ª Revisão Geral das Quotas do Fundo (INTERNATIONAL MONETARY FUND. IMF Members Quotas and Voting power, and IMF Board of Governors. Disponível em: www.imf.org/external/np/sec/memdir/members.aspx. Acesso em: 29 mar. 2021).
- CHITENDERU, Tafadzwa Thelmah. Integration of the New Development Bank into the International Financial Architecture. Faculdade de Negócios e Ciências Econômicas da Universidade Nelson Mandela. Orientador Professor R. Ncwadi (Doutorado) - Universidade Nelson Mandela, 2018, p. 120,126; SUCHODOLSKI, Sergio Gusmão; DEMEULEMEESTER, Julien Marcel. The BRICS Coming of Age and the New Development Bank. v. 9, issue 4. Global Policy. University of Durham e John Wiley & Sons, 2018, p. 3-4.
- GOÑI, Uki. Argentina gets biggest loan in IMF's history at $57bn. The Guardian, 27 September 2018. Disponível em: <https://www.theguardian.com/world/2018/sep/26/argentina-imf-biggest-loan>. Acesso em: 20 jan. 2022.
- INTERNATIONAL MONETARY FUND - IMF. IMF Executive Board Discusses the Ex-Post Evaluation of Argentinas Exceptional Access Under the 2018 Stand-By Arrangement. Press Release n. 21/401. 22 December 2021. Disponível em: <https://www.imf.org/en/News/Articles/2021/12/22/pr21401-argentina>. Acesso em: 20 jan. 2022.
- STIGLITZ, Joseph E. Argentina's COVID Miracle. Project Syndicate. 10 January 2022. Disponível em: <https://www.project-syndicate.org/commentary/argentina-covid-economic-miracle-by-joseph-e-stiglitz-2022-01>. Acesso em: 20 jan. 2022.
- BUENOS AIRES TIMES. Guzmán forecasts 10% growth for Argentina's economy in 2021. 14 December 2021. Disponível em: <https://www.batimes.com.ar/news/economy/guzman-forecasts-10-growth-for-argentinas-economy-in-2021.phtml>. Acesso em: 20 jan. 2022.