CONCLUSÃO
Ante as considerações expostas, assim respondemos aos quesitos:
1º. A partilha, decorrente de divórcio ou sucessão, é anulável quando ficar constatada existência de defeito do negócio jurídico, em qualquer de suas modalidades, que encerram numerus clausus e tipicidade irredutível, de acordo com os requisitos de cada um. Cada modalidade é única e não intercambiável, valendo dizer que as condutas e requisitos de uma não servem para outra. No caso sob exame, o mesmo fato serviu de base, inadequadamente, para outras modalidades. A anulabilidade pode ser parcial, quando o vício disser respeito apenas a uma das partes do negócio jurídico e haja declaração de vontade específica; todavia, se a declaração de vontade for única, não pode ser válida para a parte considerada vantajosa e inválida para a parte considerada desvantajosa, posteriormente.
2º. Nenhuma das condutas atribuídas ao ex-marido, antes e durante a conclusão do acordo de divórcio, incluindo a partilha dos bens comuns, pode ser qualificada como defeito desse negócio jurídico, até mesmo se tais condutas fossem verdadeiras. A principal linha de argumentação, que serviu para o alegado erro substancial e outros vícios, está ancorada em falsa premissa: a desigualdade desproporcional dos quinhões dos divorciados, para além do excesso de meação aceito e declarado por estes no acordo de divórcio, é inexistente, porque fruto de equívoco da autoridade tributante, por esta reconhecido. A avaliação dos imóveis, unilateralmente feita pela divorciada, após o divórcio, é de nenhuma valia para fins de anulação da partilha, máxime sob o fundamento de lesão. A ameaça de exercício regular de direito não é vício da declaração de vontade. Não configura dolo o planejamento prévio do divórcio, porque é exercício da autodeterminação pessoal de não continuar o casamento, além de não ter impedido que as negociações preliminares se fizessem, antes do acordo do divórcio, que foi homologado judicialmente.
3º. A violação do dever de conduta de boa-fé objetiva não se enquadra nas modalidades taxativas de defeitos dos negócios jurídicos, que anulam a partilha (art. 138 a 165 do Código Civil). Não é vício nem defeito do negócio jurídico. Sua ocorrência leva à nulidade do negócio jurídico, mas não à anulabilidade. A anulação de partilha depende de iniciativa da parte que alega o vício ou defeito do negócio jurídico, pois só a ela aproveita, diferentemente das hipóteses de nulidade que podem ser invocadas pelo Ministério Público ou declarada de ofício pelo juiz. Contudo, os mesmos fatos que serviram de esteios para a imputação de defeitos do negócio jurídico, atribuídos ao ex-marido, não condizem com a precisa caracterização da boa-fé objetiva, que é dever de conduta leal, correta e cooperativa nas relações negociais. Não se pode confundir boa-fé objetiva com hipossuficiência técnica ou emocional, se esta efetivamente ocorrer, pois de natureza distinta. Pelo exame desapaixonado dos fatos ocorridos, neste caso, nenhum comportamento do ex-marido configura lesão à boa-fé objetiva. Contrariamente, se a ex-esposa sabia do equívoco da autoridade tributante, quando do cálculo do excesso de meação, agiu de má-fé ao pedir a anulação parcial do acordo de divórcio; se não sabia, deveria ter procurado obter a informação necessária, que é garantia constitucional (Constituição, art. 5º, XXXIII), antes do ajuizamento temerário da ação, o que também importa má-fé.
4º. O direito brasileiro considera violador da boa-fé o comportamento contraditório, ou dever de não agir contra os atos próprios (venire contra factum proprium). Configuram comportamento contraditório as seguintes condutas da autora da ação: a) indicar e aceitar advogado comum para a elaboração do acordo de divórcio, com ônus de pagamento dos honorários para o ex-marido, e depois extrair desses fatos a ocorrência de dolo, inclusive com suposição de conluio; b) após receber a minuta do acordo de divórcio elaborado pelo advogado comum, apresentar contrapropostas, transigir, fazer glosas aos valores dos bens comuns e depois da assinatura e homologação judicial, alegar vulnerabilidade emocional e técnica e vícios da declaração negocial; c) preferir receber bens com maior liquidez e depois alegar prejuízo a partir de avaliação unilateral dos imóveis.
5º. O acordo de divórcio, incluindo a partilha dos bens comuns do casal, resultou de consentimento livre e informado de ambos os ex-cônjuges, tendo sido elaborado por advogado comum, cuja minuta foi objeto de negociações bilaterais durante dois meses, com participação inclusive de irmão da ex-esposa, também advogado, e redação final objeto de parecer favorável do Ministério Público e homologação judicial, após sua confirmação pelos ex-cônjuges. Enfatize-se a expertise da ex-esposa em lidar, privilegiadamente, com assuntos de natureza patrimonial e financeira, dadas suas atividades profissionais, anteriores ao casamento, como engenheira civil de grande construtora e gestora em bancos, na modalidade de private banking. Tais fatos consolidam a conclusão de que o negócio jurídico é integralmente válido, não sendo maculado por nenhum vício ou defeito que possa anulá-lo, ainda que parcialmente.
Notas
Doutor em Direito Civil (USP). Professor Emérito da UFAL. Vice-Presidente do IBDCIVIL. Foi Conselheiro do CNJ.
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