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Anulação de partilha e boa-fé

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17/10/2023 às 19:14

Resumo:


  • Os requisitos legais para anulação da partilha incluem vícios e defeitos que invalidam negócios jurídicos em geral, como erro, dolo, coação, lesão e fraude contra credores, mas não abrangem violação da boa-fé.

  • A alegação de erro substancial, dolo, coação ou lesão na partilha requer prova indiscutível e rigorosa, e não pode ser baseada em desproporções de valores decorrentes de equívocos da autoridade tributante.

  • Boa-fé objetiva não é classificada como vício ou defeito da declaração negocial para fins de anulação de partilha; para invalidar a partilha, deve-se demonstrar vícios específicos no negócio jurídico, e não meras alegações de má-fé.

Resumo criado por JUSTICIA, o assistente de inteligência artificial do Jus.

CONCLUSÃO

Ante as considerações expostas, assim respondemos aos quesitos:

1º. A partilha, decorrente de divórcio ou sucessão, é anulável quando ficar constatada existência de defeito do negócio jurídico, em qualquer de suas modalidades, que encerram numerus clausus e tipicidade irredutível, de acordo com os requisitos de cada um. Cada modalidade é única e não intercambiável, valendo dizer que as condutas e requisitos de uma não servem para outra. No caso sob exame, o mesmo fato serviu de base, inadequadamente, para outras modalidades. A anulabilidade pode ser parcial, quando o vício disser respeito apenas a uma das partes do negócio jurídico e haja declaração de vontade específica; todavia, se a declaração de vontade for única, não pode ser válida para a parte considerada vantajosa e inválida para a parte considerada desvantajosa, posteriormente.

2º. Nenhuma das condutas atribuídas ao ex-marido, antes e durante a conclusão do acordo de divórcio, incluindo a partilha dos bens comuns, pode ser qualificada como defeito desse negócio jurídico, até mesmo se tais condutas fossem verdadeiras. A principal linha de argumentação, que serviu para o alegado erro substancial e outros vícios, está ancorada em falsa premissa: a desigualdade desproporcional dos quinhões dos divorciados, para além do excesso de meação aceito e declarado por estes no acordo de divórcio, é inexistente, porque fruto de equívoco da autoridade tributante, por esta reconhecido. A avaliação dos imóveis, unilateralmente feita pela divorciada, após o divórcio, é de nenhuma valia para fins de anulação da partilha, máxime sob o fundamento de lesão. A ameaça de exercício regular de direito não é vício da declaração de vontade. Não configura dolo o planejamento prévio do divórcio, porque é exercício da autodeterminação pessoal de não continuar o casamento, além de não ter impedido que as negociações preliminares se fizessem, antes do acordo do divórcio, que foi homologado judicialmente.

3º. A violação do dever de conduta de boa-fé objetiva não se enquadra nas modalidades taxativas de defeitos dos negócios jurídicos, que anulam a partilha (art. 138 a 165 do Código Civil). Não é vício nem defeito do negócio jurídico. Sua ocorrência leva à nulidade do negócio jurídico, mas não à anulabilidade. A anulação de partilha depende de iniciativa da parte que alega o vício ou defeito do negócio jurídico, pois só a ela aproveita, diferentemente das hipóteses de nulidade que podem ser invocadas pelo Ministério Público ou declarada de ofício pelo juiz. Contudo, os mesmos fatos que serviram de esteios para a imputação de defeitos do negócio jurídico, atribuídos ao ex-marido, não condizem com a precisa caracterização da boa-fé objetiva, que é dever de conduta leal, correta e cooperativa nas relações negociais. Não se pode confundir boa-fé objetiva com hipossuficiência técnica ou emocional, se esta efetivamente ocorrer, pois de natureza distinta. Pelo exame desapaixonado dos fatos ocorridos, neste caso, nenhum comportamento do ex-marido configura lesão à boa-fé objetiva. Contrariamente, se a ex-esposa sabia do equívoco da autoridade tributante, quando do cálculo do excesso de meação, agiu de má-fé ao pedir a anulação parcial do acordo de divórcio; se não sabia, deveria ter procurado obter a informação necessária, que é garantia constitucional (Constituição, art. 5º, XXXIII), antes do ajuizamento temerário da ação, o que também importa má-fé.

4º. O direito brasileiro considera violador da boa-fé o comportamento contraditório, ou dever de não agir contra os atos próprios (venire contra factum proprium). Configuram comportamento contraditório as seguintes condutas da autora da ação: a) indicar e aceitar advogado comum para a elaboração do acordo de divórcio, com ônus de pagamento dos honorários para o ex-marido, e depois extrair desses fatos a ocorrência de dolo, inclusive com suposição de conluio; b) após receber a minuta do acordo de divórcio elaborado pelo advogado comum, apresentar contrapropostas, transigir, fazer glosas aos valores dos bens comuns e depois da assinatura e homologação judicial, alegar vulnerabilidade emocional e técnica e vícios da declaração negocial; c) preferir receber bens com maior liquidez e depois alegar prejuízo a partir de avaliação unilateral dos imóveis.

5º. O acordo de divórcio, incluindo a partilha dos bens comuns do casal, resultou de consentimento livre e informado de ambos os ex-cônjuges, tendo sido elaborado por advogado comum, cuja minuta foi objeto de negociações bilaterais durante dois meses, com participação inclusive de irmão da ex-esposa, também advogado, e redação final objeto de parecer favorável do Ministério Público e homologação judicial, após sua confirmação pelos ex-cônjuges. Enfatize-se a expertise da ex-esposa em lidar, privilegiadamente, com assuntos de natureza patrimonial e financeira, dadas suas atividades profissionais, anteriores ao casamento, como engenheira civil de grande construtora e gestora em bancos, na modalidade de private banking. Tais fatos consolidam a conclusão de que o negócio jurídico é integralmente válido, não sendo maculado por nenhum vício ou defeito que possa anulá-lo, ainda que parcialmente.


Notas

  1. Doutor em Direito Civil (USP). Professor Emérito da UFAL. Vice-Presidente do IBDCIVIL. Foi Conselheiro do CNJ.

  2. Interpretación de la ley y de los atos jurídicos. Madrid: Edersa, 1971, p. 347.

  3. LÔBO, Paulo. Direito Civil: Parte Geral. São Paulo: Saraiva, 2013, p. 257.

  4. MIRANDA, Pontes de. Tratado de direito privado. V. 4. São Paulo: RT, 1974, p. 330.

  5. PINTO, Carlos Alberto da Mota. Teoria geral do direito civil. 4ª. ed. por Antonio Pinto Monteiro e Paulo Mota Pinto. Coimbra: Coimbra, 2005, p. 529.

  6. O negócio jurídico no anteprojeto de Código Civil brasileiro. Arquivos do Ministério da Justiça, Brasília: set. 1974, p. 12.

  7. Da boa-fé no direito civil. Coimbra: Almedina, 1997, p. 1.234.

  8. LÔBO, Paulo Luiz Neto. Teoria geral das obrigações. São Paulo: Saraiva, 2005, p. 88.

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  9. BORDA, Alejandro. La teoría de los actos propios. Buenos Aires: Abeledo-Perrot, 1993, p. 12.

  10. SCHREIBER, Anderson. A proibição de comportamento contraditório: tutela da confiança e venire contra factum proprium. Rio de Janeiro: Renovar, 2005, p. 271.

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Sobre o autor
Paulo Lôbo

Doutor em Direito Civil pela Universidade de São Paulo (USP), Professor Emérito da Universidade Federal de Alagoas (UFAL). Foi Conselheiro do CNJ nas duas primeiras composições (2005/2009).︎ Membro fundador e dirigente nacional do IBDFAM. Membro da International Society of Family Law.︎ Professor de pós-graduação nas Universidades Federais de Alagoas, Pernambuco e Brasília. Líder do grupo de pesquisa Constitucionalização das Relações Privadas (UFPE/CNPq).︎

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

LÔBO, Paulo. Anulação de partilha e boa-fé. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 28, n. 7412, 17 out. 2023. Disponível em: https://jus.com.br/pareceres/105915. Acesso em: 21 dez. 2024.

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