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Anulação de partilha e boa-fé

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17/10/2023 às 19:14
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A ex-esposa ajuizou uma ação anulatória de partilha um ano após o divórcio, alegando erro, dolo, coação, lesão e violação da boa-fé. O que o ex-marido pode alegar na defesa?

Sumário: I – Dos requisitos legais para anulação da partilha. II – Sobre a imputação de defeitos à parte do negócio jurídico e não à sua totalidade. III – Sobre erro substancial, erro acidental, os parâmetros de sua qualificação e a situação fática. IV - O dolo invalidante do negócio jurídico e seus estreitos requisitos. V - Sobre as condutas qualificadas como coação. VI - Sobre a lesão, seus elementos caracterizadores e o equívoco sobre fatos que a configurariam. VII - Sobre se houve violação a boa-fé e se esta é vício ou defeito da declaração de vontade para fins de anulação de partilha. VIII - Condutas da autora da ação qualificadas como comportamento contraditório ou venire contra factum proprium. Conclusão.


Fatos que ensejaram a consulta

  1. Após tratativas mediadas pelos advogados comuns do casal e concessões recíprocas, o texto do acordo do divórcio, incluindo o sistema de convivência com as filhas, a assistência material, a pensão alimentícia, a retomada do nome de solteira e a partilha dos bens foi apresentado a juízo, com parecer favorável do Ministério Público e obtido homologação judicial.

  2. Um ano depois, no entanto, a ex-esposa ajuizou ação anulatória de partilha, imputando ao ex-marido condutas que configurariam defeitos do negócio jurídico, a saber: erro, dolo, coação, lesão e violação da boa-fé, com remissão aos respectivos artigos do Código Civil e do CPC, estes relativos à anulação de partilha. Ressalte-se que a ação anulatória voltou-se exclusivamente à partilha, integrante do acordo de divórcio, não questionando a validade das demais matérias, vantajosas à autora.

  3. Em resumo, os fatos estão assim distribuídos, na petição inicial, de acordo com as espécies de defeitos de negócio jurídico imputados: a) erro: suposta subavaliação dos imóveis e investimentos financeiros comuns do casal; b) dolo: o réu teria planejado e arquitetado o divórcio, meses antes de apresentar a proposta, apoiado e com a conivência do advogado comum, cujos honorários foram assumidos inteiramente por ele; c) coação: o réu teria pressionado a autora para que o divórcio fosse assinado o mais rápido possível, ameaçando pleitear a guarda unilateral das filhas, caso não o fizesse; d) lesão: a partilha teria sido desfavorável à ré, ante as desproporções dos valores, notadamente após tomar conhecimento da notificação da receita estadual; e) violação da boa-fé: indução, pressão e coação contra a autora para aceitar a proposta de divórcio, além de aproveitamento da inexperiência desta.

  4. A contestação repeliu tais argumentos, destacando-se: a) os dois meses de tratativas, com concessões recíprocas, mais do réu do que da autora, demonstram que esta não foi induzida a erro ou coagida, fazendo-se provas com trocas de correspondências eletrônicas e anotações à mão feitas pela autora; b) os advogados comuns foram indicados pela própria autora, porque eram amigos íntimos dela (e do casal) e contavam com sua confiança, além ter sido definido de comum acordo com o réu que este assumisse exclusivamente os respectivos honorários assim como todas as demais despesas relacionadas ao processo de divórcio; c) além dos profissionais contratados, a autora contou com o acompanhamento constante de seu irmão, também advogado; d) a autora não é pessoa inexperiente, mas sim dotada de expertise em matéria imobiliária, pois é engenheira civil, e atuou no segmento private banking; e) a autora confessa na inicial que sempre participou da aquisição patrimonial do casal, inclusive no tocante a todos os tipos de investimentos e movimentações financeiras, f) a suposta desproporção de valores decorreu de equívoco da receita estadual, para apuração do tributo devido pelo excesso de meação, com supervalorização e cálculos repetidos, cujo equívoco veio a ser reconhecido por aquela na conclusão do processo administrativo, que considerou válidos os valores estimados na partilha; g) há reconhecimento expresso de ambos os ex-cônjuges, no acordo de divórcio, que todos os bens comuns de propriedade do casal foram descritos e avaliados na partilha, além da comprovação, pelas declarações de imposto de renda dos últimos anos, de que todo o patrimônio comum foi partilhado, nada tendo sido sonegado; h) a autora preferiu receber sua parte em dinheiro e valores financeiros, porque tinham mais liquidez que os imóveis; i) a autora, além de ser contemplada com valores vultosos, e sem impedimento para reinserção no mercado de trabalho profissional em face de ser ainda jovem, recebeu em comodato o imóvel onde viveu o casal (bem particular do réu), durante o prazo renovável de dez anos, para sua habitação e das filhas, com todas as despesas cobertas pelo réu; j) os frutos de aplicações financeiras adquiridas antes do casamento foram aplicados na ampliação do patrimônio comum ou consumidos pelo casal, durante os dez anos de convivência, considerado seu elevado padrão de vida; l) o acordo de vontade é ato jurídico perfeito, fruto da vontade livre e consciente de ambas as partes, tendo sido homologado em audiência, na qual estavam presentes os cônjuges, o advogado e a representante do Ministério Público.


Quesitos

Ante o exposto, indaga-se:

  1. No direito brasileiro, quais são os requisitos legais para a anulação de partilha, constante de acordo de divórcio? É possível que a mesma declaração de vontade possa estar contaminada por defeitos do negócio jurídico em apenas parte dela (no caso, a partilha), posteriormente considerada desvantajosa?

  2. Considerando os fatos relatados, as provas da efetiva participação da ex-esposa nas negociações que antecederam o acordo de divórcio, a assessoria que recebeu dos advogados comuns de sua confiança e de seu irmão, também advogado, e, sobretudo, a inexistência da alegada diferença patrimonial desproporcional, cujos valores resultaram de equívoco da autoridade tributante, teriam substância os alegados vícios e respectivas condutas imputadas ao ex-marido, decorrentes de: (a) erro substancial (subavaliação dos imóveis e das aplicações financeiras), (b) dolo (planejamento prévio do divórcio e pagamento exclusivo dos advogados comuns); (c) coação (pressão para assinatura do acordo do divórcio e ameaça de pleitear em juízo a guarda unilateral das filhas do casal), (d) lesão (excesso desproporcional de meação)?

  3. Houve violação da boa-fé por parte do ex-marido da autora, ante os fatos relatados e contestados? Contrariamente, não teria agido de má-fé a ex-esposa ao imputar ao ex-marido a sonegação de patrimônio comum, que, em verdade, resultara de equívoco da autoridade tributante? Em qualquer circunstância, a violação da boa-fé classifica-se como vício ou defeito da declaração negocial para fins de anulação de partilha?

  4. Qualifica-se como comportamento contraditório da autora: (a) indicar advogado comum para elaboração do acordo de divórcio, de recusar-se a partilhar os encargos dos honorários respectivos e depois imputar a esses fatos a existência de dolo? (b) participar de negociações preliminares e depois negar validade ao acordo decorrente; (c) preferir receber sua parte em dinheiro e valores mobiliários, por sua liquidez, e depois argumentar que se prejudicou porque os imóveis seriam mais valiosos?

  5. Ante as circunstâncias desse caso, pode-se afirmar que as declarações de vontade vertidas no acordo de divórcio, incluindo a partilha, foram conscientes, suficientes e informadas? Considerando o texto expresso do acordo, a confirmação em juízo e a homologação judicial do divórcio consensual e de suas condições, é plenamente válida a partilha dele constante?


EXAME DOS FATOS E DO DIREITO APLICÁVEL

I – DOS REQUISITOS LEGAIS PARA ANULAÇÃO DA PARTILHA

Estabelece o art. 2.027 do Código Civil regra comum para anulação da partilha, tanto no direito das sucessões quanto no direito de família:

Art. 2.027. A partilha, uma vez feita e julgada, só é anulável pelos vícios e defeitos que invalidam, em geral, os negócios jurídicos.

Parágrafo único. Extingue-se em um ano o direito de anular a partilha.

A norma em vigor remete às mesmas hipóteses de anulação do negócio jurídico, constantes da Parte Geral do Código Civil, cujos requisitos são comuns e devem ser observados. O Código Civil considera defeitos do negócio jurídico, passível de invalidá-lo, o erro ou ignorância, o dolo, a coação, o estado de perigo, a lesão e a fraude contra credores. Com exceção do último e do estado de perigo, a autora da ação anulatória alega a ocorrência dos demais, além de violação à boa-fé, relativamente à partilha constante do acordo de divórcio judicial consensual.

Consideram-se defeitos do negócio jurídico, para a lei civil brasileira, os vícios de vontade que comprometem a livre manifestação ou declaração negocial. Tendo em vista que sua ocorrência pode levar à anulação do negócio jurídico, são taxativamente indicados na lei (numerus clausus), não se admitindo que as partes possam estipular outros tipos, o que, à partida, excluem a boa-fé ou a má-fé dessa qualificação.

O acordo de divórcio consensual, ainda que veiculado em pedido de homologação judicial, como no caso em exame, é negócio jurídico bilateral. No negócio jurídico bilateral há duas declarações e o acordo delas resultante. É o acordo o objeto da interpretação e não cada uma das declarações. Essa regra procura priorizar o que de fato foi querido pelos agentes, mas desde que tenha sido declarado e apreensível no meio social. O que foi querido, mas não exteriorizado, não pode ser considerado pelo direito, pois o intérprete não pode incursionar no âmbito da psique humana quando se tratar de negócio jurídico. O que se leva em consideração é a vontade exteriorizada pela declaração, não a interna.

Na interpretação dos negócios jurídicos não têm relevância os motivos que na específica situação de fato hajam determinado sua conclusão; portanto não tem importância a motivação lógica e histórica manifestada ocasionalmente na enunciação, mas somente seu intento prático, o interesse em sentido objetivo que busca satisfação na regulação que a autonomia privada pôs em jogo. Ou seja, o objeto da interpretação não é a vontade interna, quando permaneça oculta, mas a declaração ou comportamento enquadrados no marco das circunstâncias que lhes conferem valor e significado, como diz Emilio Betti2. Não é o fato da vida interior, mas a declaração como ato que comporta sentido.

Por essas razões, a prova da existência de defeito do negócio jurídico, em qualquer de suas modalidades, há de ser indiscutível e exigente de rigor, ante a peculiaridade, no negócio jurídico bilateral, da mutação das declarações de vontade individuais dos agentes em declaração comum e do vínculo jurídico desta decorrente, que o direito assegura. Apesar de dizer respeito a um fenômeno de origem subjetiva - a declaração de vontade -, o defeito do negócio jurídico é aferido objetivamente, de acordo com os padrões de conduta reconhecidos pelo direito. Erro, dolo, coação, lesão não são conceitos que cada um possa ter, segundo suas próprias percepções ou convicções, pois decorrem de comportamento típicos, que o direito considera suficientemente graves para invalidar a declaração de vontade.

II – SOBRE A IMPUTAÇÃO DE DEFEITOS À PARTE DO NEGÓCIO JURÍDICO E NÃO À SUA TOTALIDADE

De acordo com os elementos da consulta, a autora da ação anulatória pretende anular parte do acordo do divórcio consensual, relativamente à partilha dos bens comuns. Sobre essa parte, que posteriormente julgou desvantajosa, entende que a declaração de vontade foi viciada ou defeituosa. Sobre as demais partes – que, segundo a contestação, lhe são vantajosas - não imputa vício ou defeito da declaração de vontade.

O direito brasileiro admite que a anulação do negócio jurídico possa ser parcial, mantendo-se válido o restante, se útil. Assim, estabelece o art. 184 do Código Civil que a invalidade parcial de um negócio jurídico não o prejudicará na parte válida, se esta for separável. Compreende-se no princípio da conservação do negócio jurídico: separa-se a parte viciada do todo do negócio jurídico, com a finalidade de preservar as partes válidas. Ocorre quando a nulidade ou anulabilidade de parte não compromete ou contamina a totalidade do negócio, que pode sobreviver e atingir o escopo prático pretendido. A regra da invalidade parcial tem origem na antiga máxima romana utile per inutile non vitiatur (o útil não deve ser viciado pelo inútil).

Colhe-se, todavia, da petição inicial, anexada à consulta, que a autora menciona ter havido pressão psicológica para assinatura do divórcio consensual, em sua totalidade, e não apenas em relação à partilha, que o integrava. Sendo assim, a alegada fragilidade de seu estado emocional contaminaria ou viciaria todo o negócio jurídico e não apenas parte dele. Não é razoável que o estado emocional seja hígido para a parte considerada vantajosa e débil para a considerada desvantajosa. De qualquer forma, a fragilidade do estado emocional, comum em qualquer separação conjugal, não se enquadra em qualquer das hipóteses de defeitos do negócio jurídico. Abalos emocionais, sentimentos de dor e perda, são estados psicológicos comuns a ambos os cônjuges ou companheiros, nos momentos de dissolução do casamento ou da união estável. Mas não são impedientes da composição amigável, que deve ser estimulada.

A situação retratada neste caso não é de invalidade parcial do negócio jurídico. Tratar-se-ia, se fosse o caso, de existência ou não de manifestação de vontade insuficiente ou deficiente em relação a todo o negócio jurídico (acordo de divórcio), pois a partilha não foi objeto de declaração de vontade separada ou distinta. E poderiam os divorciandos fazê-lo, pois, na conformidade do art. 1.581 do Código Civil o divórcio pode ser concedido sem que haja prévia partilha dos bens.

Portanto, ante as circunstâncias do caso, que inclusive se extraem da petição inicial, a pretensão anulatória deveria alcançar todo o acordo do divórcio e não apenas parte dele, se fragilidade emocional fosse hipótese de defeito de negócio jurídico. Não o é. Se pudesse ser assim considerado, estaria em risco a segurança jurídica e a primazia contemporânea da composição amigável dos conflitos, pois qualquer ex-cônjuge, posteriormente insatisfeito ou arrependido, por razões íntimas, poderia pretender anular o acordo de divórcio que firmou, imputando fragilidade emocional à época, para reabrir questões resolvidas, com intensa litigiosidade.

III – SOBRE ERRO SUBSTANCIAL, ERRO ACIDENTAL, OS PARÂMETROS DE SUA QUALIFICAÇÃO E A SITUAÇÃO FÁTICA

A imputação de erro essencial está assentada em dois pontos: 1) Subavaliação dos imóveis constantes da partilha; 2) Subavaliação das aplicações financeiras. A petição inicial alude a decorrente prejuízo suportado pela autora.

A reclamada subavaliação dos imóveis exsurgiria do confronto entre o valor estimado pelos cônjuges, no acordo de divórcio, e o valor de mercado atribuído posteriormente por consultoria imobiliária.

A diferença para maior das aplicações financeiras decorreu de equívoco do fisco estadual, quando da apuração do tributo sobre o excesso da meação, conforme ficou provado com a contestação da ação.

Importa, contudo, examinar se tais fatos, se verdadeiros fossem, configurariam erro substancial, suficiente para invalidação do negócio jurídico de acordo de divórcio. Em outras palavras, erros contábeis ou de avaliação de bens subsumem-se no conceito jurídico estrito de vício por erro substancial? Se não, qualificar-se-iam como erro acidental, não ensejando invalidação do negócio jurídico, mas pretensão a perdas e danos, se fosse o caso. Note-se que a própria autora aludiu a prejuízo.

Tivemos oportunidade de explicitar em obra doutrinária3 que o erro substancial ocorre quando a pessoa manifesta sua vontade negocial em razão de determinada pessoa ou de determinada coisa, mas o fazendo com outra pessoa ou coisa aparentes. É a representação falsa da realidade. Na causa do erro substancial está a aparência; por causa dela foi a pessoa induzida a erro. O erro apenas pode ser considerado substancial quando passível de ser percebido por qualquer pessoa de diligência e atenção normais, considerando a natureza e as circunstâncias que cercam o negócio. O erro substancial é o engano ou equívoco que podem ser cometidos por qualquer pessoa normalmente diligente, em iguais circunstâncias. Consequentemente, não há erro substancial quando deriva de falta de atenção, ou negligência, ou distração, inadmissíveis em pessoa comum que atua no tráfico jurídico.

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Para que o erro de coisa seja considerado essencial é necessário que diga respeito às qualidades essenciais dessa coisa: são as que se fazem essenciais ao negócio jurídico; sem elas, não há interesse na realização do negócio. São qualidades que seriam pressupostas no negócio jurídico de que se cuida (por exemplo, a memória do computador deve ter capacidade mínima de x para receber o programa adquirido; estar o imóvel na zona urbana e não na zona rural, o que impediria a construção pretendida). A anulabilidade ocorre quando o erro recai sobre a substância mesma da coisa. A falta de título de propriedade sobre a coisa vendida não é erro, pois o contrato de compra e venda vale e é eficaz sem a entrega da coisa, resolvendo-se pelo inadimplemento e suas consequências, inclusive perdas e danos. Também não há erro se se observa desproporção manifesta entre o valor real da coisa e o preço pago, aproveitando-se da inexperiência do vendedor, porque esta seria hipótese de lesão.

Se o erro é acidental ou secundário, ou seja, não compromete a realização do objeto do negócio jurídico, não é cabível a anulação. O erro acidental, para fins do direito civil, não é considerado defeito do negócio jurídico. Pode gerar outras pretensões, como indenização correspondente, mas não a anulabilidade do negócio jurídico.

Qualifica-se como acidental o erro de cálculo, cuja constatação apenas propicia a alteração correspondente das obrigações assumidas no negócio jurídico, sem possibilidade de anulá-lo. Essa regra, introduzida pelo Código Civil de 2002 (art. 143), concretiza o princípio da conservação do negócio jurídico, que apenas deve ser invalidado se for atingido em seu núcleo essencial.

Assim, ainda que se considerassem verdadeiras as alegadas subavaliações dos bens, tais fatos não poderiam ensejar invalidação do acordo de partilha, com fundamento no erro essencial.

IV - O DOLO INVALIDANTE DO NEGÓCIO JURÍDICO E SEUS ESTREITOS REQUISITOS

A petição inicial apresenta como fatos, que caracterizariam o dolo, as seguintes condutas do ex-marido da autora: 1) “planejou e arquitetou seu divórcio”, meses antes de sugerir-lhe as respectivas condições e valores; 2) “contratou e pagou exclusivamente o advogado” de ambos os divorciandos.

A contestação esclarece que os advogados que assistiram juridicamente o acordo foram escolhidos conjuntamente pelo casal, por indicação da própria autora e que o ônus do pagamento dos honorários pelo ex-marido foi exigência dela, assim como todas as demais despesas do processo de divórcio.

Se as condutas indicadas na petição inicial fossem verdadeiras, haveria fundamento legal no vício de dolo para invalidação do acordo de divórcio?

Considera-se dolo a malícia ou o artifício inspirado na má-fé para induzir a outra parte a realizar o negócio jurídico, em seu prejuízo (animus dolandi). É o enganar consciente. Vem do latim dolus, com o significado de ardil, logro, artifício, esperteza, embuste. Sem intenção não há dolo.

Segundo Pontes de Miranda, o essencial é que se conheça a relação causal entre o ato, positivo ou negativo, de dolo e a manifestação de vontade por parte do outro figurante. Portanto, quem engana sem saber que está a enganar não procede com dolo4.

O dolo pode ser essencial ou acidental. Para que possa gerar a invalidade do negócio jurídico, deve ser decisivo para a manifestação de vontade negocial. A outra parte do negócio jurídico não se vincularia a este se não tivesse havido o dolo. O Código Civil (art. 145) refere-se ao dolo como causa da realização do negócio jurídico. Nesse sentido, apenas é considerado o dolo essencial, que deu causa ao negócio. Assim, não é passível de anulabilidade o dolo ocorrido durante a execução do negócio jurídico, ainda que possa dar origem à pretensão por perdas e danos pela parte prejudicada. Tampouco é insuscetível de invalidação o chamado dolo acidental, assim entendido o que não impediria a manifestação de vontade concludente da outra parte, ou a conclusão do negócio jurídico, que se faria por outros meios. O dolo acidental não tem influência decisiva na manifestação de vontade concludente da outra parte, mas lhe acarretou gravame ou dano.

São elementos do dolo civil: a) ato ou omissão intencionais de uma das partes do negócio jurídico que prejudicam a outra; b) relação de causa e efeito entre o dolo e a manifestação de vontade concludente da outra parte; c) essencialidade do dolo para a realização do negócio jurídico.

As condutas referidas na petição inicial não se enquadram nesses elementos. O divórcio foi a consumação jurídica da separação de fato do casal; o divórcio, em si, não é causa de prejuízo. A preparação prévia de proposta ao outro cônjuge de divórcio amigável, ainda que com todas as condições já formuladas, não se caracteriza como dolo. Caberia à autora promover contraproposta; segundo a contestação e os documentos anexados, tal ocorreu. Tampouco caracteriza dolo a assunção individual das despesas com os advogados comuns; nem a suposição de que estes teriam atuado em conluio com aquele, para prejudicá-la.

V - SOBRE AS CONDUTAS QUALIFICADAS COMO COAÇÃO

São qualificadas como coação, pela autora, as seguintes condutas imputadas ao ex-marido: 1) “pressão para que tudo fosse assinado e resolvido o mais rápido possível”; 2) Ameaça de se pleitear em juízo a guarda unilateral das filhas, se não o fizesse.

A coação é a ameaça à pessoa ou à família da outra parte capaz de incutir medo de dano pessoal ou material caso não realize o negócio jurídico pretendido pelo coator. É o receio do mal que leva o coagido ou coato, ilicitamente ameaçado, à manifestação ou declaração negocial. A manifestação de vontade negocial do coagido, apesar de viciada, é consciente. O coagido vê-se diante do dilema de não realizar o negócio e sofrer o provável dano ou realizá-lo para evitar este, com possibilidade de pleitear sua anulação. Há, portanto, consciência dos resultados, “embora a submissão à ameaça fosse a única escolha normal” 5.

A coação há de ser tal que sem ela não se realizaria o negócio jurídico, ou seja, não haveria manifestação ou declaração de vontade da pessoa que se considera coagida. Constrangimentos são comuns na vida, e se todos eles fossem equiparados à coação poriam em risco a segurança jurídica. Por essa razão, o Código Civil refere-se a “fundado temor de dano iminente e considerável”. Não há coação se o temor é fruto de suposição e não tem como causa ameaça comprovada e indiscutível. O dano iminente é o que poderá ocorrer imediatamente se o coato recusar-se a realizar o negócio jurídico. Dano considerável é o proporcional ao objeto do negócio jurídico e o que pode resultar em prejuízo moral ou material insuportável ao coato, de acordo com as circunstâncias. Não há, pois, espaço para a chamada coação acidental ou incidental, para fins de anulabilidade, ainda que possa ser causa de pretensão a indenização por danos morais e materiais.

Situações de coação aparente são irrelevantes para o direito. O temor de desagradar um parente ou pessoa influente — temor reverencial — não configura coação; o negócio jurídico concluído é válido. Consequentemente, a exposição de vontade negocial que se dê por influência de outra pessoa, pouco importam as razões, mas sem ter havido ameaça, não afeta a validade do negócio jurídico. Tampouco há coação se o declarante se deixou levar por falsas informações, sem cuidar de confirmá-las. Essas situações não se enquadram no requisito do “fundado temor”.

Igualmente, não se considera coação a ameaça de exercício regular de direito subjetivo. Há ameaça, mas não coação. Cite-se a situação comum do credor de ameaçar o devedor inadimplente de cobrar em juízo o débito.

São requisitos para ocorrência da coação: a) que seja essencial ou principal; b) que haja ânimo ou intenção de extorquir a declaração negocial; c) a gravidade do dano; d) a ilicitude da ameaça, em razão dos meios empregados ou dos fins colimados; e) justificado receio de realização do mal.

Segundo a contestação, de acordo com os comprovantes juntados, houve, após a apresentação da primeira minuta do acordo de divórcio, elaborado pelos advogados comuns, dois meses de tratativas, contrapropostas, concessões recíprocas, o que afasta a ameaça qualificada como coação, pois o que a autora denominou de pressão configura exercício regular de direito de ver concluído o divórcio. Também é exercício regular de direito a alegada ameaça de pleitear em juízo a guarda unilateral das filhas, se o divórcio amigável não fosse consumado. A ameaça que se qualifica como dolo é a ilícita; porém, os meios empregados foram lícitos e os fins colimados eram lícitos. Note-se que a autora não era pessoa inexperiente ou desinformada, pois é profissional de engenharia, tinha acesso a informação jurídica e estava assessorada por advogados, incluindo seu irmão.

VI - SOBRE A LESÃO, SEUS ELEMENTOS CARACTERIZADORES E O EQUÍVOCO SOBRE FATOS QUE A CONFIGURARIAM

Para fundamentar o pedido de anulação da partilha, constante do acordo de divórcio, aponta os seguintes fatos que configurariam lesão: 1) Excesso de meação desproporcional, que teria sido constatado pela receita estadual de São Paulo, quando da apuração do tributo devido, muito além do declarado no acordo de divórcio; 2) Ato consciente e positivo do réu para se beneficiar.

Como se depreende do relato dos fatos desta consulta, a diferença desproporcional do excesso da meação decorreu de equívoco da receita estadual, reconhecido posteriormente por esta, a qual veio a confirmar os valores tais como apresentados na partilha do acordo de divórcio, em decisão final.

A lesão é o defeito do negócio jurídico caracterizado pela vantagem desproporcional de uma das partes, que age de má-fé, aproveitando-se da situação de vulnerabilidade da outra. É defeito do negócio jurídico, mas não vício do consentimento, pois não há desconformidade entre a vontade real e a que se exteriorizou (existente no erro, no dolo, na coação). A lesão existe ainda quando a iniciativa do negócio provém do lesado. As hipóteses de vulnerabilidade são: a) a inexperiência da outra parte; b) a premente necessidade. O caso, sob consulta, apenas poderia se enquadrar na primeira hipótese, ou seja, inexperiência da autora quanto à composição dos valores financeiros ou imobiliários dos bens comuns descritos na partilha.

A inexperiência é verificada ante as circunstâncias em que se encontram as partes e as peculiaridades do negócio jurídico. Não há regras que possam delimitá-la, mas há padrões comuns de conduta que se observam em cada tipo de negócio jurídico, ou nos negócios em geral (falta de experiência geral da vida, ou em matéria de negócios, ou em determinado tipo de negócio).

Segundo José Carlos Moreira Alves, a disciplina da lesão no Código Civil afastou-se do sistema alemão e italiano, por não se preocupar em punir a atitude maliciosa do favorecido, mas sim em proteger o lesado, tanto que, ao contrário do estado de perigo, em que o beneficiário tem de conhecê-lo, na lesão o próprio conhecimento é indiferente para que ela se configure6. Contudo, não se presume a premente necessidade ou a inexperiência do lesado, cabendo a este demonstrá-la.

A autora da ação anulatória é engenheira civil, trabalhou em uma das grandes construtoras do país, e ocupou altos cargos em três grandes bancos, no Brasil, no segmento de private banking, gerenciando investimentos de grandes fortunas.

É dotada, portanto, de expertise tanto no setor imobiliário quanto no de finanças. Poucas pessoas estariam tão aptas quanto ela para compreender e apurar os diversos bens e valores comuns do casal, constantes da proposta de partilha, cuja aquisição e gestão que ela compartilhou durante uma década de matrimônio. O fato de ter se afastado da vida laboral, após o casamento, pode ter reduzido sua experiência nessas matérias, mas não ao ponto de extinguir a expertise adquirida ou suas habilitações profissionais.

O Código Civil de 2002, art. 157, alude a “prestação manifestamente desproporcional”, valendo-se de conceito indeterminado, apenas verificável em cada situação concreta, abandonando a prefixação da vantagem abusiva (50% ou 20%), da tradição do direito brasileiro. A desproporção manifesta afasta-se de qualquer referência predeterminada e ingressa em campo aparentemente inseguro. Não é qualquer desproporção que pode levar à invalidade do negócio jurídico, mas a que ressalta o evidente desequilíbrio das prestações, ou a quebra desarrazoada da equivalência material, segundo as circunstâncias. O direito contemporâneo afastou-se da ideia de “justo preço”, que tanto atormentou a doutrina antiga.

A verificação da desproporção leva em conta a data da celebração do negócio jurídico, considerando os valores que eram correntes nessa ocasião. No direito italiano, o art. 1.448 do Código Civil estabelece, diferentemente, que a lesão perdura até o momento em que é ajuizada a ação. A lei brasileira (§ 1º do art. 157 do Código Civil), no entanto, procura solucionar o problema que advém da referência temporal dos valores, optando pela data da celebração e não a do período da execução do negócio jurídico, ou mesmo a data do ajuizamento da ação anulatória. Assim, avaliação realizada a posteriori, como fez unilateralmente a autora, é de nenhuma valia para se apurar a existência ou não de lesão.

A lei não exige que a partilha dos bens comuns do casal, no divórcio, tenha igualdade matemática. Os cônjuges divorciandos, no exercício de sua autonomia privada, são livres para fazê-la, ainda que um deles fique mais ou menos aquinhoado. Essa diferença tem interesse apenas tributário, para fins de pagamento do tributo sobre o que se considerada doação de um para outro (ITCMD – Imposto de transmissão causa mortis e doação), como aconteceu neste caso. A autora reconhece, como se lê na petição inicial, que anuiu no excesso de meação (tópico “Da lesão”, fls. 30), no montante que, afinal, foi confirmado pela receita estadual.

Assim, não existindo desproporção manifesta não consentida e obrigação de prestação por pessoa inexperiente, que são os requisitos do art. 157 do Código Civil, não há de se cogitar de lesão.

VII - SOBRE SE HOUVE VIOLAÇÃO A BOA-FÉ E SE ESTA É VÍCIO OU DEFEITO DA DECLARAÇÃO DE VONTADE PARA FINS DE ANULAÇÃO DE PARTILHA

Não houve desproporção na partilha que maculasse seu equilíbrio. Não há norma legal ou princípio jurídico, no direito brasileiro, que determinem que a igualdade matemática de quinhões é a única que contemple a boa-fé. O excesso de meação, em favor do réu, decorreu da complexidade do patrimônio do casal e foi objeto de negociações e concessões recíprocas. O princípio da boa-fé não afasta o princípio da autonomia privada das partes e é compatível com a liberdade negocial. A insurgência da autora não é ao excesso da meação, mas ao que considerou desproporção exorbitante daquele percentual acordado pelo casal. A autora reconhece, na petição inicial, ter havido concordância de sua parte a esse montante de excesso de meação, certamente por ser compensada com bens com maior liquidez, com o comodato do valioso apartamento onde viveu o casal (bem particular do réu), com a liberação de todas as despesas de manutenção deste, com a titularidade dos respectivos bens móveis e com a pensão alimentícia.

Pelos fatos relatados e provas da efetiva negociação e contrapropostas, durante dois meses após a apresentação da minuta de acordo de divórcio, elaborada pelos advogados escolhidos por ambas as partes, não se pode dizer nem se presumir que houve má-fé, malícia ou esperteza do então marido e que a então esposa seria pessoa hipossuficiente técnica e emocionalmente. A hipossuficiência técnica é desmentida por sua demonstrada expertise patrimonial e financeira, decorrente de sua profissão de engenheira civil e de sua experiência acumulada, antes do casamento, de gestão financeira em elevadas funções bancárias, que foi aproveitada em aquisições e ampliação do patrimônio do casal. A hipossuficiência emocional é fruto das ilações que enfraquecem a dignidade da mulher. A afirmação de que a mulher, na contemporaneidade, é sempre a parte frágil e vulnerável, merecedora de tutela quando o casamento chega ao fim, perpetua o discurso patriarcal e degrada a condição feminina. No caso em exame, a suposta hipossuficiência emocional é desmentida por sua atuação permanente nas negociações e pelas glosas que fez à minuta do acordo de divórcio. O fato de estar fora do mercado de trabalho não lhe suprimiu a experiência profissional que acumulou antes do casamento, que lhe pôs em situação vantajosa para examinar e propor o que entendesse sobre o patrimônio comum, adquirido e gerido com sua participação.

Por outro lado, a eventual hipossuficiência de uma das partes do negócio jurídico bilateral não é fundamento da incidência da boa-fé. Diz respeito ao equilíbrio de direitos e obrigações, como estabelece explicitamente o Código de Defesa do Consumidor (art. 4º), para as relações de consumo. Ainda assim, no plano objetivo da equivalência das prestações e não do desequilíbrio subjetivo dos contratantes.

Ampliando-se os horizontes da análise: pode a violação da boa-fé ser fundamento legal para a anulação de partilha, de acordo com os artigos 113 e 422 do Código Civil, como sustenta a autora da ação anulatória de partilha?

O art. 113 do Código Civil estabelece que os negócios jurídicos devem ser interpretados conforme a boa-fé. Essa norma legal elege a boa-fé como critério de interpretação. Não se confunde com as hipóteses de anulação de partilha, previstas no art. 2.027 do Código Civil, pois sua violação não configura vício ou defeito do negócio jurídico (arts. 138 a 165 do Código Civil).

Por seu turno, o art. 422 do Código Civil estabelece que os contratantes são obrigados a guardar na conclusão ou na execução do contrato o princípio da boa-fé. A partilha é negócio jurídico bilateral, mas não é contrato, pois nem todo negócio jurídico bilateral é contrato. É da natureza do negócio jurídico bilateral que a exteriorização da vontade de cada parte (lado) alcance a esfera jurídica da outra. As vontades são distintas, pois envolvem interesses distintos, que se conjugam em concordância. Isso, que é comum nos negócios jurídicos bilaterais, não torna indistintas suas espécies, sendo o contrato a mais importante delas. Mas, além dos contratos há outros negócios bilaterais, como os denominados acordos em geral, para composição de interesses, como o acordo entre acionistas, ou os acordos de direito de família ou sucessões, como o de divórcio, ou acordo autônomo de partilha de bens oriundos de herança ou divórcio. Nesse sentido, o art. 422 tem finalidade distinta da pretendida anulação de partilha.

O dever de boa-fé, previsto no art. 422 do Código Civil, decorre de norma cogente, que se impõe independentemente das vontades dos contratantes. Sua não observância torna nula a cláusula por ter por objetivo “fraudar lei imperativa” (Art. 166, VI, do Código Civil). Compreende finalidade totalmente distinta da anulação de partilha, porque esta é dependente da iniciativa do suposto prejudicado e de acordo com as hipóteses legais de vício ou defeito da declaração de vontade negocial.

A boa-fé tem escopos diversos, no direito brasileiro contemporâneo, mas nenhum deles abriga a pretensão de anulação de acordo de divórcio e, muito menos, de partilha. A boa-fé ora tem escopo de cânone de interpretação do negócio jurídico (CC, art. 113), ora de integração compulsória de dever geral de conduta no contrato (CC, art. 422), ora de vedação de conduta contrária, neste caso importando ilicitude (por exemplo, CC, art. 187 – abuso do direito).

O que mais ressalta, na sistemática adotada pelo direito brasileiro, é o dever geral de conduta. Interessam as repercussões de certos comportamentos na confiança que as pessoas normalmente neles depositam. Confia-se no significado comum, usual, objetivo da conduta ou comportamento reconhecível no mundo social. A boa-fé objetiva importa conduta honesta, leal, correta. É a boa-fé de conduta. Para António Manuel da Rocha e Menezes Cordeiro7, a confiança exprime a situação em que uma pessoa adere, em termos de atividade ou de crença, a certas representações, passadas, presentes ou futuras, que tenha por efetivas; o princípio da confiança explicitaria o reconhecimento dessa situação e a sua tutela.

Sob qualquer ângulo de consideração da boa-fé objetiva, ela é imprestável como critério de anulação do negócio jurídico. Na interpretação, busca-se dar sentido ao negócio jurídico que seja em conformidade com a boa-fé. Como dever geral de conduta, integra-se compulsoriamente aos deveres de prestação. Como vedação de conduta contrária, incorre-se em nulidade, que é distinta da anulação.

A boa-fé não é mero topos argumentativo. É princípio jurídico, como tal norma jurídica, exigente de configuração precisa de seu suporte fático. Extraem-se da petição inicial da ação anulatória as seguintes condutas violadoras que violariam a boa-fé:

1) “violada pelo Réu, ao propor, induzir, pressionar e até coagir a Autora a aceitar a sua proposta de partilha”;

2) “violou a boa-fé subjetiva, pois se aproveitou da inexperiência da Autora”.

A primeira conduta não corresponde aos requisitos formadores da boa-fé objetiva, tendo já sido utilizada para a imputação de coação. Boa-fé objetiva e defeito de negócio jurídico são conceitos não intercambiáveis e inconfundíveis.

A segunda conduta confunde boa-fé objetiva com boa-fé subjetiva e utiliza o mesmo argumento já manejado para imputação da lesão (inexperiência da autora). Qualifica-se como boa-fé subjetiva a crença verdadeira de que a coisa é sua ou que não há qualquer impedimento para adquiri-la. Diz-se, igualmente, boa-fé de crença ou de ignorância, segundo as perspectivas positiva ou negativa. É um conceito puramente psicológico que reside na ignorância de que se lesam direitos alheios, ou na íntima convicção de que se age em conformidade com o direito. Exemplo recorrente é de pessoa que adquire terreno, cuja localização foi-lhe indicada pelo vendedor ou corretor, mas que constrói, por engano, em parte ou na totalidade do terreno vizinho, crendo ser o seu. Desse conceito de boa-fé subjetiva resulta, como seu reverso, o de má-fé subjetiva. Incorre em má-fé o possuidor que não ignora o obstáculo que o impede de adquirir a coisa. Diferentemente, a boa-fé objetiva diz respeito ao comportamento e à conduta, e não à crença ou ignorância. Por essas razões de fundo, é inteiramente inadequada a alusão à boa-fé subjetiva para os fins propostos na ação anulatória de partilha.

VIII - CONDUTAS DA AUTORA DA AÇÃO QUALIFICADAS COMO COMPORTAMENTO CONTRADITÓRIO OU VENIRE CONTRA FACTUM PROPRIUM

O direito civil contemporâneo fez brotar institutos próprios que tiveram origem comum no princípio da boa-fé, recuperando a força ética de antigas lições. Entre eles, encontra-se o dever jurídico de não agir contra o ato próprio, também denominado comportamento contraditório. Significa dizer que a ninguém é dado valer-se de determinado ato, quando lhe for conveniente e vantajoso, e depois voltar-se contra ele quando não mais lhe interessar. Esse comportamento contraditório denota intensa má-fé, ainda que revestido de aparência de legalidade ou de exercício regular de direito. Essa teoria radica no desenvolvimento do antigo aforismo venire contra factum proprium nulli conceditur, significando que a ninguém é lícito fazer valer um direito em contradição com sua anterior conduta, quando essa conduta, interpretada objetivamente segundo a lei, os bons costumes e a boa-fé, justifica a conclusão que não se fará valer posteriormente o direito que com estes se choque8. O instituto encontra-se consolidado na doutrina e na jurisprudência brasileiras. Exemplos desta, no STJ, são o REsp 95.539 e o REsp 60.129.

Considera-se inadmissível toda pretensão lícita, mas objetivamente contraditória com respeito ao próprio comportamento anterior efetuado pelo mesmo sujeito. O fundamento radica na confiança despertada no outro sujeito de boa-fé, em razão da primeira conduta realizada. A boa-fé restaria vulnerada se fosse admissível aceitar e dar curso à pretensão posterior e contraditória. São requisitos: a) existência de uma conduta anterior, relevante e eficaz; b) exercício de um direito subjetivo pelo mesmo sujeito que criou a situação litigiosa devida à contradição existente entre as duas condutas; c) identidade de sujeitos que se vinculam em ambas as condutas9. Acrescenta-se a legítima confiança de outrem na conservação do sentido objetivo desse comportamento ou conduta10.

Também na legislação o instituto se cristalizou: o Código Civil de 2002 introduziu norma (art. 330) cuja natureza corresponde ao dever de não contradizer o ato próprio: “O pagamento reiteradamente feito em outro local faz presumir renúncia do credor relativamente ao previsto no contrato”. Em outras palavras, o credor não pode fazer valer o estipulado no contrato contrariando a conduta que adotou, ao admitir que o adimplemento se fizesse em outro lugar, pois gerou a confiança do devedor que assim se manteria.

Ante esse quadro conformador do dever jurídico de não agir contra os atos próprios, as condutas imputadas à autora da ação de anulação de partilha qualificam-se como comportamento contraditório que o violam e o princípio da boa-fé que a ele subjaz, como se especifica:

a) Comportamento originário: condicionar o divórcio consensual à escolha dos advogados que fossem pessoas de sua intimidade e confiança, mas que o pagamento dos honorários ficassem por conta do ex-marido. Comportamento contraditório: voltar-se contra ele, ao imputar ao ex-marido dolo, em razão desse comportamento originário, buscando justificativa em presunção de conluio para prejudicá-la;

b) Comportamento originário: participar das negociações, oferecer contrapropostas, transigir durante dois meses; comportamento contraditório: voltar-se contra ele, alegando estado emocional vulnerável;

c) Comportamento originário: condicionar a aceitação da partilha dos bens comuns ao recebimento de valores com maior liquidez; comportamento contraditório: voltar-se contra ele, ao promover unilateralmente, após o divórcio, avaliação imobiliária e alegar prejuízo com a partilha.

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Sobre o autor
Paulo Lôbo

Doutor em Direito Civil pela Universidade de São Paulo (USP), Professor Emérito da Universidade Federal de Alagoas (UFAL). Foi Conselheiro do CNJ nas duas primeiras composições (2005/2009).︎ Membro fundador e dirigente nacional do IBDFAM. Membro da International Society of Family Law.︎ Professor de pós-graduação nas Universidades Federais de Alagoas, Pernambuco e Brasília. Líder do grupo de pesquisa Constitucionalização das Relações Privadas (UFPE/CNPq).︎

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

LÔBO, Paulo. Anulação de partilha e boa-fé. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 28, n. 7412, 17 out. 2023. Disponível em: https://jus.com.br/pareceres/105915. Acesso em: 5 nov. 2024.

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