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Legítima defesa do agressor

01/08/1999 às 00:00
Leia nesta página:

Parecer polêmico, em que o autor do homicídio foi quem começou os atos concretos de provocação, mas acabou acuado pela vítima

Inquérito Policial 202/96

PARECER

MM Juiz

Consta do inquérito policial anexo que

AFS, brasileiro, solteiro, estudante, nascido a ... (.. anos), em Vitória ES, filho de VFS e LGGS, residente a Av. ... - Cariacica ES.,

no dia 26 de novembro p. p. chegando em sua residência encontrou na sala, sua irmã, KRSC, com o novo marido, a vítima, LCPS.

Cumprimentou quem viu, dirigindo-se ao seu quarto, para assistir uma partida futebolística.

Momentos depois, seu sossego foi perturbado.

Em hora precedente, ali chegara como se diz, "a bordo de um Astra vermelho", JAC, ex-marido de KRSC, a irmã antes mencionada e que como sobredito se achava acompanhada da vítima.

Fora levar de volta a filha que tem com KRSC, com a qual passara o final de semana, como fazem alguns pais separados, quando a guarda do filho permanece com a mulher.

A vítima ter-se-á enchido de inveja, tudo fazendo crer, que, porque não tinha "um carrão daquele" e passa a destratar Joel, inclusive atirando pedra no seu automóvel. JAC não reagiu, só fez sair, e a vítima ainda correu atrás, ainda que tenha voltado depois com a Polícia.

A sogra, mãe de KRSC e de AFS, recriminou a vítima pelo indevido comportamento, no que chegou a ser agredida, não só com palavras o que já seria muito, mas fisicamente.

Claro que AFS assumiu "as dores da mãe". Apossou-se de um revólver que a prova carreada aos autos comprova que não tinha a mínima intenção de usar, chegou a disparar para cima, fugiu com ele da perseguição da vítima, até que se deparou com a alternativa, matar ou morrer. Escolheu a própria vida.


Toda a prova é boa no sentido de retratar um caso de autêntica legítima defesa como poucas vezes se vê.

Art. 23. Não há crime, quando o agente pratica o fato:

II- em legítima defesa;

Art. 25. Entende-se em legítima defesa quem, usando moderadamente dos meios necessários, repele injusta agressão, atual ou iminente, a direito seu ou de outrem.

No Direito italiano:

52. Difesa legittima - Non è punibile chi ha commesso il fatto per esservi stato costretto dalla necessità di difendere um diritto proprio od altrui contro il pericolo attuale di un’offesa ingiusta, sempre che la difesa sia proporzionata all’offesa.

No caso em apreço, tenho como reunidas todas as características da legítima defesa como a descrevem, seja o código brasileiro como o italiano, bem como é interpretada pela Doutrina e pela Jurisprudência abundante, onde se destaca:

"Várias teorias foram expostas para explicar os fundamentos da legítima defesa. As teorias subjetivas, que a consideram como causa excludente da culpabilidade, fundam-se na perturbação de ânimo da pessoa agredida ou nos motivos determinantes do agente, que conferem licitude ao ato de quem se defende, etc. As teorias objetivas, que consideram a legítima defesa como causa excludente da antijuridicidade, fundamentam-se na existência de um direito primário do homem de defender-se, na retomada pelo homem da faculdade de defesa que cedeu ao Estado, na delegação de defesa pelo Estado, na colisão de bens que o mais valioso deve sobreviver, na autorização para ressalvar o direito do agredido, no respeito à ordem jurídica, indispensável à convivência ou na ausência de injuridicidade da ação agressiva". (Júlio Fabbrini Mirabete - Manual de Direito Penal, vol. 1 - 7ª edição Ed. Atlas).

"A origem da legítima defesa perde-se na noite dos tempos. Nela, o justo luta contra o injusto. O direito do homem reagir, quando agredido injustamente, remonta aos tempos mais antigos, e a civilizações mais remotas.

De fato, constitui até mesmo atributo da natureza humana, ou faz parte de seus movimentos instintivos, a reação imediata e repentina ao gesto ameaçador ou qualquer ação que venha ferir a sua integridade física, seu patrimônio, sua moral, sua vida ou de qualquer ente querido". (Desembargador A. J. M. Feu Rosa - Direito Penal, parte geral, pag. 352 - Editora Revista dos Tribunais).

É um direito que deriva do Estado e conforme Manzini (citado pelo autor supra citado): "o instituto da legítima defesa representa uma delegação hipotética e condicionada ao poder de polícia que o Estado faz ao particular por razões de necessidade, quando reconhece não poder prestar efetivamente a ele, ou a outrem, sua proteção oportuna".

"Constituindo a legítima defesa, no sistema jurídico-penal vigente, uma causa de exclusão da antijuridicidade, tem-se que quem defende, embora violentamente, o bem próprio ou alheio, injustamente atacado, não só atua dentro da ordem jurídica, mas em defesa dessa mesma ordem. É que na legítima defesa não é o poder público que confere ao agente a faculdade de repelir a violência pela violência, visto que tal atitude constitui um direito primário do cidadão". (TACRIM-SP - AC Rel. Ferreira Leite - RT 4412/405).

Antonio Francisco esteve absolutamente dentro dos parâmetros exigidos para o reconhecimento da legítima defesa.

Que não seja causa de irreconhecimento dos direitos fundamentais do cidadão alguma atitude que nós pessoalmente pratiquemos. Acho que o juramento constitucional que proferimos investindo-nos do cargo com que defendemos a sociedade, seus interesses difusos e até sua soberania, uma atitude só formal, sem ressonância futura e que não valha a pena ser praticada, não tem sentido. No caso, proceder a denúncia.

Por fim, entre os bens juridicamente tutelados se destaca a vida e não é por outra razão que a parte especial do Código Penal Brasileiro se abre com os crimes contra a pessoa e antes de qualquer outro, com o que diz respeito a esta mesma vida.

Em assim sendo, "embora não seja dever jurídico, a legítima defesa é dever moral ou político que a nenhum pretexto deve deixar de ser estimulado pelo Direito Positivo" (TACRIM-SP -AC - Rel Albano Nogueira - RT 562/355),

  • considerando todo o exposto, no exercício da independência funcional que me é conferida constitucionalmente, como senhora da ação, como forma de dizer à Sociedade que o Ministério Público não é o tirano pintado até por algumas defesas judicialmente e legalmente desavisadas;

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  • considerando que pessoas como o acusado que se mostrou digno e honrado, apresentando-se espontaneamente, facilitando em tudo a instrução criminal, devem receber, se não, o aplauso, porque a vida de cada um pertence somente Àquele que a deu, mas o tratamento equânime, porque não quis delinqüir;

  • considerando ainda que pobremente falando, a necessidade de nos ocuparmos com outras condutas delituosas, crimes em potencial, e a exiguidade do tempo para tantos;

  • considerando enfim, que brotou do mais íntimo de mim, a convicção de não dever usar, escrevi, não dever usar de denúncia, porque tem-se constituído em praxis deixar a aferição da hipótese de legítima defesa, para as alegações finais ou até para um pouco mais adiante, para ser reconhecida pelo Júri, tamanha a convicção que me possui de estar frente a um caso de legítima defesa;

  • considerando que "Libertas inaestimabilis res est";

Opino pelo arquivamento

O Objetivo é evitar que este ato seja interpretado diversamente ou sirva no mundo em que ele vive, de incentivo ao crime. Malgrado nosso, é forçoso admitir tal hipótese. O bem inestimável da cultura que gera o bom discernimento ainda se constitui em privilégio de poucos;

2. remessa do presente à Corregedoria Geral do Ministério Público para conhecimento do pedido e posterior devolução.

N. termos
P. deferimento

Cariacica, 25 de março de 1996

Marlusse Pestana Daher
promotora de Justiça

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Sobre a autora
Marlusse Pestana Daher

promotora de Justiça no Espírito Santo, radialista, jornalista, escritora, especialista em Direito Penal e Processual Penal, membro da Academia Feminina Espírito Santense de Letras, ex-dirigente do Centro de Apoio Operacional às Promotorias do Meio Ambiente e do Patrimônio Histórico.

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

DAHER, Marlusse Pestana. Legítima defesa do agressor. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 4, n. -1431, 1 ago. 1999. Disponível em: https://jus.com.br/pareceres/16286. Acesso em: 29 mar. 2024.

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