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Corte de água por atraso no pagamento é inconstitucional

01/10/2001 às 00:00
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Parecer ministerial em mandado de segurança impetrado por usuária que teve o fornecimento de água cortado por falta de pagamento, o qual defende a inconstitucionalidade da Lei 8.987/95 (Lei das Concessões de Serviços Públicos).

            PROC nº 105000142635

            IMPETRANTE: MARIA APARECIDA DIAS MARTINS

            IMPETRADO: CHEFE DO ESCRITÓRIO DISTRITAL DA COMPANHIA DE SANEAMENTO DE MINAS GERAIS - COPASA

            AÇÃO: MANDADO DE SEGURANÇA

            PARECER MINISTERIAL /2001

MANDADO DE SEGURANÇA – LEI DE CONCESSÃO PÚBLICA – INCONSTITUCIONALIDADE – DIREITO DO CONSUMIDOR – ÁGUA – SERVIÇO PÚBLICO ESSENCIAL – DIGNIDADE DA PESSOA HUMANA – ESTADO DE NECESSIDADE – CONSTRANGIMENTO

            A lei de concessão pública, em seu art. 6º, II, § 3º, está eivada de inconstitucionalidade posto que ao legislador ordinário foi deferida a defesa do consumidor como direito público subjetivo.

            O odioso proceder das empresas concessionárias de serviço público essencial – corte no fornecimento de água – constitui violação de direito fundamental do consumidor, não podendo sofrer solução de continuidade.

            É inadmissível o corte de água de usuário inadimplente em flagrante estado de necessidade pela empresa concessionária posto constituir meio coercitivo para cobrança de dívida, sendo certo a existência de Poder constitucionalmente previsto para a pacificação de interesses em conflituosidade.

- Pelo reconhecimento da inconstitucionalidade do art. 6º, II, § 3º, da Lei federal nº 8987/95. Pela concessão definitiva da ordem pleiteada.


I. RELATÓRIO

            MM. Juiz,

            Maria Aparecida Dias Martins, qualificada nos autos, impetrou, com fulcro nos artigos 1º e 7º, II da lei nº 1533/51, mandado de segurança, com pedido liminar, em face de ato do Chefe do Escritório Distrital da Companhia de Saneamento de Minas Gerais – COPASA.

            Alega a Impetrante, em síntese, que a Autoridade coatora cortou o fornecimento de água da mesma sob o color de inadimplência das contas referentes aos meses de Julho, Agosto, Setembro, Outubro, Novembro, Dezembro de 1999 e Janeiro, Fevereiro, Julho, Agosto e Setembro de 2000.

            Aduz que tal ato está eivado de ilegalidade posto que a água é bem essencial à vida humana e, portanto, sua prestação deverá ser contínua.

            Ademais, assevera perceber de pensão o valor de R$ 184,34 mensais, possuindo três filhos menores.

            Que, lado outro, encontra-se enferma tendo que dispender quantia considerável no seu tratamento.

            Arrola doutrina e jurisprudência que amparam sua tese, até mesmo do e. S.T.J..

            Por derradeiro, requer a concessão de liminar inaudita altera pars para que a Autoridade Impetrada faça o religamento da água da Impetrante, independentemente do pagamento das contas, no mérito, requer torne-se definitiva a liminar concedida.

            Com a inicial vieram documentos de fls. 18/91.

            Decisão deferindo a liminar pleiteada e determinando a notificação da Autoridade Impetrada às fls. 92.

            Notificação às fls. 96.

            Informações às fls. 97/210, refutando os argumentos fáticos e jurídicos apresentados pela Impetrante e argüindo preliminar de litispendência.

            A Impetrante manifestou-se em réplica sobre a preliminar às fls. 212/213.

            Vieram-me os autos para parecer.

            É o relatório. Passo a opinar.


II. FUNDAMENTAÇÃO

            Cabe, inicialmente, apreciar a preliminar levantada pela Autoridade Impetrada no que toca à litispendência.

            Estou que a mesma não deve prosperar.

            Por determinação legal, só existirá litispendência quando houver a propositura da mesma ação quando esta já estiver proposta e ainda em curso.

            Para se descobrir se se trata da mesma ação, há de se perquirir sobre a identidade dos sujeitos, da causa de pedir e do pedido, ou seja, sobre os elementos da ação.

            PROCESSO CIVIL – AGRAVO REGIMENTAL – LITISPENDÊNCIA – IDENTIDADE DAS PARTES, PEDIDO E CAUSA DE PEDIR – COISA JULGADA – 1. A identidade de ações ocorre havendo as mesmas partes, pedido e causa de pedir (tecnicamente denominada de Litispendência), devendo a autoridade judiciária extinguir todos os processos idênticos instaurados posteriormente. 2. Havendo decisão judicial transitada em julgado, configurando-se a Coisa Julgada, deve a autoridade judiciária, igualmente, extinguir os processos idênticos instaurados posteriormente. 3. Agravo Regimental conhecido e não provido. (STJ – AGRAGA 245074 – RJ – 5ª T. – Rel. Min. Edson Vidigal – DJU 01.08.2000 – p. 00310)

            No caso vertente, como bem salientou a Impetrante, não há identidade de causa de pedir – remota – pois trata-se de dívidas referentes a meses distintos, ou seja, o fattispecie é distinto.

            Assim, o escólio de J. J. Calmon de Passos, forte no ensinamento de Giovani Conso:

            "Queremos, entretanto, ressaltar que um mesmo fato (acontecimento da vida) pode revestir-se de mais uma qualificação jurídica, por conseguinte ser fato jurídico em mais de um sentido. Como, por igual, relativamente a uma relação, mais de um fato juridicamente qualificado pode existir. Fala-se, no particular, em fattispecie, ou fato típico complexo. Se a conseqüência é fato novo que se invoca, não há por que se falar em identidade de causa de pedir." (g.n.)(1)

            Ausente, portanto, a identidade sobre a causa de pedir, inviável se torna a existência de litispendência.

            Lado outro, ocorre, a meu sentir, a conexão com a ação cujo processo está em fase de admissão do recurso especial, mencionada pela Autoridade Impetrada, posto que há, entre as ações (esta e a que tramitou perante a 6ª Vara Cível), identidade de pedido – imediato e mediato – sugerindo, portanto, a reunião dos processos.

            Nada obstante, e ainda tendo em vista a menção feita pela Autoridade Impetrada, tem-se que já foi proferida sentença naquela, tornando-se impossível, destarte, a reunião desejada.

            "Termo final. As ações devem receber julgamento conjunto, como o advérbio simultaneamente está a indicar. O termo final para a reunião, portanto, é o momento imediatamente antecedente à prolação da sentença de mérito. Proferida a sentença, não é mais possível ordenar-se a reunião de ações conexas." (2)

            Ex positis, opino pelo não acolhimento da preliminar.

            Meritoriamente, pretende a Impetrante, via mandamus, que a Autoridade impetrada faça o religamento de seu hidrômetro para o fornecimento de água independentemente do pagamento das contas em atraso ao argumento de que trata-se de serviço público essencial, e, portanto, deverá ser prestado de forma contínua.

            Trata-se de assunto deveras tormentoso mas que, não obstante, deve ser encarado com a cautela necessária já que em litígio interesses sobremaneira vulneráveis.

            Sem embargo, estou que o pedido de segurança procede de forma total.

            Com efeito, vislumbro que a pretensão da Impetrante é totalmente legítima.

            A despeito de autorizados entendimentos em contrário, estou que, em verdade, não pode a concessionária de serviço público essencial paralisar a prestação do referido serviço ao argumento de que o usuário não quitou dívida preexistente.

            Trata-se, como demonstrado em diversos pontos da vexata quaestio debatida, de serviço público essencial à vida humana, e que, por conseqüência, deverá ser prestado de forma contínua.

            Lado outro, a vingar a tese de que a Autoridade impetrada poderia sponte sua cortar o fornecimento de água dos consumidores inadimplentes, estaríamos retrocedendo na história da humanidade e admitindo a justiça privada, sobrepujando a autoridade judiciária e a própria existência do Estado Democrático de Direito, encaminhando-nos para a prefeita barbárie.

            Ademais, não comungo do entendimento esposado nos diversos arestos trazido à lume pela Autoridade Impetrada, porquanto não vislumbro derrogação tácita do Código de Defesa do Consumidor, no particular, pela Lei das Concessões no tocante ao corte de fornecimento de energia elétrica, não obstante a mesma hierarquia normativa.

            Explico.

            A despeito de possuírem assento constitucional, não podemos negar a prevalência dos direitos conferidos à pessoa enquanto consumidora frente ao método de delegação escolhido pelo Poder Público para transferir o exercício de serviço público ao particular.

            E o motivo é simples.

            A Constituição confere, como se disse, direitos aos consumidores, ao passo que, ao tratar das concessões no art. 175 da Carta, impõe ao Poder Público a prestação de serviços públicos, sob duas modalidades, a saber: diretamente ou sob o regime de concessão ou permissão (art. 175 CF/88).

            Dessarte, faz-se mister distinguir e sopesar, com auxílio do princípio da hierarquia axiológica (3), as normas em antinomia para valorar de forma escorreita e asseverar que as normas constitucionais possuem hierarquia entre si, e, nesta, os direitos, assim como sua defesa pelo Estado, do homem-consumidor (art. 5º, XXXII da CF/88) sobrepõe-se a métodos de delegação a particulares de serviços públicos.

            Anote-se, ainda, que é direito público subjetivo do consumidor a promoção, pelo Estado, de sua defesa, tornando-se, em virtude de situação topográfica (Tít. II – Dos Direitos e Garantias Fundamentais), cláusula pétrea (art. 60, § 4º, CF/88).

            "O dispositivo sob comento é de transcendental importância, não só por estabelecer um dever para o Estado, como também para autorizar o legislador a que venha estabelecer regras processuais desparificadas, assim como um direito material não necessariamente igualitário, mas que terá, no fundo, a prevalência dos interesses do consumidor." (g.n.) (4)

            O legislador constituinte mostrou-se preocupado sobremaneira com o homem-consumidor – e não poderia, a meu ver, ser diferente posto que vive-se, hodiernamente, numa sociedade de consumo em massa – que fez irradiar efeitos jurídicos que transformam um direito público subjetivo – a promoção da defesa do consumidor pelo Estado – ao ponto de erigi-lo como pilar principiológico da Ordem Econômica e Financeira de todo Estado constituído.

            Nesta linha de pensamento, temos que o preceptivo constante na Lei da Concessão de Serviços Públicos sob o número 6, II, § 3º está eivado de inconstitucionalidade, pois olvidou-se o Estado, por seu Poder constituído legiferante ordinário, de seu dever sobre a promoção daquela defesa, e, em sentido diametralmente oposto, fez menosprezar, com tal norma, a dignidade da pessoa humana, no particular, o consumidor.

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            Vem a calhar o pensamento do ilustre constitucionalista Paulo Bonavides ao comentar sobre a Teoria material da Constituição realizada pela jurisprudência da Suprema Corte americana:

            "Percebe-se ali, claramente, a transição do Estado liberal ao Estado social. Basta para tanto cotejar os métodos de hermenêutica constitucional empregados pelos juízes da sobredita Corte, cujos votos e arestos firmaram a jurisprudência do passado e do presente. A teoria material da Constituição, sem deixar de ser jurídica, tem contudo uma básica inspiração sociológica, que consente, por meio do método de ‘construção’ interpretativa, fazer da lei suprema americana o modelo das Constituições estáveis, o símbolo do reencontro harmônico do Direito com a Sociedade, tão divorciados na ordem constitucional dos países subdesenvolvidos, por não haverem estes ultrapassado ainda a concepção lógica, formalista e ‘geométrica’ de um Direito sem mais fonte que a norma do Código ou da Constituição, nos apertados moldes de um positivismo abstrato e silogístico, de inspiração jusprivatista, emanado das mais antigas e clássicas matrizes civilistas." (g.n.) (5)

            Com efeito, não é dado a Promotores de Justiça e Juízes de Direito terem visão meramente contratual do fornecimento de substância necessária à vida humana, posto que, assim agindo, estarão deferindo à Constituição formas silogísticas que não se compadecem com o Estado Social.

            A visão sociológica da Constituição é necessidade imperiosa a ser levada a efeito, sob pena do afastamento cada vez maior entre a "Constituição formal" e a "Constituição real". (6)

            A outro giro, agora sob o aspecto infraconstitucional, entendo possuir o CDC natureza sistêmica, e, como tal, todas as suas normas estão invariavelmente ligadas aos princípios enunciados tanto pela Constituição Federal – em primeiro lugar – quanto por aqueles inseridos no seu próprio corpo – em instante posterior, avultando neste o princípio da hipossuficiência.

            O princípio sob comento tem sua raiz, sem dúvida alguma, no pensamento aristotélico segundo o qual os iguais devem ter tratamento igualitário e desiguais tratados desigualmente.

            É o que se extrai na melhor doutrina:

            "Para o ato isolado, a responsabilização clássica é suficiente. A insatisfação surge diante dos atos contínuos e organizados.

            "Nestas situações as forças das partes são completamente desequilibradas. De um lado há um produtor, produzindo em massa, manipulando um poder econômico respeitável e munido de amplos departamentos jurídicos. De outro lado há o consumidor final do produto que, se tomado isoladamente, na grande maioria das vezes, é economicamente impotente para levar a cabo uma demanda com empresas que o suplantam em muito." (7)

            Dessa forma, o CDC, como fonte infraconstitucional em direito consumerista, tratou de proteger a parte mais fraca da relação de consumo, ao estatuir que:

            Art. 42 - Na cobrança de débitos, o consumidor inadimplente não será exposto a ridículo, nem será submetido a qualquer tipo de constrangimento ou ameaça.

            Isso ocorre não por se tratar simplesmente de consumidor, senão por ser reconhecida, no Código Consumerista, bem como na Constituição Federal, a fragilidade com que o consumidor figura na relação de consumo nas sociedades de consumo em massa, que ocorre no sistema pátrio.

            E, no caso dos autos, impossível não se reconhecer o flagrante constrangimento que a Impetrante suporta com o corte no fornecimento de água.

            Dessa forma, as empresas concessionárias de serviço público, bem como os entes da Administração Direta, tem o direito de vindicar seus prejuízos pelos meios legais, ou seja, exercendo, como todos, seu direito de ação perante o Poder Judiciário para cobrar seus créditos dos consumidores que não honraram seus débitos.

            Caminho, dessa forma, meu pensamento no sentido de que não há outro meio legal de se cobrar dívidas de consumidor inadimplente senão o exercício do direito de ação a provocar a função jurisdicional do Estado.

            Qualquer conduta em divergência, violará o artigo 42 do CDC, posto traduzir-se-á em mera justiça privada, vedada em nosso ordenamento jurídico (art. 345 CP).

            Ademais, sob diverso aspecto, para o Poder Público, assim como suas concessionárias, existe norma expressa referente aos serviços públicos essenciais. Ei-la:

            Art. 22 - Os órgãos públicos, por si ou suas empresas, concessionárias, permissionárias ou sob qualquer outra forma de empreendimento, são obrigados a fornecer serviços adequados, eficientes, seguros e, quanto aos essenciais, contínuos.

            No precisar o conceito de serviço público essencial, a jurisprudência não vacila:

            ADMINISTRATIVO – MANDADO DE SEGURANÇA – ENERGIA ELÉTRICA – AUSÊNCIA DE PAGAMENTO DE TARIFA – CORTE – IMPOSSIBILIDADE – 1. É condenável o ato praticado pelo usuário que desvia energia elétrica, sujeitando-se até a responder penalmente. 2. Essa violação, contudo, não resulta em reconhecer como legítimo ato administrativo praticado pela empresa concessionária fornecedora de energia e consistente na interrupção do fornecimento da mesma. 3. A energia é, na atualidade, um bem essencial à população, constituindo-se serviço público indispensável subordinado ao princípio da continuidade de sua prestação, pelo que se torna impossível a sua interrupção. 4. Os artigos 22 e 42, do Código de Defesa do Consumidor, aplicam-se às empresas concessionárias de serviço público. 5. O corte de energia, como forma de compelir o usuário ao pagamento de tarifa ou multa, extrapola os limites da legalidade. 6. Não há de se prestigiar atuação da justiça privada no Brasil, especialmente, quando exercida por credor econômica e financeiramente mais forte, em largas proporções, do que o devedor. Afronta, se assim fosse admitido, aos princípios constitucionais da inocência presumida e da ampla defesa. 7. O direito do cidadão de se utilizar dos serviços públicos essenciais para a sua vida em sociedade deve ser interpretado com vistas a beneficiar a quem deles se utiliza. 8. Recurso improvido. (STJ – RO-MS 8915 – MA – 1ª T. – Rel. Min. José Delgado – DJU 17.08.1998 – p. 23)

            Cabe ressaltar comentário sobre este aresto do egrégio Superior Tribunal de Justiça. Data ele de 1998, posterior, portanto, à Lei de Concessão Pública, publicada no ano de 1995.

            Portanto, atualizadíssima a orientação jurisprudencial.

            SERVIÇO PÚBLICO - Suspensão de fornecimento de energia elétrica - Medida tomada por empresa concessionária de serviço público para forçar o pagamento de contas em atraso - Inadmissibilidade - Bem que compõe o direito à cidadania, assegurada constitucionalmente - Voto vencido.

            Ementa Oficial: Não pode a empresa concessionária de serviço público de fornecimento de energia elétrica proceder ao corte no fornecimento para forçar o pagamento, porque tal bem compõe o direito à cidadania, constitucionalmente assegurada.

            Ementa do voto vencido, pela Redação: Não é arbitrária a suspensão de fornecimento de energia elétrica pela empresa concessionária de serviço público aos consumidores inadimplentes, pois seria um verdadeiro caos para a administração dessas empresas se tivessem que executar todos os inadimplentes sem cortar o serviço.

            Reexame de Sentença 54.278-9 - 2.a T. - j. 14.10.1997 - rel. Des. João Maria Lós.

            ACÓRDÃO - Vistos, relatados e discutidos estes autos, acordam os Juízes da 2.a T. Civ. do TJ, na conformidade da ata de julgamentos e das notas taquigráficas, por maioria, vencido o revisor, negar provimento ao recurso. Decisão contra o parecer.

            Campo Grande, 14 de outubro de 1997 - RÊMOLO LETTERIELLO, pres. - JOÃO MARIA LÓS, relator.

            Extrai-se, ainda, do voto condutor do acórdão:

            "Em que pesem seus argumentos, tenho, contudo, que a sentença recorrida deve ser mantida em sua íntegra. É que, conforme bem assinalou o culto Magistrado de 1º grau:

            ‘A Enersul, empresa pública da qual a impetrada é Diretor, detém concessão para explorar serviço público de natureza essencial à dignidade humana, posto que ligada diretamente à saúde e ao lazer’.

            E prossegue:

            ‘A dignidade da pessoa humana é princípio fundamental da Nação, como se lê do art. 1º, III, da CF’.

            No art. 6º da Carta Magna se reconhece que a saúde e o lazer são direitos sociais assegurados a todos os cidadãos e que incumbem ao Estado, conforme se vê do art. 196 da CF, verbis:

            A saúde é direito de todos e dever do Estado, garantido mediante políticas sociais e econômicas que visem à redução do risco de doença e de outros agravos e ao acesso universal e igualitário às ações e serviços para sua promoção, proteção e recuperação.

            Ora, se assim é, não pode a impetrada, como concessionária de serviço público, proceder a cortes no fornecimento de energia elétrica, como forma de coagir ao pagamento, já que se trata - o seu fornecimento - de um dos direitos integrantes da cidadania.

            Alegar, como o fez o ilustre e culto Procurador, que esse procedimento poderia inviabilizar serviços elétricos, pelo não-pagamento, não me impressiona, tendo em vista que, por um lado, a grande maioria da população efetua o pagamento sem maiores problemas, e, em segundo lugar, penso que a impetrada poderia perfeitamente adotar outros mecanismos para forçar o pagamento, quais sejam, a fiança de terceiros ou caução, conforme se faz em outras negociações de comércio em geral.

            O que não se pode admitir são os métodos truculentos e vexatórios de que se valem as concessionárias de serviços públicos, que, ao primeiro sinal de não-pagamento da conta mensal, dirigem-se às residências procedendo ao corte puro e simples, em evidente prejuízo à saúde e ao lazer do cidadão, constitucionalmente assegurados.

            Se não houve o pagamento, incumbe à empresa concessionária do serviço adotar providências que a lei lhe assegura para efetuar a cobrança do que lhe é devido. O que não se pode permitir é a absurda exceção concedida a estas empresas para que procedam à margem da lei e do Judiciário, realizando sua própria justiça, manu militari. Aliás, não raro, a imprensa noticia reações violentas de usuários atingidos por esse método pouco convencional de cobrança utilizado por essas empresas. Ora, cabe à concessionária, como já se disse, se acautelar quando do fornecimento, exigindo, se for o caso, fiança, aval ou caução, para evitar a impossibilidade de cobrança, como se faz no comércio em geral.

            Tal digressão somente veio à baila, contudo, em razão do parecer ministerial. De qualquer modo, tenho que correta se apresenta a decisão de 1.o grau, motivo pelo qual conheço do recurso, mas nego-lhe provimento." (grifei).

            Nesta linha de pensamento jurisprudencial, correto é afirmar que serviço público essencial é aquele que diz respeito à vida digna, no qual inclui-se, perfeitamente, o fornecimento de água por parte da Impetrada.

            Faz-se mister não deslembrar, por fim, em desacordo com a tese esposada na notificação apresentada pela Autoridade Impetrada, que, no caso vertente, provou-se, sobejamente, a ausência de má-fé da Impetrante ao não adimplir seus débitos, eis que vivendo adoentada, com parcos vencimentos e possuindo filhos menores que dependem dela para seu sustento, encontra-se em clara hipótese de estado de necessidade, justificável, portanto.

            Tudo sopesado, não encontro outro caminho senão o da concessão da segurança, já que estou convencido que cabe ao Poder Judiciário evitar e reprimir coações sofridas pelos consumidores – hipossuficientes – perante empresas de grande porte, bem como a utilização da justiça privada justamente por empresas que prestam serviços públicos essenciais à vida humana.


III. CONCLUSÃO

            Ex positis, opina o Ministério Público pelo reconhecimento da inconstitucionalidade do § 3º, inciso II, do art. 6º, da Lei federal nº 8.987/75 (Lei de Concessão de Serviços Públicos) e pela concessão definitiva da ordem pleiteada.

            Custas ex legis.

            Sem honorários advocatícios (Súmula 105 S.T.J.)

            É o parecer.

            Gov. Valadares, 19 de fevereiro de 2001.

Renato Franco de Almeida
Promotor de Justiça.


Notas

            1. In Comentários ao Código de Processo Civil, 8ª edição, Rio de Janeiro, ed. Forense, 1998, p. 267

            2. NERY Junior, Nelson, Código de Processo Civil comentado e Legislação Processual Civil extravagante em vigor, 3ª edição, São Paulo: Revista dos Tribunais, 1997, p.416

            3. (...) princípio de aplicação das normas que escalona valorativamente a que deve prevalecer no caso concreto, (...). Por esse princípio funcional do sistema, após a análise das normas e das peculiaridades do caso concreto, bem como depois da aplicação dos métodos hermenêuticos, será feita a valoração simultânea das regras e dos princípios que entraram em conjugação, excluindo do ato de concretizar as preteridas, de molde a obter um sucessivo afunilamento. Isso terá como resultado a consecução da melhor ou das melhores normas a serem aplicadas para que o problema possa ser resolvido, sempre com vistas à unidade e coerência do sistema, ditados pelas disposições constitucionais. (MORAES, Paulo Valério Dal Pai, in Código de Defesa do Consumidor, O Princípio da Vulnerabilidade no contrato, na publicidade e nas demais práticas comerciais, 1ª edição, Porto Alegre: Síntese, p. 72/73).

            4. BASTOS, Celso Ribeiro; MARTINS, Ives Gandra, Comentários à Constituição do Brasil, vol. 2, arts. 5º ao 17, 1ª edição, São Paulo: Saraiva, 1989, p.160

            5. In Curso de Direito Constitucional, 7ª edição, São Paulo: Malheiros, 1997, p. 85

            6. Bonavides, Paulo, ob. Cit., p. 79/80

            7. BASTOS, Celso Ribeiro et al., op. cit., p.158/159

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Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

. Corte de água por atraso no pagamento é inconstitucional. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 6, n. 51, 1 out. 2001. Disponível em: https://jus.com.br/pareceres/16389. Acesso em: 23 abr. 2024.

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