IX - Natureza jurídica do contrato de utilização de unidade em Centros Comerciais, ao enfoque da Doutrina pátria
135.- Com a instalação, no Brasil, dos "Shopping Centers" e ante a complexidade jurídica das situações por eles criadas, várias manifestações de eminentes juristas vieram a enriquecer o tema, com pareceres, artigos e simpósios.
136.- Dentre os assuntos ventilados e debatidos, encontras-se o relativo à natureza jurídica do chamado contrato de locação nesses centros comerciais.
137.- Analisando essas doutas manifestações por obra especializada ("Shopping Centers" - Aspectos Jurídicos cit., Ed. Revista dos Tribunais, São Paulo, 1984), composta por acasião do Simpósios sobre os Centros Comerciais, promovido pela Escola Superior de Magistratura Nacional - ESMAN, com a colaboração da Associação Brasileira de "Shopping Centers" - ABRASCE, no Rio de Janeiro, em novembro de 1983, bem como outros trabalhos publicados e os pareceres e artigos, em meu poder, a serem publicados, conclui-se pela existência de correntes de pensamento, a explicarem a aludida natureza jurídica.
a) Teoria da locação
138.- A princípio, a grande maioria dos doutrinadores pátrios considerou esse contrato‚ como de simples locação.
139.- Assim, Caio Mário da Silva Pereira ("Shopping Centers" - Organização econômica e disciplina jurídica "in" "Shopping Centers" cit., pp. 77, 82 e 86) deixou claro que "se trata de um vero e próprio contrato de locação" e que o fato desse contrato, com toda a parafernália de dependências e acessórios, de tipo físico ou intelectual, exigiu modelação específica às contingências mercadológicas do empreendimento não retira" . "a natureza de 'contrato de locação'."
E acrescenta, adiante: "Do que se infere do exame da situações jurídica do 'shopping center' conclui-se que não existe um contrato específico, abrangente de todas as situações que possa ele envolver, e que exibisse o rótulo de 'contrato de shopping center'."
Em outra oportunidade, o mesmo Professor ("Shopping Center" - Lei aplicável à locação de unidades, "in" Revista dos Tribunais, junho de 1985, vol. 596, pp. 9 a 15, especialmente 9) reafirmou: "Contrato de locação que é, oferece, entretanto, certas características que decorrem da natureza especial do próprio 'centro comercial'". Parece, todavia, nesse último enfoque, que existe certa tendência a admitir caracteres modificativos da natureza do contrato locatício, pura e simplesmente considerado.
140.- A seu turno, WASHINGTON DE BARROS MONTEIRO ("Shopping Centers", "in" "Shopping Centers" cit., p. 166) afirma: "não ouso asseverar seja atípico o contrato celebrado entre o incorporador e os lojistas ou prestadores de serviços. Esse contrato é, desenganadamente, o de locação, embora com algumas peculiaridades que, todavia, não chegam a descaracterizá-lo."
141.- Também, LUÍS ANTONIO DE ANDRADE (Considerações sobre o Aluguel em "Shopping Centers", "in" "Shopping Centers" cit., pp. 169 e 177 e "in" Revista dos Tribunais, vol. 572, pp. 10, 14 e 15) deixa clarividenciada essa posição doutrinária, quando afirma: "Uma das facetas que os "shopping centers" oferecem de modo constante à observação dos juristas deriva dos vínculos locatícios‚ que se estabelecem normalmente entre a pessoa que detém, organiza e administra o centro comercial e as empresas que nele se instalam, exercendo o comércio". E, mais: "Nos contratos com cláusula de aluguel calculada sobre a receita ou o faturamento estão presentes todos os elementos que caracterizam a figura jurídica da locação, tal como resulta do conceito legal, expresso no art. 1.188 do CC. A circunstância, já tantas vezes assinalada, de ajustarem as partes o pagamento do aluguel - ou seja, a retribuição - em percentual sobre o rendimento periódico obtido não desnatura a relação locatícia, nem configura qualquer espécie de sociedade, ainda que em conta de participação."
b) Teoria da locação com atipicidade
142.- Manifestando seu entendimento, IVES GANDRA DA SILVA MARTINS (A Natureza Jurídica das Locações Comerciais dos "Shopping Centers", trabalho a mim exibido, em vias de publicação) explica que, nos contratos "entre lojistas e os 'shopping centers' há sempre uma dupla natureza, que os faz, de um lado, idênticos ao de uma singela locação do espaço físico em contrato de locação comercial, mas que os torna, de outro lado, um contrato atípico, sem nenhuma vinculação com a lei de luvas no concernente à cessão da 'res sparata' ou do uso do 'sobrefundo comercial', representado pelos bens imateriais de que os 'shoppings' são detentores permanentemente", declarando que chegaram às mesmas conclusões os juristas ONURB COUTO BRUNO e JAYME HENRIQUE ABREU, em parecer que lhe foi exibido, mas não publicado.
Como, adiante, procurarei demonstrar, não se cuida, "data venia", de dois contratos separados (um de locação e outro atípico ou, ainda, de um contrato de locação com cláusula atípicas, mas, sim, de um único contrato atípico misto.
143.- Por sua vez, declara-se MODESTO CARVALHOSA (Considerações sobre relações jurídicas em "Shopping Centers", trabalho que me foi exibido e em fase de publicação) contrário à posição, primeiramente, defendida por ORLANDO GOMES, asseverando que "Não pode haver qualquer dúvida de que a cessão de uso desse espaço configura um contrato de locação, conforme definido no artigo 1.188 do Código Civil", existindo nela, "nitidamente a causa típica".
Todavia, o mesmo jurista admite que esse contrato, que "possue todos os elementos essenciais à configuração de um contrato de locação, "apresenta, no entanto, peculiaridades que o diferenciam de um contrato de locação normal", entendendo-o como "um contrato de locação com cláusula atípicas". (grifos do original)
c) Teoria da atipicidade
144.- O primeiro jurista a defender a posição de que o contrato dos "shopping centers" com os lojistas é contrato atípico foi o saudoso ORLANDO GOMES (Traços do Perfil Jurídico de um "Shopping Center", cit., pp. 96 e 113 a 115), quando ensinou, por ocasião do aludido Simpósio sobre Centros Comerciais, em julho de 1983, que essa atipicidade mista decorre da própria causa do contrato em exame.
Depois de analisar todas as peculiaridades do mesmo contrato, admite o mesmo professor que foi levado a concluir que "o contrato estudado não é propriamente de locação, mas, sim, um contrato atípico", mostrando que "Traços da autonomia desse contrato relativamente ao de locação podem, afinal, ser sumariados, projetados de ângulos diversos, todos próprios ou discrepantes, tais como os seguintes: 1) a forma de remuneração do uso e gozo das unidades destinadas a exploração comercial; 2) o reajustamento trimestral do 'soi disant' aluguel mínimo; 3) a fiscalização da contabilidade das lojas pelos concedentes do seu uso para o fim de verificar a exatidão do chamado `aluguel percentual', bem como a sua incidência para a cobrança da diferença no caso de o seu valor ser superior ao do aluguel mínimo; 4) a fixação uniforme e antecipada do critério a ser observado para determinar a majoraração do 'aluguel' mínimo no tempo da renovação do contrato; 5) a incompatibilidade entre o critério de arbitramento do aluguel nas verdadeiras locações para fins comerciais, aplicado nas renovatórias, e o denominado 'aluguel' percentual; 6) o cunho mercantil desse 'aluguel' como suporte da lucratividade do empreendimento; 7) a desvinculação entre a atividade comercial e o uso efetivo da loja para efeito de remuneração deste, exigível antes de ser iniciada aquela; 8) a vigência de proibições e práticas ligadas ao uso da loja, derivadas da circunstância, de se integrarem num sistema; 9) a proibições de cessão da posição contratual, nula ou impugnável na locação, mas admitida no contrato com o 'shopping center', por entender com a sua organização e funcionamento; 10) a ingerência de terceiro no exercício do direito do titular do uso da loja, como sucede com o intrometimento da associação a que é obrigado a se filiar, criando-se um vínculo tão apertado que a sua exclusão é admitida como causa de rescisão do contrato; 11) a cooperação do concedente (o 'shopping center', nas promoções para ativação das vendas e sua participação em campanhas publicitárias; 12) a convergência de interesses no contrato; 13) a imutabilidade orgânica do gênero de atividade do lojista - e tantos outros, significativos da diferença entre o contrato estudado e a locação."
145.- A final, embora salientando que o contrato sob estudo não é muito reiterado, em razão dos poucos Centros Comerciais, à época, já entendia ORLANDO GOMES pela importância econômica dessa contratação, afirmando: "Respondendo, como responde, a uma necessidade distinta daquela a que atende o contrato afim de locação, pode ser enquadrado, na classificação de ARCANGLI, entre aqueles que são considerados uma espécie modificada de um tipo já existente, do qual se devem conservar separados pela falta de qualquer elemento a este essencial, ou entre aqueles nos quais a necessidade que os provoca não é nova, mas neles assume um aspecto particular."
146.- Por outro lado, ressalte-se, neste passo, que, embora votando vencido a denegar o aluguel mínimo calculada sobre o saldo médio dos depósitos diários de uma agência bancária, situada em uma rua da Cidade de São Paulo, o Juiz da Quinta Câmara do Segundo Tribunal de Alçada Civil do Estado de São Paulo, GIL DA COSTA CARVALHO (Revista dos Tribunais, vol. 533, p.152), destacou, em seu voto: "Na locação de lojas situadas em vias públicas o locador cede o uso da coisa, e mais não faz. O mesmo não sucede com os 'shoppings'. Neles, o locatário é beneficiário de uma soma de serviços patrocinados e mantidos pela entidade locadora, entidade locadora que inclusive protege o locatário de excessiva concorrência, com a limitação de número de estabelecimentos de um determinado ramo em um conjunto. Aí tem lógica a participação do locador nos lucros do locatário pois ele contribui para os mesmos, com serviços e com a preteção contra a concorrência excessiva. E isso não acontece numa locação pura e simples de loja, como ocorre no presente caso."
147.- Também, RUBENS REQUIÃO (obras citadas, respectivamente, pp. 19, 22, 23 e 133, 138) parece enveredar pela teoria da atipicidade, quando admite, após estudo da organização físico do centro comercial, que "já se entende que o contrato de locação não é um contrato qualquer". E que "Ele está determinado pelo conjunto organizacional para atingir um objetivo da comunidade de empresas que a ele adere".
Em seguida, corroborando seu posicionamento, elogia o pensamento do atrás citado Juiz GIL DA COSTA CARVALHO, como constituindo "um grande avanço na modernização das relações de locação, para por em destaque a efetuada em 'centro comercial'."
148.- Dando mostras de alto espírito científico e de amor à verdade, ALFREDO BUZAID abandonou sua posição anterior ("in" Da Ação Renovatórias, cit., pp. 656 e segs.) para entender o contrato sob análise como "uma figura nova‚ no direito brasileiro, que pode apresentar semelhanças com a locação de imóvel urbano, mas que dele se distingue por seus elementos constitutivos, por suas peculiaridades e por sua natureza jurídica (Estudo sobre "Shopping Center", que me foi exibido, em fase de publicação).
Nesse "Estudo", deixa clarividenciado o mesmo professor, relativamente ao contrato em exame, que denomina de "contrato de estabelecimento", que "não se trata de um contrato de locação de imóvel, regido pelo Código Civil (art. 1.188 e segs.), quer pela Lei 6.649, de 16 de maio de 1979, alterada pela Lei 6.698, de 15 de outubro de 1979, quer pelo Decreto nº 24.150, de 20 de abril de 1934." E acrescenta, mais adiante "Ainda que nele conste a cessão de uso e gozo do imóvel por tempo determinado, este elemento não é fundamental, nem decisivo para configurar o contrato como locação, porque ele não é autônomo, antes integrado num negócio jurídico complexo."
149.- A seu turno, declarando adotar, expressamente, o entendimento de ORLANDO GOMES e de ALFREDO BUZAID, admite FERNANDO ALBINO DE OLIVEIRA (Fundo de Comércio em "Shopping Centers", que me foi exibido, em fase de publicação), que "estamos diante de um novo contrato, atípico e inominado". E aduz: "O seu núcleo é o exercício de atividade comercial sob certas condições em `shopping', para o que há necessidade de cessão de espaço, que ocorre quer por via da locação, com regras atípica, quer por aquisição da propriedade plena."
150.- Na mesma linha de raciocínio, coloca-se J. A. PENALVA SANTOS (Regulamentação Jurídica do "Shopping Center", trabalho que me foi exibido, em vias de publicação), que classifica de contrato atípico o celebrado entre o empreendedor e o lojista, acrescentando que, "para se chegar a essa conclusão há mister de conhecer-lhe a natureza jurídica, a causa, a abrangência e sua possível denominação."
Faz ver esse mesmo jurista, mais, que estaria caracterizada a locação, ante o contrato sob análise "caso o locador se restringisse à mera entrega do imóvel para seu uso e gozo, mediante determinada contribuição, todavia, "Não é bem isso que acontece no caso do centro comercial, porque, ao lado da cessão onerosa do espaço ou loja, o desenvolvedor, em decorrência de sua atividade empresarial criada precisamente para esse fim, fornece ao lojista uma estrutura, através da qual se vislumbra a existência de um verdadeiro estabelecimento comercial". E, mais adiante, após analisar as situações peculiaríssimas do contrato em pauta, afirma que suas cláusulas, "nas quais são inseridas tais disposições descaracterizam a locação, ao dar-lhe cunho de atipicidade; logo, de locação não se cuida".
E termina, em conclusão, depois de estudar várias figuras contratuais: "Afastadas, em princípio, as hipóteses de consórcio, de 'joint venture' e de arrendamento mercantil ('leasing' imobiliário), é possível a adoção de regras próprias do 'franchising', instituto em grande evolução no Brasil".
Do mesmo modo, JOÃO CARLOS PESTANA DE AGUIAR (O Fundo de Comércio cit., pp. 26, 27 e 191; Anotações sobre o Mundo Jurídico dos "Shopping Centers", obra que me foi exibida e está em vias de publicação), embora tenha divergido, inicialmente (no Simpósio de 1983), do posicionamento doutrinário de ORLANDO GOMES.
Isto, porque, declara o mesmo jurista: "Examinando o tema, logo tomamos uma posição, considerando tratar-se de um contrato atípico mas que representa um conglomerado de contratos típicos e atípicos. Dentre eles avulta ..."a locação. Realmente, a idéia central não pode ser outra, pelas características de que se reveste essa relação jurídica" (Súmula do referido Simpósio).
Como visto, em realidade, entendo que não chegou esse jurista a divergir de ORLANDO GOMES, malgrado diferenças secundárias, no posicionamento doutrinário pois este também não nega a figura da locação, compondo a relação jurídica em causa.
Mesmo sendo central o contrato locatício toda a convenção é atípica porque não cumprida qualquer de suas obrigações ainda que secundárias, (a assim admitir-se, "ad argumentandum"), fica totalmente rescindida (por exemplo, não manter-se o locatário ao nível de atividades do centro comercial).
151.- Também o advogado ROBERTO WILSON RENAULT PINTO (O Fundo de Comércio dos "Shopping Centers" e o Decreto 24.150/34, trabalho exibido e em fase de publicação) enfileira-se entre os que admitem a atipicidade do contrato sob cogitação, cognominando-o de contrato de cessão de uso de espaço em "Shopping Center".
152.- Destacando várias peculiaridades do contrato estudado e admitindo sua atipicidade, J. NASCIMENTO FRANCO (A Lei de Luvas e os "shopping centers", em trabalho, que me foi exibido, em fase de publicação) adverte que, "Salvo naqueles casos em que cada lojista é dono do compartimento que ocupa, o mantenedor do 'shopping' outorga aos lojistas um chamado contrato de locação, no qual o locatário adere a diversos outros instrumentos, tais como o regimento interno do 'shopping", a escritura declaratória das normas disciplinadoras das locações escritura de convenção do condomínio (quando o edifício é submetido ao regime da Lei nº 4.591/64), e ao estatuto de uma associação de lojistas, à qual deverá o locatário obrigatoriamente filiar-se enquanto durar a locação. Além desses contratos, outros serão impostos ao locatário como condições do contrato de locação e de sua continuidade."
Evidencia, em seguida, o mesmo jurista outras peculiaridades, dentre as quais a "forma de estipulação do aluguel mensal" (valor mínimo e percentual), a participação dos lojistas nas "despesas promocionais para incentivas as vendas" (publicidade, decoração e policiamento), o pagamento pelos lojistas do "13º salário dos empregados que prestam serviços à administração do edifício e a faculdade que o locador se reserva "singularíssima de pleitear a rescisão da locação se durante determinado lapso de tempo o locatário não mantiver o nível mínimo de vendas" ("o mau desempenho de um lojista repercute em detrimento de todos").
E conclui, após analisar a Jurisprudência francesa, que foram os motivos por ela considerados que o levaram a escrever que "a ocupação da loja num centro comercial não pode ser qualificada como locação nem como sublocação, ou seja: as restrições à gestão completa de seu comércio por parte do lojista, a adesão compulsória a uma associação de ocupantes de centro comercial, a inexistência de uma clientela realmente autônoma e única, a definição do horário de funcionamento pela associação ou pelo administrador geral, etc.".
d) minha posição doutrinária
153.- Aproveitando tudo quanto exposto, e com fundamento na classificação dos contratos atípicos mistos, que ofereci em 1965 (conforme item VIII, "retro"), sempre entendi contrato sob estudo como atípico misto, formado com elemento típico (contrato de locação) e com outros elementos atípicos.
154.- Acontece, que, como deixei claro, o elemento típico quando somado com outro elemento típico ou, mesmo, atípico desnatura-se compondo-se esse conjunto de elementos um novo contrato, uno e complexo, com todas as suas obrigações formando algo individual e indivisível.
155.- "Para delimitar com segurança a atipicidade de um contrato, o verdadeiro critério é o que prescreve o estudo de sua causa‚ ou função econômica-social", diz ORLANDO GOMES (Traços do Perfil Jurídico' cit., pp. 94 a 96); tudo, como admite, "Apesar da nebulosidade que envolve, entre nós, a doutrina da causa".
Adverte, mais: "A relação atípica há de ser monolítica, proveniente de causa única, jamais de uma pluralidade de causas entre si autônomas, nada obstando à sua determinação, que é feita ora pelas próprias partes, ora pelos usos. Exige-se, tão-somente, que seja um 'elemento objetivo e constante', como nos contratos típicos, reconhecido, nos limites de sua validade, pelo ordenamento jurídica (Messineo). Há de coincidir, finalmente, com o chamado 'intento empírico ou escopo prático que as partes pretendem alcançar, ou, em linguagem vulgar, o que querem obter em termos de realização de interesses econômicos".
156.- Sem discordar desses são sábios ensinamentos, o certo é que, na prática, muitas interpretações surgem quanto à aludida tipicidade social, criada pelas próprias partes ou pelos usos e costumes. Também, resta difícil, diante das figuras contratuais novas, em formação, sentir-se, nelas, a chamada "causa única".
157.- Por isso prefiro o método de análise das prestações, que compõem os contratos (dar, fazer e não fazer), para melhor entender sua natureza, já que, como demonstrado, as obrigações integram a essência das convenções.
158.- Aliás, esse tem sido meu proceder científico, que se mostra, com bons resultados práticas em alguns de meus estudos e pareceres.
159.- Destaque-se, nesta feita, parecer por mim exarado (Contrato Atípico no meu livro Direito Privado, Casos e Pareceres, Ed. Cejup, Belém, vol. 1, 1986, pp. 134 a 148), relativo ao Contrato de Fornecimento e Distribuição de Água Mineral, em que essa avença foi, por mim, enquadrada como atípica mista.
A discussão doutrinária foi em torno de considerar esse contrato como típico de compra e venda ou como típico de locação de coisa.
Analisemos suas prestações principais, narrando de modo sucinto, os fatos.
O titular de direitos de exploração de água mineral, que chamaremos de "A", firmou a aludida contratação com empresa distribuidora desse produto, que chamaremos de "B", obrigando-se, reciprocamente, a várias prestações: "A", titular da fonte de água mineral, obrigou-se a extrair essa água, colocando-a no vasilhame de "B", fornecido por "B", entregando "A" o produto, desse modo, a "B", contra o pagamento, por este à aquele, de um preço. Acontece que, ainda, o vasilhame de "B" deveria portar a marca de "A", por rótulo, ficando "B" impedido de comercializar dita água, na região da cidade de Pinhal-SP, e "A" impedido do mesmo comércio fora dessa região; além de outras prestações secundárias.
Realmente, as principais obrigações assumidas pelo fornecedor foram as de captação, industrialização e engarrafamento‚ de água mineral, que são de fazer, e a de entregar‚ esse produto, que é obrigação de dar coisa certa. Em contrapartida, seu direito fundamental é o de receber‚ por essa atuação um pagamento certo, gravado na avença, e reajustado‚ monetariamente, segundo o contratado.
A seu turno, obrigou-se, principalmente, a distribuidora a entregar o vasilhame, dentre outras coisas, para possibilitar o engarrafamento do mencionado produto, a pagar os valores reajustados, como estabelecido no contrato, que são obrigações de dar coisa certa, e a distribuir esse produto, vendendo-o a terceiro, o que importa obrigação de fazer, enquanto não realizada esta venda. Por outro lado, os direitos da distribuidora são: o de retirar a água engarrafada, no setor industrial da fazenda do fornecedor, o que, também é uma obrigação de fazer, o de poder fiscalizar a industrialização da água e o de poder utilizar-se da marca do fornecedor.
A relação jurídica principal, que se insere nesse complexo de direitos e obrigações é a de compra e venda de água mineral, implicando a entrega, pelo fornecedor, deste produto em sua fonte e a remuneração pela distribuidora, pagando o devido preço. Ambas obrigações de dar coisa certa: entrega de água mineral (espécie) com a quantidade‚ mensal prevista no contrato, com mínimo e máximo de fornecimento, presente a qualidade‚ do produto, inconfundível (água mineral das fontes do fornecedor, oriunda da Fazenda, com características medicinais próprias). O caráter de infungibilidade desse produto resulta em corolário, pois jamais poderia o fornecedor substituí-lo por outro, levando-se em conta suas peculiaridades.
Ora, como resta evidente, dito contrato não é nem de compra e venda, nem de locação de coisa, pois, nestes, as prestações são, simplesmente de dar, respectivamente: coisa contra preço e cessão de uso e de gozo contra aluguel. A existência de qualquer outra espécie de prestação, de fazer ou de não fazer, como demonstrado, desnatura toda a contratação.
Realmente, mesmo que vendida a água, em ditos vasilhames, com recebimento do preço, não estaria exaurida a compra e venda, bastando o descumprimento de uma das atrás mencionadas prestações para a rescisão de todo o contrato, como por exemplo, se "B" vendesse sua água na região de Pinhal, ou vice versa.
Por outro lado, nunca existiu locação, na referida avença, porque faltou-lhe o elemento fundamental, cessão do uso da fonte, que permaneceu na posse de "A". Todavia, ainda que "B" pagasse a "A" para utilizar-se de sua fonte, mesmo assim descumpriria todo o contrato se se obrigasse a não comercializar dita água, na região Pinhal, e o fizesse.
160.- Em outro parecer meu (Contratação Atípica Mista. Indivisibilidade. Condição Resolutiva Tácita, no meu livro Direito Privado, Casos e Pareceres, Ed. Cejup, Belém, 1989, vol. 3¬ pp. 80 a 88), concluí, também, pela existência de contrato atípico misto, em que as partes realizaram negócios de venda e compra de área de terra, concomitantemente, com execução de obras, em empreendimento de uma delas.
No caso, a empresa "A" vendeu a empresa "B" duas área de terra, sendo certo que, à época de lavrarem-se as escrituras definitivas, firmaram essas partes um contrato particular de execução de obra, pelo qual a compradora das áreas obrigou-se a realizar trabalho de infra-estrutura de loteamento, gratuitamente, no terreno, restante, da aludida vendedora.
Afora outras situações secundárias, o certo é que restou evidenciado que as partes quiseram os dois negócios, simultaneamente, que, embora típicos, compra e venda e empreitada, restam indivisíveis na aludida relação jurídica (os negócios nasceram juntos, por uma única causa).
Por isso, mesmo que cumpridas as prestações do negócio de compra e venda, ele não se extingue, pois fica dependente do cumprimento das prestações contratadas na empreitada, sob pena de rescisão do negócio todo.
Assim, são indivisíveis todas as avenças dessas mesmas partes, tais as prestações de dar, de ambas, não compras e vendas de áreas de terra; tais as prestações, de dar e de fazer, na empreitada, assumidas pela empresa "B", independentemente de qualquer remuneração. Os negócios formam uma unidade obrigacional só, que não pode ser dividida. As partes, ao contratarem, quiseram o todo das duas contratações.
161.- Em outro meu recente parecer (Natureza atípica da franquia comercial - "franchising" - e "royalties" pagos, de 22 de maio de 1988, ainda não publicado), sustentei que o contrato de uma confeitaria, para revenda de doces, bolos, salgados, sorvetes e demais produtos seus, firmado com seus revendedores, é de franquia comercial; logo, atípico misto, dadas as cláusulas pactuadas, adiante resumidas.
Por esse contrato, dita confeitaria concede direito a suas revendedoras de revender os aludidos produtos, de sua fabricação, devendo estas realizar seus negócios, em seu nome, por sua conta, risco e inteira responsabilidade, sem direito de representação da confeitaria.
A confeitaria obriga-se: a prestar às mesmas revendedoras orientação técnica, relativamente à organização e adequado funcionamento destas empresas; a ceder, por seus departamentos especializados, o "know how" necessário à instalação e montagem das lojas revendedoras, fornecendo plantas, para a execução de suas obras; a orientar sobre a forma de utilização, com o máximo de eficiência, de todas as instalações e montagens das lojas de revenda; a orientar o pessoal técnico das mesmas revendedoras; a visitar, periodicamente, a estas, por meio de seus representantes e auditores, para verificar o aprimoramento das atividades destas.
Por outro lado, as revendedoras obrigam-se: a adquirir os produtos fabricados pela confeitaria, por pedidos diários, aos preços estipulados pela produtora, com uma margem de lucro; a remunerar a confeitaria com um percentual sobre o volume de vendas; a promover os interesses da confeitaria, pela propaganda de seus produtos; a usar o nome da confeitaria, enquanto durar o contrato, sem, entretanto, adquirir qualquer direito quanto a essa marca; a equipar suas dependências, destinadas à revenda, exposição e depósito dos produtos, e a conservá-los nos moldes das orientações da confeitaria, identificando-os com a marca desta; a observar a orientação da confeitaria, quanto às normas de trabalho, manutenção de estoques e vendas desses produtos, bem como no tocante à assistência técnica, propaganda, promoção de vendas e treinamento do pessoal; a manter o atendimento ao público, em todas as suas instalações; a manter a tabela de preços em lugar visível; a manter os produtos sem modificá-los; a zelar pelas marcas, insígnias, sinais, expressões de propaganda ou privilégios industriais da confeitaria; a não fabricar, comercializar e/ou colocar à venda produtos de qualquer natureza, cujas origens não sejam da confeitaria inclusive material de embalagens.
Esse contrato, além de obrigar a revendedora, de modo exclusivo, como visto, quanto à comercialização dos produtos da confeitaria, fixa a zona dessa atividade da revendedora, que não poderá exercê-la fora dela, competindo à confeitaria realizar contratos de idêntica natureza com outras revendedoras.
Cabe, neste ponto, para perfeito entendimento desse contrato de "franchising", diferenciando-o do ora estudado, a mostragem de seus elementos essenciais, cuidados por ITALO GIORGIO MINGUZZI (Lezioni sui contratti commerciali, Ed. Maggioli, Rimini, 1981, pp. 167 e 168), a saber: 1) "existência de um contrato que regule em detalhe todos os aspectos do acordo de colaboração entre a empresa e o operador comercial"; 2) "autorização do operador, por parte da empresa, ao uso da marca e/ou da denominação ou razão social desta última"; 3) "transferência ao operador do conhecimento técnico de propriedade da empresa e do 'know how' comercial idealizado e experimentado pela mesma"; 4) "pagamento à empresa de uma cota da parte do varejista ou do investidor: tal cota representa um correspectivo pelo uso do nome, da marca e da imagem e pelo acesso imediato, oferecido a cada indivíduo ao 'know how' comercial, à assistência, à instrução, à técnica e a todos aqueles serviços que são de propriedade da empresa"; 5) "necessidade de um investimento inicial por parte do operador, para cobertura das despesa de construção, transformação e equipamento do exercício da distribuição"; 6) "interesse contínuo da empresa ao fornecer ao operador toda ajuda possível em todos os campos da gestão comercial: 'layout do ponto de venda, aquisição, rotação do 'stock', 'display', promoção, 'merchandising', publicidade, contabilidade, consulência fiscal, instrução do pessoal, atualização periódica, etc.; 7) "adestramento fornecido pelos técnicos da empresa ao operador logo ao início da atividade do ponto de venda"; 8) "processo e disponibilidade por parte do operador, da unidade de venda e dos requisitos jurídicos pelo exercício do comércio".
Como visto, o mesclado de prestações de dar, de fazer e de não fazer, leva a uma concreta impossibilidade de enquadrar a franquia comercial em qualquer dos tipos regulamentados. Veja-se, mais, que essa diversidade de prestação em sua grande maioria repelem a idéia de considerar o contrato em foco como se franquia fosse.
Destaque-se, só para lembrar de algo fundamental, que, na franquia, não existe cessão de uso de local, pois este é do próprio franqueado; e que embora o utilizador seja obrigado a promover o nome do centro comercial em que se instala, o franqueado zela pelo nome dos produtos do franqueador, que revende ou produz, mas sob total controle deste último.
As diferenças aumentam à análise, sempre, das prestações constantes de uma e de outra contratações.
162.- Resta clarividenciado, pois, que é muito útil, para descobrir a tipicidade ou atipicidade do contrato, á análise, profunda de suas prestações (dar, fazer e não fazer). É certo que podem coexistir essas espécies, todavia os objetos prestacionais são diferentes, o que leva à descoberta da verdadeira causa contratual.
163.- No contrato de utilização de unidade em Centros Comerciais, as prestações são as mais variadas, como visto, e de caráter peculiaríssimo.
164.- Assim, relembrando as prestações peculiares do contrato sob exame, já desfiladas pelos vários juristas que cuidaram da matéria, pondere-se que a contratação tem como cerne a cessão do uso ou do uso e gozo de um determinado espaço em um "Shopping Center", mediante particularíssima retribuição, pelos analisados aluguéis, fixo e variável, por filosofia dos quais o utilizador recebe benefícios daquele e concede vantagens àquele, em razão do dúplice fundo de empresa existente.
O contrato em causa demonstra a preocupação das partes de levarem a cabo um investimento de ambas, com participações recíprocas, em ambiente de alto nível, que deve ser mantido, com todos os sacrifícios.
165.- Relembremos, pois, de que o contrato em estudo apresenta peculiaríssimas obrigações: 1) o utilizador tem de informar o empreendedor sobre seu faturamento, por planilhas, para que se possa elaborar o cálculo do aluguel percentual ou variável (prestação de fazer); 2) o empreendedor, na falta dessa informação ou não se contentando com ela, pode fiscalizar esse faturamento, até na "boca do caixa" (prestação de fazer), sem qualquer impedimento por parte do utilizador (prestação de não fazer), mas agindo com toda a cautela, discrição e urbanidade, por seus prepostos (prestação de fazer, por terceiros); 3) o utilizador deve contribuir para o Fundo de Promoções Coletivas, com o valor, geralmente, de dez por cento sobre o do aluguel pago (prestação de dar, sem ser aluguel), para propiciar campanhas promocionais do Centro Comercial, que reverte em benefício de todos (empreendedor e utilizadores); 4) o empreendedor também deve contribuir para esse Fundo (prestação de dar, afora a cessão do uso ou do uso e gozo da unidade); 5) o utilizador deve pagar 13º salário aos empregados e ao pessoal da administração do Centro Comercial (prestação de dar a terceiros); 6) todos os utilizadores aderem ao sistema normativo criado pelo "Shopping Center", constante da Escritura Declaratória de Normas Gerais Regedoras das Locações dos Salões de Uso Comercial e do Regulamento Interno do Condomínio do Centro Comercial, que deve ser seguido à risca pelos mesmos utilizadores (prestação de fazer); 7) por esse sistema de regras, os utilizadores devem desenvolver atividades, nos moldes das melhores técnicas, para manter o nível de comercialização do "Shopping Center" (prestação de fazer); 8) o utilizador, a não ser com anuência expressa do empreendedor, está proibido de ceder o contrato de utilização de sua unidade (prestação de não fazer); 9) o utilizador deve pagar ao empreendedor, para compensar o fundo de empresa por este criado, uma importância em dinheiro, em razão da "res sperata" (prestação de dar, completamente diferente do aluguel ou de qualquer encargo de eventual locação); 10) o utilizador não pode deixar seu estabelecimento fechado, por mais de trinta dias (prestação de não fazer); 11) o empreendedor obriga-se a administrar o "Shopping Center", mantendo em pleno funcionamento o sistema de iluminação e de hidráulica das áreas comuns (prestação de fazer); 12) o utilizador não pode comercializar objetos de segunda mão, de segunda linha, recuperados por seguro ou salvados de incêndio (prestação de não fazer); 13) o utilizador deve apresentar à Administração do "Shopping", para exame e aprovação, seus projetos de instalações comerciais, letreiros e decoração, elaborados por profissional idôneo e capaz, nos moldes e com as restrições constantes da Escritura normativa (prestação de fazer); dentre muitas outras obrigações.
166.- Como tive oportunidade de demonstrar, com essa multivariedade de prestações, em verdadeiro complexo unitário, não há que falar-se em locação, mas em contrato atípico misto.
X - Explicação sobre o nome do contrato em causa e necessidade de sua regulamentação
167.- Pouca importância tem para mil a nominação do contrato sob estudo, importando, sim, sua perfeita compreensão e enquadramento.
168.- Por isso, para que ele não restasse sem nome, propusemos sua designação por contrato de utilização de unidade em Centro Comercial.
169.- Todavia, a regulamentação desse contrato se faz necessária, para que, no âmbito da manifestação livre das vontades, não surjam abusos.
XI - Conclusões finais
170.- Não se cuida, portanto, como procurei demonstrar, de mera locação, ou de locação, com cláusulas atípicas, pois esses elementos atípicos desfiguram a locação, que não pode viver isoladamente.
171.- Como bem acentua CARLOS GERALDO LANGONI ("Shopping Centers" no Brasil, "in" "Shopping Centers" cit., pp. 56 e 57): "Ao invés de um esquema convencional de remuneração do investimento com base na venda dos imóveis ou no aluguel puro e simples - o que transformaria o empreendimento em mais um negócio imobiliário - o 'shopping center', ao estabelecer uma relação direta entre sua rentabilidade e a rentabilidade das atividades que ali irão se desenvolver, criou as pré-condições para a otimização do 'marketing' a um nível nunca antes imaginado pelo sistema de comércio convencional. Paradoxamente, portanto, o que há, de fato, de inovador nos 'shopping centers' é a relação contratual que assegura a participação dos investidores no faturamento (e, portanto, nos lucros das atividades que ali se desenvolvem. Estabelece-se uma permanente integração entre os interesses dos empreendedores do 'shopping center' e os dos comerciantes, que constitui a base para a realização posterior de ganhos de produtividade, onde parcela significativa é, inclusive, transferida para os consumidores."
172.- Todavia, malgrado estejamos em face de um contrato novo, sem apego à legislação inquilinária vigente os a formalidades para existir, a livre manifestação da vontade das partes deve ser preservada, como lícita, desde que não atinja dispositivo cogente (norma de ordem pública), os bons costumes e os princípios gerais de direito.
173.- Isso não impede que o juiz, ao enfrentar questões a esse contrato relativas, decida aplicando a legislação vigente, por analogia. A tanto ele está autorizado, em qualquer caso, pelo artigo 4º da Lei de Introdução ao Código Civil.
174.- Ressalte-se, entretanto, que essa aplicação não deve conflitar com a natureza do contrato os provocar a quebra da sua unidade.
175.- Assim, não é incompatível, por exemplo, com a indivisibilidade das prestações do contrato sob exame, a cláusula ou decisão que autoriza o pedido renovatório do contrato ou de sua revisão, nos moldes da Lei de Luvas. No mesmo sentido, desde que justificadamente, o pedido de retomada da unidade pelo empreendedor.
176.- De ver-se, contudo, que qualquer contratação escrita, lícita, exclui a aplicação, ainda que analógica, de qualquer preceito legal da legislação locatícia. As normas cogentes, desta, só atinem aos casos dos contratos de locação por elas previstos.
O contrato atípico misto, em causa, resta indene dessa atuação legislativa.
É o meu parecer,
salvo melhor juízo.
São Paulo, 11 de setembro de 1989