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Inconstitucionalidade do Fundo Garantidor das Parcerias Público-Privadas.

Art. 8º da Lei nº 11.079/04

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25/02/2005 às 00:00
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Da instituição ou utilização de fundos especiais previstos em lei

Para garantia do parceiro privado, no contrato de parceria público-privada, o inciso II do art. 8º da Lei sob comento permite que a Administração Pública institua ou utilize fundos especiais previstos em lei.

Para tanto o art. 16 da Lei sob exame autorizou a União, suas autarquias e fundações públicas a participar, no limite global de R$ 6.000.000.000,00 (seis bilhões de reais) em Fundo Garantidor de Parcerias Público-Privadas - FGP, cujos recursos irão garantir o pagamento de obrigações pecuniárias assumidas pelos parceiros públicos federais.

O § 1º desse artigo dispôs que o ´FGP terá natureza privada e patrimônio próprio, separado do patrimônio dos cotistas, e será sujeito a direitos e obrigações próprios.´

A rotulagem legal não é suficiente para afastar a incidência de normas de direito público.

Só para exemplificar, a fim de não alongar o parecer, o parágrafo único do art. 70 da CF, por exemplo, sujeita à prestação de contas ´qualquer pessoa física ou jurídica, pública ou privada, que utilize, arrecade, guarde, gerencie ou administre dinheiro, bens e valores públicos ou pelos quais a União responda, ou que, em nome desta, assuma obrigações de natureza pecuniárias´.

Para perfeita compreensão do que mais adiante será desenvolvido, imprescindível a conceituação do que seja fundo especial.

Fundo especial, consoante prescrição do art. 71 da Lei nº 4.320/64, não revogado pela Lei de Responsabilidade Fiscal, significa reservas de certas receitas públicas para a realização de determinados objetivos ou serviços de interesse público, sem o detalhamento das despesas, como acontece com o orçamento anual. Representa uma exceção ao princípio de unidade de tesouraria, previsto no art. 56 da mesma Lei, pois implica separação de dinheiro, cuja aplicação fica vinculada à consecução do objetivo que deu causa à criação do fundo. Em outras palavras, o dinheiro não sai do Tesouro sob forma de pagamento de despesas fixadas no orçamento anual.

Fácil de verificar, pois, que o fundo representa um sério obstáculo, talvez insuperável, ao efetivo exercício, pelo Legislativo do poder de fiscalizar e controlar a execução orçamentária. Por isso, a Constituição cidadã de 1988, por meio do art. 36 do ADCT, extinguiu, sob condição e com as ressalvas aí previstas, todos os fundos até então existentes. Por outro lado, condicionou a criação de novos fundos à prévia disciplinação pela lei complementar quanto às condições para a sua instituição e funcionamento (art. 165, § 9º, II da CF).

De fato, dispõem os citados dispositivos:

Art. 36 do ADCT:

‘Art. 36. Os fundos existentes na data da promulgação da Constituição, excetuados os resultantes de isenções fiscais que passem a integrar patrimônio privado e os que interessem a defesa nacional, extinguir-se-ão, se não forem ratificados pelo Congresso Nacional no prazo de dois anos’.

Art. 165, § 9º, II da CF:

‘Art. 165. Leis de iniciativa do Poder Executivo estabelecerão:

.....................

§ 9º Cabe à Lei Complementar:

............................

II – estabelecer normas de gestão financeira e patrimonial da administração direta e indireta, bem como condições para a instituição e funcionamento de fundos’.

Ao que saibamos, nenhum fundo preexistente foi ratificado pelo Congresso Nacional no prazo bienal, e nem existe, ainda, lei complementar regulando as condições para instituição e funcionamento de fundos. Por tal razão, o gigantesco Fundo Social de Emergência - FSE - para vigorar nos exercícios de 1994 e 1995, composto de 20% de tributos federais, foi criado pela Emenda Revisional de nº 1/94, dispensando os requisitos constitucionais expressos (arts. 165, § 9º, II e 167, IX). Compreensível foi esse exercício de imaginação criadora em face da crise político-institucional, sem precedentes, que havia tomado conta do País, impedindo a votação e aprovação da proposta orçamentária. Porém, acostumado com as facilidades das despesas, o governo vem patrocinando, com sucesso sem igual, a prorrogação desse Fundo, perenizando aquilo que surgiu em uma situação emergencial, tal qual o IPMF, hoje, CPMF. A Emenda nº 10/96 prorrogou-o até junho de 1997, com o nome de Fundo de Estabilização Fiscal, conceito tão amplo e nebuloso quanto o anterior. Nova Emenda, a de nº 17/97, prorrogou esse mesmo Fundo para até 31 de dezembro de 1999. Outras Emendas prorrogaram-no com o nome de DRU – Desvinculação de Receitas da União. A última prorrogação ocorreu com o advento da EC nº 42/03, para vigorar no período de 2003 a 2007, o que confere ao Chefe do Executivo a faculdade de gastar discricionariamente o equivalente a 20% da arrecadação tributária anual, e não, como determina a Lei Orçamentária Anual. A Emenda tem o poder de inobservar preceitos constitucionais não protegidos pela cláusula pétrea. A lei ordinária não tem esse poder.

Ora, se a Constituição Federal extinguiu todos os fundos até então existentes, com exceção dos fundos resultantes de isenções fiscais e subordinou a criação de novos fundos à prévia regulamentação, por lei complementar, das ‘condições para a instituição e funcionamento de fundos’, como é possível ao legislador ordinário autorizar a instituição de um fundo específico em que a União ingressa com a bagatela de R$6.000.000.000,00 (seis bilhões de reais)?

Esse fundo híbrido, designado pela sigla FGP é composto de bens e direitos do Poder Público e do particular, e, tem natureza privada, segundo prescrição de seu art. 16, § 1º.

E por ter sido impingida a natureza privada, esse FGP ´será criado administrado, gerido e representado judicial e extrajudicialmente por instituição financeira controlada, direta ou indiretamente, pela União, com observância das normas a que se refere o inciso XXII do art. 4º da Lei nº 4.595, de 31 de dezembro de 1964´, consoante dispõe o art. 17 da lei examinanda.

Em que pese o esforço da camuflagem legislativa, que se refere à autorização para a União participar do Fundo Garantidor de Parceria Público-Privada, a violação do art. 165, § 9º, II da CF exsurge com lapidar clareza.

Participar do FGP, no caso, tem o sentido de instituir o FGP. Basta a simples leitura ocular do art. 8º, inciso II, onde está dito que as obrigações pecuniárias contraídas pela Administração Pública poderão ser garantidas pela instituição ou utilização de fundos especiais previstos em lei.

Ora, segundo a prescrição do art. 71 da Lei nº 4.320/64, lei materialmente complementar, fundo especial, não se presta a garantir obrigações pecuniárias, contraídas pelo poder público em face de particulares eleitos como parceiros do poder público.

A imoralidade da medida salta aos olhos. Condenando esse tipo de parceria já afirmávamos, quando ainda em discussão o projeto de lei:

´O poder público detém o monopólio legislativo, o monopólio punitivo e o monopólio tributário. O particular limita-se a se submeter à legislação estabelecida pelo poder público (Estado) e está obrigado a transferir, ao primeiro, parcela da riqueza que produzir, sob a forma de tributos´ [9].

O poder público só é parceiro do particular na compulsória divisão da riqueza produzida por este. A confusão trazida pela Lei da PPPs é inadmissível. Não bastasse o poder tributário, exercitado até com dose de crueldade, pretende por esse instrumento híbrido, sem possibilidade de preciso enquadramento jurídico, retirar mais recursos da sociedade em proveito de apenas alguns de seus segmentos.

Como é possível a União, contumaz devedora de dívidas oriundas de condenação judicial, subtrair R$6.000.000.000,00 do seu orçamento anual, para compor um fundo destinado a garantir futuros, possíveis e eventuais credores, como bem assinalado pela consulente? Qual a fonte dessa extraordinária e espantosa despesa? Mais tributos? Mais dívida pública? Mais privatização? De duas uma: ou aumenta a receita pública, ou reduz outras despesas. Redução de despesas não se ajusta à nossa tradição. Por isso, uma coisa é certa: o contribuinte irá arcar com essa nova despesa qualquer que seja o meio escolhido para custeá-la, porque o Estado não produz e nem é sua função produzir riquezas.

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Outrossim, esses seis bilhões de reais, a salvo de contingenciamento e de seqüestros para honrar os precatórios judiciais descumpridos, ficam fora da fiscalização e controle externo, a ser exercido pelo Congresso Nacional com auxílio do Tribunal de Contas da União, na forma do art. 71 da CF. Os controles, interno e privado, nem pensar!

Enfim, a participação da União, das autarquias e das fundações públicas nesse FGP, ou a utilização de fundos especiais que deveriam ter sido extintos, contraria em bloco os dispositivos constitucionais pertinentes à Administração Pública e à matéria financeira.

Atenta contra os princípios da razoabilidade, da proporcionalidade, da moralidade e da publicidade (art. 37 da CF); dribla o art. 165, § 9º, II da CF e o art. 36 do ADCT; infringe o art. 167, IV da CF; contraria o princípio da quantificação dos créditos orçamentários inserto no art. 167, VII; violenta o princípio das fixação prévia das despesas que está previsto no art. 167, II. Ademais, esvazia, em parte, o conteúdo dos arts. 70 e 71 da CF, que cometem ao Congresso Nacional a importantíssima missão de fiscalizar e controlar os gastos públicos, ferindo de morte o princípio da legitimidade que deve presidir o controle sob o prisma da legalidade e da economicidade da execução orçamentária e financeira.

Concluindo, ambos os incisos legais examinados (incisos I e II do art. 8º da Lei nº 11.079/04) são manifestamente inconstitucionais.

É o nosso parecer, s.m.j.

São Paulo, 18 de janeiro de 2005.

Kiyoshi Harada

OAB/SP 20.317


Notas

1Art. 2º. Para os fins do disposto nesta Lei, considera-se:

............................................................................................................

II – concessão de serviço público: a delegação de sua prestação, feita pelo poder concedente, mediante licitação, na modalidade de concorrência, à pessoa jurídica ou consórcio de empresas que demonstre capacidade para seu desempenho, por sua conta e risco e por prazo determinado;

III – concessão de serviço público precedida de execução de obra pública: a construção, total ou parcial, conservação, reforma, ampliação ou melhoramento de quaisquer obras de interesse público, delegada pelo poder concedente, mediante licitação, na modalidade de concorrência, à pessoa jurídica ou consórcio de empresas empresas que demonstre capacidade para a sua realização, por sua conta e risco, de forma que o investimento da concessionário seja remunerado e amortizado mediante a exploração do serviço ou da obra por prazo determinado;’

2§ 4º. É permitida a vinculação de receitas próprias geradas pelos impostos a que se referem os arts. 155 e 156, e dos recursos de que tratam os arts. 157, 158 e 159, I, a e b, e II, para a prestação de garantia ou contragarantia à União e para pagamento de débitos para com esta.

3 Cf. nosso Direito financeiro e tributário. São Paulo : Atlas, 13ª edição, 2004, p. 130.

4 Essa doutrina foi incorporada pelo art. 16 do CTN, que define o imposto como tributo cuja obrigação tem por gato gerador uma situação independente de qualquer atividade estatal específica, relativa ao contribuinte.

5Direito administrativo brasileiro. 7. ed. São Paulo : Revista dos Tribunais, p. 503.

6Apud Di Pietro, Maria Sylvia Zanella. Direito administrativo. São Paulo : Atlas, 17ª ed., 2004, p.575.

7 Direito constitucional. Rio de Janeiro: Freitas Bastos, 1956, V. 1, p. 218.

8 Cf. nosso Prática do direito financeiro e tributário (artigos e pareceres). São Paulo: Juarez de Oliveira, 2004, p. 204).

9 Op. cit., p. 30.

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Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

. Inconstitucionalidade do Fundo Garantidor das Parcerias Público-Privadas.: Art. 8º da Lei nº 11.079/04. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 10, n. 597, 25 fev. 2005. Disponível em: https://jus.com.br/pareceres/16615. Acesso em: 4 mai. 2024.

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