Da Escrituração Fiscal:
55.Em direito tributário, dois são os tipos de obrigação: de dar, que tem por objeto o pagamento do tributo e é legalmente qualificada como obrigação principal (art. 113, § 1º, do CTN [11]); ou de fazer ou não-fazer, que tem por objeto as prestações, positivas ou negativas, nela previstas no interesse da arrecadação ou da fiscalização dos tributos, legalmente classificada como obrigação acessória (art. 113, § 2º, do CTN [12]).
56.As obrigações de dar são aquelas que têm origem na realização do fato gerador ou da hipótese de incidência tributária, no caso, a efetiva realização da operação de circulação de mercadorias, e como conseqüência o estabelecimento de uma relação jurídica entre o contribuinte (= aquele que realiza a operação de circulação de mercadoria) e o Estado-Membro (Paraná), cujo objeto é o pagamento do tributo.
57.Já as obrigações acessórias são relações jurídicas de cunho não-patrimonial que "gravitam" em torno do tributo, diversas, por isso, da obrigação principal, e sempre representam um fazer ou um não-fazer por parte do contribuinte. Como exemplos de obrigações acessórias temos a obrigatoriedade legal de emitir nota fiscal, de apresentar as mais diversas declarações de bens e de direitos, de manter e escriturar em livro próprio débitos e créditos fiscais e de guarda de documentos.
58.Importante ressaltar que a geração da guia para recolhimento e o próprio ato do pagamento (local da realização do pagamento) são obrigações acessórias, que não se confundem com a obrigação principal. Esta leva em conta os critérios (material, espacial, temporal, pessoal e quantitativo) necessários ao surgimento do dever de pagar o tributo. O ato de realização do pagamento é obrigação acessória, que não se confunde com o objeto da obrigação principal que é o pagamento do tributo ainda não realizado. Portanto, duas são as acepções para expressão "pagamento do tributo" em sentidos inconfundíveis.
59.Neste particular, a escrita fiscal tem por objeto documentar os fatos patrimoniais da empresa de acordo com as exigências da legislação tributária, visando a controlar a correta arrecadação dos tributos ou, ainda, assegurar o perfeito cumprimento das obrigações consistentes na entrega de dinheiro ao Fisco. Nesse sentido é a doutrina especializada:
"No regime de escrituração contábil, em nosso País, assume um destaque especial a escrita fiscal, isto é, aquela que tem por objeto realizar o registro dos fatos patrimoniais de acordo com as exigências da legislação tributária.
Diversos são os livros que a legislação impõe, todos visando a controlar fatos relacionados com os objetos de incidência dos tributos." [13]
60.Resumindo: a escrituração fiscal, enquanto representação material da ocorrência do fato gerador ou da hipótese de incidência tributária, objetiva única e exclusivamente controlar a correta arrecadação dos tributos pelo contribuinte, uma vez que o volume de operações de determinada empresa pode ser elevado, o que não permitiria ao fim do mês apurar o correto valor de tributo a recolher, acaso não existisse esse controle; além disso, permite à Fiscalização Tributária o controle da atividade do contribuinte, compelindo, dessa forma, a sonegação.
61.Nesse sentido, importante ressaltar que não é a escrituração fiscal quem determina o local, o tempo e a efetiva ocorrência do fato gerador que gerará a obrigação de carrear dinheiro aos cofres públicos. Esta apenas documenta essas coordenadas. Por isso, para verificar estes fatores deve-se levar em consideração o que realmente ocorreu no mundo dos fatos, isto é, o verdadeiro local e o tempo exato da circulação da mercadoria.
62.Uma exemplificação é capaz de demonstrar a veracidade desta assertiva: suponha-se que determinada empresa promoveu a circulação de certa mercadoria, mas, com a finalidade de não recolher o ICMS incidente, não escriturou a operação no livro competente; ainda assim, remanesce a obrigatoriedade do recolhimento tendo-se em vista a ocorrência do fato gerador, que poderá ser apurado pela Fiscalização por outros meios, como a análise de estoques, produção, demais livros contábeis, notas fiscais etc.
63.Da mesma forma, não é o local em que é realizada a escrituração fiscal que determina o local da ocorrência do fato gerador. O fato de a escrituração realizar-se na cidade A e a operação de circulação de mercadoria ter-se realizado na cidade B não importa concluir que o fato gerador ocorreu na cidade A.
64.Com efeito, quem determina o local da ocorrência do fato gerador é a própria hipótese de incidência tributária, também denominada de regra-matriz de incidência tributária, depreendida diretamente da Constituição Federal e da legislação que a complementa, descrita no ponto ‘(c)’ deste estudo.
65.Além disso, o próprio art. 11, inciso I, alínea a, da Lei Complementar n.º 87/96 é claro ao determinar que se considera como local da operação o estabelecimento onde se encontre a mercadoria no momento da ocorrência do fato gerador, que é saída da mercadoria do estabelecimento (art. 12, inciso I, da Lei Complementar n.º 87/96 [14]), isto é, o momento em que se realiza uma operação de circulação de mercadorias. Para melhor entendimento, transcreve-se a disposição legal:
Art. 11. O local da operação ou da prestação, para os efeitos da cobrança do imposto e definição do estabelecimento responsável, é:
I - tratando-se de mercadoria ou bem:
a) o do estabelecimento onde se encontre, no momento da ocorrência do fato gerador;
66.Desta forma, sempre que se falar em ICMS incidente sobre a realização de operações de circulação de mercadorias, o local da ocorrência do fato gerador será o estabelecimento da empresa onde se encontre a mercadoria no momento da ocorrência do fato gerador, conforme o critério espacial da hipótese de incidência tributária deste imposto, independentemente do local em que venha a ser escriturada esta operação.
Dos Termos de Acordo firmados entre Estados e Entidades Privadas, tendo em vista o ICMS:
67.Os Termos de Acordo firmados entre Estados e entidades privadas (= empresas), tendo em vista o ICMS, é uma prática há muito adotada no quotidiano da realidade brasileira. Na maioria das vezes, tem por mote instrumentalizar o acesso e a forma de utilização de benefícios fiscais ou simplificar procedimentos no interesse da Administração Tributária.
68.Tais Termos de Acordo são por excelência atos administrativos e decorrem diretamente da autonomia dos Estados-Membros frente aos demais entes federados (União, Municípios e Distrito Federal), prescrito no art. 18 da Constituição Federal [15], que compreende a tríplice capacidade de (i) auto-organização e normatização própria, (ii) autogoverno e (iii) auto-administração.
69.Nesse sentido é a lição de Alexandre de Moares:
"A autonomia dos Estados-membros caracteriza-se pela denominada tríplice capacidade de auto-organização e normatização própria, autogoverno e auto-administração." [16]
70.Os Estados-Membros se auto-organizam por meio de seu poder constituinte derivado-decorrente, consubstanciando-se na edição das respectivas Constituições Estaduais e, posteriormente, através de sua legislação própria, na forma do art. 25 da Constituição Federal, ora transcrito:
Art. 25. Os Estados organizam-se e regem-se pelas Constituições e leis que adotarem, observados os princípios desta Constituição.
§ 1.º São reservadas aos Estados as competências que não lhes sejam vedadas por esta Constituição.
71.Importante ser ressaltado que a Constituição e a legislação estaduais não podem ir de encontro aos princípios e disposições da Constituição Federal, sob pena de inconstitucionalidade por violação ao princípio da hierarquia das leis, onde as leis de maior hierarquia se sobrepõem sobre às de menor, na clássica pirâmide de Hans Kelsen.
72.O autogoverno decorre da necessidade de o próprio povo escolher diretamente os seus representantes nos Poderes Executivo e Legislativo locais, sem que haja qualquer vínculo de subordinação ou tutela por parte da União.
73.Já a capacidade de auto-administração diz com o exercício das competências administrativas, legislativas e tributárias acometidas constitucionalmente aos Estados-Membros.
74.Com base nessa autonomia, o Estado do Paraná promulgou, em 5 de outubro de 1989, a sua Constituição Estadual, que em seu art. 87, inciso XVIII, averba:
Art. 87. Compete privativamente ao Governador:
(...)
XVIII - celebrar ou autorizar convênios ou acordos com entidades públicas ou particulares, na forma desta Constituição;
75.Logo, a celebração de Termos de Acordo entre o Estado do Paraná e entidades particulares, que podem ser estabelecimentos comerciais ou empresariais, está genericamente autorizada pela Constituição local.
76.A Lei Orgânica do ICMS do Estado do Paraná (Lei n.º 11.580/96) é clara ao determinar que a concessão de regimes especiais, objetivando facilitar o cumprimento das obrigações principal e acessória, como é o caso do Termo de Acordo em debate, firmado entre o Estado e a Consulente, que simplifica a escrituração fiscal, depende da celebração de acordo, nos seguintes termos:
Art. 42. Em casos peculiares e objetivando facilitar o cumprimento das obrigações principal e acessória poder-se-á adotar regime especial.
Parágrafo único. Caracteriza-se regime especial, para os efeitos deste artigo, qualquer tratamento diferenciado da regra geral de extinção do crédito tributário, de escrituração ou de emissão de documentos fiscais.
Art. 43. Os regimes especiais serão concedidos:
I - através de celebração de acordo;
II - com base no que se dispuser em decreto do Poder Executivo quando a situação peculiar abranger vários contribuintes ou responsáveis.
§ 1.º Quando o regime especial compreender contribuinte do imposto sobre produtos industrializados, o pedido será encaminhado, desde que favorável a sua concessão, à Secretaria da Receita Federal.
§ 2.º Fica proibida qualquer concessão de regime especial fora das hipóteses indicadas neste artigo.
§ 3.º O regime especial é revogável, a qualquer tempo, podendo, nos casos de acordo, ser denunciado isoladamente ou por ambas as partes.
§ 4.º Os acordos celebrados na forma do inciso I deste artigo deverão ser publicados no Diário Oficial do Estado.
77.No mesmo sentido, é o Regulamento do ICMS do Estado do Paraná, aprovado pelo Decreto n.º 5.141/01, em seus arts. 78 e 79:
Art. 78. Em casos peculiares e objetivando facilitar o cumprimento das obrigações principal e acessória poder-se-á adotar regime especial (art. 42 da Lei 11.580/96).
Parágrafo único. Caracteriza-se regime especial, para os efeitos deste artigo, qualquer tratamento diferenciado da regra geral de extinção do crédito tributário, de escrituração ou de emissão de documentos fiscais.
Art. 79. Os regimes especiais serão concedidos (art. 43 da Lei n. 11.580/96):
I - através de celebração de acordo;
II - com base neste Regulamento quando a situação peculiar abranger vários contribuintes ou responsáveis.
§ 1.º Compete ao Diretor da Coordenação da Receita do Estado a concessão dos regimes especiais.
§ 2.º Quando o regime especial compreender contribuinte do imposto sobre produtos industrializados, o pedido será encaminhado, desde que favorável a sua concessão, à Secretaria da Receita Federal.
§ 3.º Fica proibida qualquer concessão de regime especial fora das hipóteses indicadas neste artigo.
§ 4.º O regime especial é revogável, a qualquer tempo, podendo, nos casos de acordo, ser denunciado isoladamente ou por ambas as partes.
§ 5.º O acordo celebrado na forma do inciso I deste artigo deverá ser numerado em ordem seqüencial, sendo que o contribuinte beneficiado providenciará a publicação do mesmo no Diário Oficial do Estado.
78.Por fim, os arts. 81 a 84 do Regulamento do ICMS descrevem minuciosamente o procedimento adotado para a concessão de qualquer regime especial.
79.Portanto, inexistem dúvidas acerca da autorização constitucional e legal à celebração de termos de acordo entre o Estado do Paraná e entidades privadas.
80.Sendo os termos de acordo atos administrativos, a sua validade está adstrita ao cumprimento dos princípios da legalidade, impessoalidade, moralidade, publicidade e eficiência, descritos no art. 37 da Constituição Federal [17], bem como aos requisitos específicos de qualquer ato administrativo.
81.Na espécie, não grassam dúvidas de que, na assinatura do Termo de Acordo, todos os princípios citados foram respeitados pela Administração Pública.
82.Primeiramente, porque não se afastou dos mandamentos da lei, agindo de acordo com a Constituição Federal, a Constituição Estadual e a Lei Estadual n.º 11.580/96, que conferem à Administração Paranaense os poderes para firmarem termos de acordo com empresas privadas, facilitando o cumprimento das obrigações principal e acessória relativas ao ICMS. Segundo, a possibilidade que a legislação do Estado do Paraná oferece a todos os contribuintes de aderirem a regimes especiais, de acordo com as suas peculiaridades, não acarreta qualquer violação ao princípio da impessoalidade. Terceiro, o princípio da moralidade está cumprido na medida em que não existe qualquer deslealdade ou violação da boa-fé por parte da Administração Pública ou da Consulente na adesão ao Termo de Acordo. Cumpre-se, assim, com os postulados do bom administrador, considerando que a escrituração fiscal centralizada na matriz da Empresa X atende ao interesse público, já que diminui os custos da máquina pública nas atividades de fiscalização, que não precisa despender recursos na averiguação da documentação fiscal das filiais. Quarto, o ato foi publicado no Diário Oficial do Estado, cumprindo com o princípio da publicidade. Por fim, o instrumento firmado permite a realização das atribuições administrativas com rapidez, perfeição e rendimento, em razão das facilidades que a escrituração fiscal centralizada patrocina.
83.Além desses princípios, para que seja válido e eficaz, o ato administrativo deve preencher, ainda, requisitos específicos, denominados de requisitos do ato administrativo, que são (i) agente público competente, (ii) finalidade, (iii) forma, (iv) motivo, (v) conteúdo, (vi) objeto e (vii) causa. Este o magistério de Diogenes Gasparini:
"3. Requisitos do ato administrativo
São os componentes que o ato deve reunir para ser perfeito e válido. (...) os requisitos do ato administrativo são sete e assim denominados: agente público competente, finalidade, forma, motivo, conteúdo, objeto e causa." [18]
84.O Termo de Acordo em destaque também está em consonância com estes requisitos. O ato foi editado por agente público com capacidade para tanto, isto é, dotado de força legal para o seu exercício. A sua finalidade é de interesse público – simplificar a escrituração fiscal da Consulente implica redução de custos, além de evitar recolhimento de tributos a menor em razão da complexidade da escrituração fiscal. O ato está revestido da forma prescrita em lei e, também, o motivo caracteriza uma situação do mundo real que é de interesse do Estado do Paraná e que exige a atuação da administração pública. O seu conteúdo, consubstanciado nas cláusulas do Termo de Acordo, e o objeto, simplificação da escrituração fiscal, são claros e não contrariam o ordenamento jurídico vigente. A correlação lógica entre o motivo e o conteúdo do termo de acordo se prestam para sua finalidade legal, perfectibilizando a sua causa.
85.Destarte, o Termo de Acordo firmado é ato administrativo perfeito, válido e eficaz, com previsão constitucional e legal.