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Consequências da pré-morte da herdeira testamentária

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10/03/2011 às 15:36
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9. Rigidez na interpretação das disposições testamentárias

O testamento, enquanto instrumento materializador das disposições de última vontade, deve ser interpretado restritivamente, dada a rigidez que orienta as normas da sucessão testamentária. Daí a regra do art. 1.899 do Código Civil: "Quando a cláusula testamentária for suscetível de interpretações diferentes, prevalecerá a que melhor assegure a observância da vontade do testador".

Isso não quer dizer que tudo aquilo que constar na cédula testamentária deverá ser interpretado tal como lá está. Em absoluto! No tocante ao testamento – como, aliás, todo aquilo que diz respeito ao sistema jurídico –, toda e qualquer interpretação deve ser feita levando-se em consideração todas as demais normas que eventualmente incidam sobre uma determinada hipótese. Deve-se, sim, interpretar o testamento de modo a que melhor assegure a vontade do testador. Contudo, isso não significa que a vontade do testador possa se sobrepor ao que está determinado na lei. Poderá se adequar; sobrepor-se, jamais!

Neste momento chamo a atenção em torno da cláusula testamentária na qual a testadora dispôs que "os BENS que possui, sejam atribuídos METADE, a sua filha S.R.O.N.L.; e, a outra METADE, em partes iguais aos sues NETOS:- A.R.O.N., casado; A.P.R.O., separado judicialmente; e A.P.R.O., solteiro-maior".

É claro que está escrito que em relação aos bens "metade" será atribuída a uma herdeira testamentária, e a outra "metade" será atribuída em três partes iguais aos outros três herdeiros testamentários. Mas isso, em hipótese alguma, significa que a testadora fez menção a TODO o seu patrimônio. A metade-metade a que se refere a disposição testamentária diz respeito exclusivamente a parte disponível da testadora, já que a legítima dos herdeiros necessários – e a testadora os têm – é preservada por lei! É o princípio da intangibilidade da legítima a que me referi no item "6", supra, deste parecer.


10. À guisa de conclusão: atual situação jurídica do caso sob exame

Tendo em vista o falecimento da S.R.O.N.L. antes da abertura da sucessão de M.F.R.O., a cláusula do testamento público que a instituiu herdeira testamentária "caducou", ou seja, tornou-se ineficaz.

No mais, as disposições de última vontade da autora do testamento permanecem absolutamente eficazes, restando como herdeiros testamentários apenas A.R.O.N., A.P.R.O. e A.P.R.O, que receberão, caso o testamento não seja modificado, apenas METADE da parte disponível de M.F.R.O. A outra METADE da parte disponível, originariamente direcionada à herdeira testamentária pré-falecida, será objeto de sucessão legítima, e será repartida juntamente com o resto do patrimônio entre os herdeiros necessários da testadora, no caso, seus cinco netos.

Em miúdos: são três herdeiros testamentários e cinco herdeiros necessários, sendo que a caducidade atingiu apenas a cláusula da deixa testamentária em favor da herdeira pré-falecida.


11. Reposta aos quesitos

Passo a responder os quesitos formulados pelo consulente, com base nas premissas deste parecer.

1) Ante a pré-morte de S.R.O.N.L, o testamento continua a ter validade? Em caso positivo, quais as disposições que permaneceriam válidas?

R: Sim, o testamento público analisado continua a ter validade mesmo com a morte da herdeira testamentária S.R.O.N.L.

Todas as demais disposições de última vontade lançadas no testamento permanecem válidas, tendo "caducado" – leia-se: perdido a eficácia – apenas a cláusula que contemplou a herdeira testamentária pré-morta.

2) As herdeiras de S.R.O.N.L, suas duas filhas, receberiam por direito de representação o quinhão testamentário da pré-falecida?

R: Não. Pela simples razão de que na sucessão testamentária não há direito de representação.

Dessa forma, as filhas da herdeira testamentária já falecida não receberão o quinhão testamentário de S.R.O.N.L, tendo em vista a caducidade da cláusula que a beneficiou.

3) Em prevalecendo o testamento mesmo ante a pré-morte de um dos herdeiros testamentários, as disposições em que a testadora atribui METADE dos bens para um herdeiro e a outra METADE para outros três, seriam referentes a todo o acervo hereditário?

R: Não. As disposições do testamento quanto a divisão de METADE dos bens da testadora para uma herdeira testamentária, e a outra METADE para outros três herdeiros testamentárias, referem-se única e exclusivamente à "parte disponível" do patrimônio da testadora, tendo em vista a existência de herdeiros necessários cuja "legítima" lhes é garantida por lei.

4) Em prevalecendo o testamento, como ficaria a repartição da herança, considerando-se que há 3 (três) herdeiros testamentários e mais 5 (cinco) herdeiros necessários?

R: A prevalência do testamento é inconteste, tendo caducado, apenas, a disposição que contemplou S.R.O.N.L, eis que faleceu antes da testadora.

Dessa forma, caso seja mantido o testamento tal como está, a repartição da herança será feita da seguinte maneira:

- 25% (vinte e cinco por cento) do patrimônio – parcela da "parte disponível" da testadora – será dividido, em partes iguais, entre os herdeiros testamentários A.R.O.N., A.P.R.O. e A.P.R.O, estes, vale lembrar, netos e também herdeiros necessários de M.F.R.O.;

- os outros 75% (setenta e cinco por cento) do patrimônio será dividido, em partes iguais, entre os cinco netos e herdeiros necessários de M.F.R.O., ou seja, os três filhos de seu já falecido filho H.A.R.O., e as duas filhas de sua também já falecida filha S.R.O.N.L.

É este o meu parecer, s.m.j.

Jundiaí, 30 de janeiro de 2006.

GLAUCO GUMERATO RAMOS

oabsp nº 159.123


Notas

  1. Coloquei entre aspas tendo em vista que a suposta "interpretação" está sendo feita por leigos e, ainda por cima, emocionalmente envolvidos no respectivo drama familiar. De interpretação fundada na hermenêutica, portanto, não se trata.
  2. Código Civil, art. 1.846: "Pertence aos herdeiros necessários, de pleno direito, a metade dos bens da herança, constituindo a legítima".
  3. Cf. SILVA PEREIRA, Caio Mário. Instituições de direito civil, vol. VI – Direito das sucessões, Rio de Janeiro : Ed. Forense, 2005, 15ª ed., p. 3.
  4. Autor da herança é o falecido que deixa bens a suceder, sendo que literatura jurídica também o chama de sucedendo, defunto, falecido, antecessor, morto, finado, inventariado, de cujus, dentre outras denominações correlatas.
  5. Essa METADE a que me refiro é a chamada legítima, e mesmo que haja testamento essa parcela do patrimônio do falecido sempre será adquirida pelos herdeiros necessários. Importante notar que só há que se falar em legítima se, quando da abertura da sucessão, houver herdeiros necessários. O Código Civil, em seu art. 1.846, afirma que "pertence aos herdeiros necessários, de pleno direito, a metade dos bens da herança". Sobre a legítima, versaremos com mais vagar no item "6" deste parecer.
  6. A sucessão legítima – aquela que se dá entre os herdeiros necessários – poderá ser "por cabeça" ou "por estirpe", conforme o grau em que estejam os respectivos herdeiros. Deixando o de cujus filhos e netos, os filhos recebem seu quinhão "por cabeça", os netos, por sua vez, recebem "por estirpe" ou direito de representação de seu antecessor pré-falecido (quanto ao direito de representação ver arts. 1.851 e segts. do Código Civil). Por outro lado, caso o autor da herança só tenha netos como seus herdeiros necessários, todos eles recebem a herança em partes iguais, que será então dividida "por cabeça", tendo em vista estarem eles no mesmo grau.
  7. Maria Helena Diniz, arribada no magistério de Silvio Rodrigues, nos oferece dois exemplos emblemáticos em relação ao recebimento da herança "por cabeça" e "por estirpe" (ou direito de representação). Vejamos o exemplo da Profa. Titular de Direito Civil da PUC/SP na sucessão do descendente por cabeça: "Se deixou dois filhos, a herança será dividida em duas partes iguais, ficando uma com cada filho; se tem apenas três netos, por haverem seus filhos anteriormente falecido, o acervo hereditário será dividido pelo número de netos, recebendo cada um quota idêntica, já que se encontram no mesmo grau." (Cf. DINIZ, Maria Helena. Curso de Direito Civil brasileiro, vol. 6, Direito das Sucessões, São Paulo : Ed. Saraiva, 2002, 16ª ed., p. 97). Agora, o exemplo a respeito da sucessão por estirpe: "Se o finado tinha dois filhos vivos e três netos, filhos do filho pré-morto, a herança dividir-se-á em três partes. As duas primeiras partes cabem aos filhos vividos do de cujus, que herdam por cabeça, a terceira pertence aos três netos, que dividem o quinhão entre si e sucedem representando o pai falecido, dado que os filhos são parentes em primeiro grau e os netos, em segundo." (outra vez, DINIZ, Maria Helena. Curso de Direito Civil brasileiro, vol. 6, Direito das Sucessões, São Paulo : Ed. Saraiva, 2002, 16ª ed., p. 98).

  8. CC, art. 1.835: "Na linha descendente, os filhos sucedem por cabeça, e os outros descendentes, por cabeça ou por estirpe, conforme se achem ou não no mesmo grau".
  9. CC, art. 1.789: "Havendo herdeiros necessários, o testador só poderá dispor de metade da herança".
  10. CC, art. 1.784: "Aberta a sucessão, a herança transmite-se, desde logo, aos herdeiros legítimos e testamentários".
  11. CC, art. 1.789: "Havendo herdeiros necessários, o testador só poderá dispor da metade da herança".
  12. CC, art. 1.846: "Pertence aos herdeiros necessários, de pleno direito, a metade dos bens da herança, constituindo a legítima".
  13. CC, art. 1.857, § 1º: "A legítima dos herdeiros necessários não poderá ser incluída no testamento".
  14. CR, art. 5º, XXX: "é garantido o direito de herança".
  15. Expressão utilizada desde o direito romano que significa "sem testamento", ou seja, refere-se à pessoa que faleceu sem ter deixado testamento.
  16. Embora sejamos discípulos confesso da chamada teoria concepcionista – inclusive como conseqüência natural da dignidade da pessoa humana tutelada pelo direito civil constitucional – não entraremos aqui, até pelos limites do que está sendo tratado neste parecer, na respectiva discussão. Para o didatismo que se pretende na fundamentação do presente estudo, basta a afirmativa que acaba de ser feita, no sentido de que a "personalidade jurídica começa do nascimento com vida".
  17. CC, art. 2º: "A personalidade civil da pessoa começa do nascimento com vida; mas a lei põe a salvo, desde a concepção, os direitos do nascituro".
  18. Trecho extraído do seguinte acórdão: STJ – REsp 147959/SP – 4ª T. – Rel. Min. Sálvio de Figueiredo Teixeira – j. 14/12/2000 – publicado no DJ em 19/03/2001 – p. 111.
  19. CC, art. 1.973: "Sobrevindo descendente sucessível ao testador, que não o tinha ou não o conhecia quando testou, rompe-se o testamento em todas as suas disposições, se esse descendente sobreviver ao testador".
  20. CC, art. 1.974: "Rompe-se também o testamento feito na ignorância de existirem ouros herdeiros necessários".
  21. Enquanto a "capacidade testamentária passiva", conforme já esclarecido neste parecer, é a possibilidade de se adquirir por testamento, a "capacidade testamentária ativa" é a possibilidade de manifestar disposições de última vontade em relação à parte disponível dos respectivos bens.
  22. Trecho extraído do seguinte acórdão, assim ementado: TJSP – Ap. Cível – 080060.4/3 – 9ª Câm. – Rel. Des. Brenno Marcondes – j. 09.11.99: "...Documento juridicamente ineficaz e caduco, em vista do falecimento da legatária, ocorrido em data anterior ao óbito do testador. Todavia, não mais existindo a beneficiária, pressuposto essencial e primeiro da capacidade para adquirir por testamento, não há mais nada a se cumprir, resultando aquele ato de última vontade, em disposição totalmente inoperante, caduca. Recurso não provido".
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Sobre o autor
Glauco Gumerato Ramos

Mestrando em direito processual na Universidad Nacional de Rosario (UNR - Argentina). Mestrando em direito processual civil na PUC/SP Membro dos Institutos Brasileiro (IBDP), Iberoamericano (IIDP) e Panamericano (IPDP) de Direito Processual. Professor da Faculdade de Direito da Anhanguera Jundiaí (FAJ). Advogado em Jundiaí

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

RAMOS, Glauco Gumerato. Consequências da pré-morte da herdeira testamentária. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 16, n. 2808, 10 mar. 2011. Disponível em: https://jus.com.br/pareceres/18629. Acesso em: 24 abr. 2024.

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