Agência de vigilância sanitária municipal e limitação do poder de polícia

10/03/2015 às 16:57

Resumo:


  • As exigências da vigilância sanitária devem se enquadrar nas legislações aplicáveis, sejam essas municipais, estaduais ou federais.

  • A portaria CVS 5/2013-SP não pode ser aplicada ao território do município de Ouro Preto nem pode ser utilizada como modo de ilidir responsabilidades das empresas, podendo ser utilizada como mero guia.

  • Recomenda-se a adequação das exigências dos Srs. Vigilantes Sanitários às exigências da resolução RDC 216/04 da ANVISA e, quando for o caso, do Código de Saúde de Minas Gerais e da lei municipal n. 816/12, de modo a manter a atuação do ente nos estreitos limites da lei.

Resumo criado por JUSTICIA, o assistente de inteligência artificial do Jus.

Trata-se de parecer emitido com fim de manifestar-se quanto à impossibilidade de exigência de condições mais gravosas aos estabelecimentos comerciais do que as previstas no RDC 216 da Anvisa, diante da ausência de regulamentação municipal específica.

Órgão solicitante:Superintendência da Vigilância em Saúde

Assunto: Poder de fiscalização da Vigilância Sanitária

Ementa: Vigilância Sanitária – Fiscalização – Poder de Polícia – Limites – Resolução RDC nº 216/2004.

Relatório

Em data de 06 de outubro de 2014 foi apresentada, pelas empresas XXXX, defesa técnica contra autos de infração lavrados pela vigilância sanitária municipal em que se alegava que as exigências feitas pela vigilância sanitária estariam em desacordo com a legislação vigente, vez seriam mais gravosas do que as impostas pela resolução RDC nº 216/2004.

Os pontos questionados são, em suma, a exigência de temperatura maior do que a exigida pela resolução RDC 215 da ANVISA para conservação de alimentos quentes. A exigência de congelamento em tempo menor do que o exigido pela resolução RDC 216 da ANVISA. A exigência de higienização dos ovos, não prevista na resolução RDC 216 da ANVISA. A exigência de uso de amônia quartenária não prevista na resolução RDC 216 da ANVISA. E, por fim, a possibilidade de utilização da utilização da Portaria CVS 5, de 06 de abril de 2013, da secretaria de saúde do estado de São Paulo, como modelo de orientação.

Deste modo requer seja reconhecida a regularidade das empresas quantos aos seguintes pontos e modificadas as exigências municipais adequando-as àquelas constantes da resolução RDC nº 216/2004.

Em vista dessas questões foi oficiada a Procuradoria Jurídica Municipal para se posicionar quanto à legitimidade das exigências realizadas pela fiscalização sanitária municipal.

É o bastante relatório. Passo a opinar.

Fundamentação


Dos limites à fiscalização

A Constituição de 1988 trouxe a questão da alimentação para dentro do sistema de saúde (art. 200, VI da Constituição Federal), transformando-o assim em assunto de competência concorrente entre os entes federativos (art. 23, II, CF e art. 24, XII, CF).

Como a competência para a matéria é concorrente, por óbvio também o é a competência para o exercício de poder de polícia. Nestes termos a doutrina postula que:

“a competência para legislar sobre saúde pública e, portanto, sobre vigilância sanitária está na esfera de todos os entes federativos: para a União e os Estados, em razão da competência concorrente prevista no art. 24, XII; e para os Municípios, em razão da competência residual do art. 30, I, ambos da Constituição da República.”[1]

É bem claro deste modo que possui o município competência para exercer o poder de polícia, no caso caracterizado como poder de fiscalização, com intuito de proteger a saúde pública municipal.

O Direito positivo também abarca, ainda que de modo tímido, a figura do poder de polícia, exemplificativamente o Código Tributário Nacional o define como:

Art. 78. Considera-se poder de polícia atividade da administração pública que, limitando ou disciplinando direito, interêsse ou liberdade, regula a prática de ato ou abstenção de fato, em razão de intêresse público concernente à segurança, à higiene, à ordem, aos costumes, à disciplina da produção e do mercado, ao exercício de atividades econômicas dependentes de concessão ou autorização do Poder Público, à tranqüilidade pública ou ao respeito à propriedade e aos direitos individuais ou coletivos.

Assim a questão sob análise se reduz a um único aspecto: qual a limitação do poder de polícia municipal no controle da venda de alimentos?

Para a análise do caso se mostra útil a análise do que Diogo de Figueiredo Moreira Neto chamou de ciclos de polícia. Para o autor o exercício do poder de polícia se dá em quatro fases: a ordem de polícia, o consentimento de polícia, a fiscalização de polícia e a sanção de polícia. E, por mais teórica que possa parecer a divisão, o STJ a vem adotando em virtude da sua inegável utilidade.[2]

Neste sentido a ordem de polícia corresponde ao comando normativo geral e abstrato ou individual e concreto expedido com fins de regular a atividade. O consentimento de polícia corresponde à autorização para o exercício da atividade. A fiscalização de polícia corresponde ao ato administrativo que verifica a observância das ordens de polícia expedidas e a sanção de polícia corresponde à aplicação de pena administrativa pelo descumprimento de ordem de polícia.

Bandeira de Mello, neste sentido, afirma que “A polícia administrativa manifesta-se tanto através de atos normativos e de alcance geral quanto de atos concretos e específicos”[3].

O questionamento ao qual busca responder este parecer é se é cabível a realização de fiscalização de polícia, sem critérios pré-determinados por ordem de polícia, ou seja, se é possível se realizar a fiscalização com parâmetros não constantes no ordenamento jurídico pátrio.

A questão passa primeiramente pela análise das características do poder de polícia, em especial, da sua natureza discricionária. A doutrina é uníssona em caracterizar o poder de polícia como discricionário, ou seja, pode aquele que exerce o poder de polícia determina como e quando agir, sua natureza discricionária permite que:

“Quando tem a lei diante de si, a Administração pode levar em consideração a área de atividade em que vai impor a restrição em favor do interesse público e, depois de escolhê-la, o conteúdo e a dimensão das limitações”[4]

Assim pode a Administração pública agir, no exercício deste poder, de modo mais livre do que o convencional. Essa discricionariedade, todavia, não se confunde com arbitrariedade, em verdade essa discricionariedade decorre diretamente da lei, pois se a lei não permitir esta margem de manobra à Administração Pública será ilícita qualquer tentativa de impor obrigações ao administrado.  Marçal Filho se posiciona neste exato sentido:

“O poder de polícia compreende competências extraídas tanto expressa como implicitamente das leis. Manifestações inovadoras de liberdades podem ser reguladas pela Administração Pública em vista dos princípios jurídicos fundamentais” [5]

Assim a legislação em vigor delimita o âmbito no qual pode o administrador exercer a discricionariedade.

Ocorre que, como exceção, o poder de polícia se mostra vinculado. Ou seja, tal como exposto anteriormente, caso a lei não possibilite a atuação discricionária não poderá o administrador, sob o argumento do poder de polícia, exigir o que a lei não exige. Di Pietro ressalta que em certas hipóteses:

“A lei já estabelece que, diante de determinados requisitos, a Administração terá que adotar solução previamente estabelecida, sem qualquer possibilidade de opção. Neste caso, o poder será vinculado.” [6]

Assim, caso a lei não garanta margem ao administrador o poder de polícia se torna vinculado. Ocorre que o vocábulo “lei” aqui exposto não deve se limitar ao seu sentido formal, ou seja, às espécies normativas efetivamente aprovadas pelo poder legislativo, mas deve ser aplicado em seu sentido material.

Deste modo se afigura claro que a RDC 216/04 como ordem de polícia que é vincula, não só o particular, mas também a fiscalização exercida pela administração pública.

Se regredirmos um pouco percebe-se que embora seja uma resolução federal, seu conteúdo se aplica a todos os entes federativos, tendo em vista a competência concorrente para legislar sobre a saúde e que a RDC também se afigura como manifestação do poder de polícia, na modalidade ordem de polícia.

Deste quadro se afigura que a fiscalização de polícia é ato, em regra, discricionário, logo pode a autoridade fiscalizadora exigir ações dos administrados, ainda que ausente regulação específica. Todavia, uma vez expedida regulamentação, o poder de polícia se torna vinculado aos limites legais, no caso, aos limites da RDC 216/04 da ANVISA.

Como a ordem de polícia foi dada, seja na figura da resolução 216/04 da ANVISA ou nas figuras do Código Estadual de Saúde ou da legislação municipal de estabelecimentos revendedores de carne in natura, a fiscalização deve ser exercida nos limites da regulação.

Dos questionamentos em espécie

Uma vez determinado que não pode a vigilância sanitária municipal se afastar dos limites que regulamentam a matéria é oportuno analisar as indagações em espécie das empresas fiscalizadas.

Deste modo deve ser utilizada a previsão da resolução RDC nº 216/04 dos quais colacionamos os seguintes dispositivos:

Quanto à conservação dos alimentos quentes:

4.8.15 Após serem submetidos à cocção, os alimentos preparados devem ser mantidos em condições de tempo e de temperatura que não favoreçam a multiplicação microbiana. Para conservação a quente, os alimentos devem ser submetidos à temperatura superior a 60ºC (sessenta graus Celsius) por, no máximo, 6 (seis) horas. Para conservação sob refrigeração ou congelamento, os alimentos devem ser previamente submetidos ao processo de resfriamento.[7]

Quanto ao congelamento dos alimentos o processo também está previsto na resolução:

4.8.16 O processo de resfriamento de um alimento preparado deve ser realizado de forma a minimizar o risco de contaminação cruzada e a permanência do mesmo em temperaturas que favoreçam a multiplicação microbiana. A temperatura do alimento preparado deve ser reduzida de 60ºC (sessenta graus Celsius) a 10ºC (dez graus Celsius) em até duas horas. Em seguida, o mesmo deve ser conservado sob refrigeração a temperaturas inferiores a 5ºC (cinco graus Celsius), ou congelado à temperatura igual ou inferior a -18ºC (dezoito graus Celsius negativos).

Quanto à higienização dos alimentos crus há também previsão na resolução que exige sua higienização:

4.8.19 Quando aplicável, os alimentos a serem consumidos crus devem ser submetidos a processo de higienização a fim de reduzir a contaminação superficial. Os produtos utilizados na higienização dos alimentos devem estar regularizados no órgão competente do Ministério da Saúde e serem aplicados de forma a evitar a presença de resíduos no alimento preparado.

Por fim quanto à higienização dos equipamentos a previsão da resolução é a seguinte:

4.2.5 Os produtos saneantes utilizados devem estar regularizados pelo Ministério da Saúde. A diluição, o tempo de contato e modo de uso/aplicação dos produtos saneantes devem obedecer às instruções recomendadas pelo fabricante. Os produtos saneantes devem ser identificados e guardados em local reservado para essa finalidade.

Basta então analisarmos a compatibilidade entre as imposições exigidas pelos fiscais e a dita resolução.

Deste modo quanto à manutenção da temperatura dos alimentos quentes e o modo de congelamento dos alimentos assiste razão à empresa e devem ser utilizados os métodos apontados pela resolução e não os exigidos pelos fiscais. Conforme se expôs anteriormente, uma vez expedida ordem de polícia, não há mais discricionariedade na fiscalização sendo que qualquer exigência adicional deve ser vinculada por outra ordem de polícia, ou seja, deve ser trazida por regramento específico municipal, estadual ou federal.

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Quanto ao uso do álcool 70% para desinfecção dos equipamentos, não há óbice à utilização do mesmo, desde que se cumpram os demais requisitos da resolução, quais sejam, ser regularizado pelo Ministério da Saúde, utilização nos termos das instruções do fabricante e identificação e guarda em local reservado para tal.

Por fim a resolução exige a higienização apenas dos alimentos consumidos crus e, ao mesmo tempo, proíbe a utilização de ovos crus, ou seja, não há falar em higienização dos ovos, se a resolução for adequadamente seguida, vez que os mesmos nunca podem ser utilizados crus.

No tocante à possibilidade de utilização da portaria CVS, de 09 de abril de 2013 da Secretaria de Estado da Saúde de São Paulo não há óbice à sua utilização como fonte auxiliar na realização dos procedimentos.

Todavia, por se aplicável somente no território do ente federativo expedidor não pode ser utilizada pelas empresas como se norma de polícia fosse, mas como mera orientação.

Assim não pode a CVS ser utilizada para eximir a empresa de qualquer responsabilidade ou criar qualquer direito.

Conclusão

De acordo com a fundamentação apresentada conclui-se que:

  1. as exigências realizadas pela vigilância sanitária devem se enquadrar nas legislações aplicáveis, sejam essas municipais, estaduais ou federais. Assim:

a.1) Não é razoável a exigência de manutenção dos alimentos quentes acima de 65ºC.

a.2) Não é razoável a exigência de congelamento imediato de alimentos.

a.3) A utilização de álcool 70% é possível, mas está condicionada ao cumprimento dos demais requisitos da resolução.

a.4) Por não poderem ser consumidos crus não é razoável a exigência de higienização dos ovos.

  1. A portaria CVS 5/2013-SP não pode ser aplicada ao território do município de Ouro Preto nem pode ser utilizada como modo de ilidir responsabilidades das empresas podendo ser utilizada como mero guia.

Outrossim recomenda-se a adequação das exigências dos Srs. Vigilantes Sanitários às exigências da resolução RDC 216/04 da ANVISA e, quando for o caso, do Código de Saúde de Minas Gerais e da lei municipal n. 816/12, de modo a manter a atuação do ente nos estreitos limites da lei.

[1] ASENSI, Felipe Dutra org. O sistema Único de Saúde e a concepção de regulação de vigilância sanitária. in. Direito Sanitário. p.165. Elsevier, Rio de Janeiro: 2012.

[2] REsp 817534/MG, de 2009

[3] MELLO, Bandeira de. Curso de Direito Administrativo. 31ªed. p.853. Malheiros.2014. 

[4] CARVALHO FILHO, José dos Santos. Manual de Direito Administrativo.p.87. 27ª Ed. Atlas. São Paulo 2014.

[5] JUSTEN FILHO, Marçal. Curso de Direito Administrativo. p.577.7ª Ed. Fórum 2011.

[6] DI PIETRAO, Maria Sylvia Zanella. Direito Administrativo. p.127. 27ª Ed. Atlas. São Paulo 2014.

[7] Disponível em: http://portal.anvisa.gov.br/wps/wcm/connect/4a3b680040bf8cdd8e5dbf1b0133649b/RESOLU%C3%87%C3%83O-RDC+N+216+DE+15+DE+SETEMBRO+DE+2004.pdf?MOD=AJPERES

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Sobre o autor
Yuri Alexander

Advogado. Procurador do Município de Ouro Preto. Pós-graduando em Teoria do Direito e Filosofia Jurídica pela PUC-Minas. Bacharel em Direito pelo Instituto Vianna Júnior.

Informações sobre o texto

Este texto foi publicado diretamente pelos autores. Sua divulgação não depende de prévia aprovação pelo conselho editorial do site. Quando selecionados, os textos são divulgados na Revista Jus Navigandi

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