Parecer acerca do Projeto de Lei 6.583/2013 (Estatuto da Família)

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Trata-se de parecer no qual se analisa a constitucionalidade do Projeto de Lei que pretende instituir o chamado Estatuto da Família. Como instrumentos para a análise, foram utilizados métodos hermenêuticos clássicos, além da ponderação de princípios.

Relatório

         O Projeto de Lei 6.583/2013, de autoria do deputado Anderson Ferreira (PR-PE),  que dispõe acerca do Estatuto da Família e dá outras providências, teria como objetivo, de acordo com a justificativa do autor anexada ao texto, promover políticas públicas mais eficientes com relação à entidade familiar, de maneira a possibilitar a concretização do que estabelece a Constituição Federal em seu art. 226, quando afirma que a família é base da sociedade e deve receber proteção especial do Estado. De tal maneira, o Projeto de Lei procura estabelecer o conceito de entidade familiar, fixa diretrizes gerais para políticas públicas relacionadas à instituição da família, elenca direitos protetivos desta e institui os chamados conselhos da família.

            No presente parecer será empreendida uma análise no que concerne à constitucionalidade do Projeto, realizando-se uma verificação da compatibilidade deste com o disposto na Constituição Federal. Também será objeto de análise o ambiente social, político e jurídico que cerca a temática abordada no Projeto.

Fundamentação

            No que concerne à constitucionalidade do projeto de lei, esta afigura-se presente na quase totalidade do texto. A maior parte dos dispositivos pode ser considerada regular do ponto de vista de sua conformidade com a Constituição. Nesse sentido, harmonizam-se com o disposto no art. 226 da Carta Magna acerca da proteção da entidade familiar, procurando concretizar políticas públicas para a defesa dessa instituição social.

            A exceção fica por conta de seu artigo 2º. Assim diz o referido dispositivo: “Para os fins desta lei, define-se entidade familiar como o núcleo social formado a partir da união entre um homem e uma mulher, por meio de casamento ou união estável, ou ainda por comunidade formada por qualquer dos pais e seus descendentes” (grifo nosso).

            A redação do artigo permite entrever o claro esforço do autor do projeto em excluir as uniões homoafetivas do conceito de entidade familiar. Da mera leitura, percebe-se que há uma tentativa de restringir o conceito de entidade familiar, quando biparental, à união apenas entre o homem e a mulher, o que excluiria da definição de família as uniões afetivas formadas por dois homens ou por duas mulheres.[1]

            Ocorre também que a questão acerca do conceito de entidade familiar já foi enfrentada pelo Supremo Tribunal Federal em ocasião anterior,[2] momento no qual foi dada interpretação conforme a Constituição à norma do art. 1723 do Código Civil que dispõe a respeito do conceito de união estável. Enuncia o citado artigo que “é reconhecida a união estável entre o homem e a mulher”, o que, antes de seu questionamento no STF, deu ensejo a interpretações que buscavam impedir o reconhecimento de uniões estáveis homoafetivas, tendo inclusive determinados julgados feito uso dessa concepção restritiva, como no seguinte exemplo:

Ação declaratória. Busca de reconhecimento de união estável entre homossexuais. Sentença de improcedência. Nem a Constituição Federal de 1988, nem a Lei 8.971/94, protegem a pretensão rebatida pela decisão apelada. O conceito de família não se estende a união entre pessoas do mesmo sexo. Não demonstrado o esforço comum,também não há que se falar em divisão de patrimônio ou de habilitação no inventário de um dos companheiros, falecido. Precedentes. Desprovimento do recurso (grifo nosso)[3]

            Assim, após questionamento no STF acerca da incerteza interpretativa, os ministros, por unanimidade, deram interpretação conforme a Constituição ao dispositivo do Código Civil, de maneira a impedir interpretações que buscassem restringir os direitos dos casais homoafetivos em verem reconhecidas suas uniões estáveis, estendendo o conceito de família a essas uniões. Conforme afirmou o relator, ministro Carlos Ayres Britto, o art. 226 da Constituição utilizou o termo “família em seu coloquial ou proverbial significado de núcleo doméstico, pouco importando se formal ou informalmente constituída, ou se integrada por casais heterossexuais ou por pessoas assumidamente homoafetivas”.[4] De tal maneira, já existindo no ordenamento jurídico norma dispondo acerca do conceito de família, pode-se afirmar que a aprovação de um projeto de lei com um artigo que procura restringir tal conceito causaria insegurança no ordenamento, trazendo de volta a situação de incerteza que envolvia a questão.[5]

            Do ponto de vista dos valores que o Projeto procura defender, é necessário destacar a visão que os ministros do STF tiveram acerca da interpretação que negava aos companheiros homoafetivos os mesmos direitos dos companheiros heteroafetivos. Os ministros decidiram com base nos princípios da dignidade da pessoa humana, da liberdade e da igualdade. Nesse sentido, afirmou o mesmo ministro Ayres Britto que “se as pessoas de preferência heterossexual só podem se realizar ou ser felizes heterosexualmente, as de preferência homossexual seguem na mesma toada: só podem se realizar ou ser felizes homossexualmente”.[6] Assim, restringir o conceito de família, como faz o artigo 2º do projeto que aqui se analisa, termina por negar aos homoafetivos seu direito de ser felizes na mesma proporção que os heteroafetivos, o que demonstra uma visão de mundo que procura excluir estes primeiros.[7]

            Ressalte-se, também, o contexto histórico no qual é  produzida a norma. Nos tempos atuais, pós-modernos, nos quais se começa a verificar um maior respeito à diversidade e um maior esforço pela concretização dos direitos fundamentais, é impensável que se produza um diploma normativo que termine por restringir direitos de determinado grupo.[8]

            Alguns defensores dessa restrição efetuada pelo projeto argumentam no sentido de que a concepção de união entre homem e mulher como núcleo intangível do conceito de entidade familiar se legitimaria no princípio majoritário, que seria uma das bases da democracia. A maioria, assim, poderia impor sua vontade. No entanto, estão em jogo também os direitos fundamentais de uma minoria. De tal maneira, efetuando-se a ponderação entre esses princípios, é inevitável que princípios como a liberdade e a dignidade da pessoa humana de uma minoria prevaleçam diante dos desmandos do princípio majoritário. Essa é uma das razões de ser da Constituição: proteger direitos fundamentais dos indivíduos.

            O art. 2° do Projeto também não resiste a uma interpretação baseada no princípio da supremacia da Constituição: como a Carta Magna já dispõe acerca do tema, legislação infraconstitucional que verse de maneira contrária sobre a mesma questão deve sucumbir diante da superioridade normativa do dispositivo constitucional.[9] Conforme afirma Luís Roberto Barroso: “Do ponto de vista jurídico, o principal traço distintivo da Constituição é a sua supremacia, sua posição hierárquica superior à das demais normas do sistema. As leis, atos normativos e atos jurídicos em geral não poderão existir validamente se incompatíveis com alguma norma constitucional”[10].

            Em um ambiente como o que o movimento constitucionalista atravessa nos dias de hoje, há uma nova concepção acerca da defesa dos direitos fundamentais. Podemos dizer que, nas últimas décadas, houve grandes transformações na forma de conceber o direito constitucional. Este deixou de ter um papel meramente simbólico, tendo sido alçado ao centro do ordenamento jurídico. Essa nova fase é identificada pela doutrina com o nome de neoconstitucionalismo. Discorrendo acerca dessas transformações, afirma Barroso que o neoconstitucionalismo teria três marcos principais: o filosófico, representado pelo pós-positivismo, que seria a superação do pensamento juspositivo clássico; o marco histórico, que, de uma maneira geral, seria representado pela formação do Estado constitucional de direito após Segunda Guerra Mundial, e, no caso do Brasil, a redemocratização promovida pela Constituição de 1988; além do marco teórico, que seria um conjunto de novas percepções e práticas que incluiriam o reconhecimento da força normativa da Constituição, a ascensão da jurisdição constitucional e o desenvolvimento de uma nova dogmática da interpretação, caracterizada pelo uso de técnicas como a ponderação de princípios.[11]

            Nesse ambiente, o papel do juiz não mais se resume a uma atividade mecânica, sintetizada na prática da subsunção do fato à norma, mas se caracteriza por ser mais ativa no sentido de procurar concretizar as normas constitucionais. Nesse sentido, a atividade judicial assume papel de grande relevância na proteção aos direitos fundamentais, e esse papel se mostra ainda mais importante quando a Suprema Corte julga casos relacionados à defesa de direitos de minorias. Nessa perspectiva, o art. 2º do Projeto de Lei que aqui é objeto de análise poderia ser visto como um retrocesso em relação à proteção de direitos fundamentais. Caso o Projeto viesse efetivamente a se tornar lei, um juiz, ao se deparar com casos nos quais houvesse necessidade de se aplicar o conceito de família ao caso concreto, deveria realizar uma interpretação do dispositivo de acordo com a Constituição, não excluindo, portanto, os casais homoafetivos do conceito de entidade familiar. Interpretação diferente seria flagrantemente inconstitucional, podendo causar grave tumulto no ordenamento jurídico.

            A respeito dos interesses políticos existentes a respeito da elaboração e eventual aprovação do Projeto que aqui se analisa, é preciso que se diga que este é reflexo, em grande medida, dos esforços da ala conservadora do Congresso Nacional para restringir direitos dos homossexuais. Sejam tais esforços motivados por concepções religiosas extremistas ou por mero ódio, o fato é que existem vários exemplos de projetos de lei que procuram instaurar as ditas restrições, como é o caso dos PL’s 7.018/2010 e 4.508/2008, que buscam impedir a adoção de crianças e adolescentes por casais homoafetivos. Além disso, em reiterados discursos os parlamentares pertencentes a essa parcela do Legislativo demonstram o seu repúdio à homossexualidade. Na própria audiência pública que debateu o PL 6.583, vários deputados manifestaram discordância em relação à decisão do Supremo Tribunal Federal, chegando a afirmar que a entidade familiar só poderia ser realmente formada pela união entre homem e mulher.

            Entretanto, a tarefa de guardar a Constituição cabe à Suprema Corte. Assim, ao Supremo Tribunal Federal foi concedido o papel de intérprete último da Constituição. Tal circunstância implica, por óbvio, que o STF tome decisões de cunho político. No entanto, mesmo que tais decisões tenham reflexo fora do mundo jurídico, a atuação dos ministros da Corte deve ser pautada por critérios estabelecidos pela própria Constituição, e, por isso mesmo, critérios jurídicos. As repercussões políticas das decisões seriam uma decorrência do próprio texto constitucional, de índole substantiva, que estabelece um amplo rol de direitos fundamentais.

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            A respeito dessa supremacia do Judiciário, aduz Barroso que para ela haveria duas justificativas: uma de natureza filosófica e outra de natureza normativa. Esta última, para ele, estaria ligada à ideia que expressamos acima de que a Constituição teria conferido tal poder ao Judiciário, o que não seria singularidade brasileira, mas prática da maior parte dos estados democráticos. Os magistrados, de tal maneira, estariam atuando em nome do povo, em cujo nome foi elaborada a Constituição. Adverte ainda o autor que tal lógica precisa ser vista com ressalvas, posto que muitas vezes os magistrados acabam sendo co-autores do Direito.[12]

            A justificativa filosófica, para Barroso, decorreria do fato de que o Estado constitucional democrático seria fruto de duas ideias que, apesar de se complementarem, não se confundem: constitucionalismo e democracia. O primeiro relacionado ao governo da razão e à proteção dos direitos fundamentais, e a última ligada ao princípio majoritário. Diante da natural tensão existente entre estes, a Constituição deveria desempenhar dois grandes papéis: o primeiro, de assegurar as regras da democracia e o governo da maioria, e o segundo, de proteger os direitos fundamentais dos indivíduos mesmo contra as maiorias.[13]

            O art. 2º do Projeto elaborado pelo nobre deputado vai contra a tendência de proteção aos direitos constitucionais experimentada por esta nova fase do direito constitucional. Assim, ainda que tal trecho do documento fosse aprovado, sua interpretação deveria ser realizada conforme a Constituição, o que impediria que se verificassem quaisquer impedimentos à liberdade dos casais homoafetivos.

Conclusão

            Diante do que foi apresentado, conclui-se que o artigo 2º do Projeto vai de encontro a princípios fundamentais da Constituição Federal, como os da dignidade da pessoa humana, da igualdade e da liberdade, sendo, de tal maneira, inconstitucional, não podendo, dessa forma, encontrar guarida no ordenamento jurídico.

            Assim, com fundamento nos métodos de interpretação que foram acima utilizados e com suporte na doutrina e na jurisprudência citadas, nos manifestamos pela inconstitucionalidade parcial do Projeto de Lei 6.583/2013 no que tange ao seu art. 2º, por violar princípios fundamentais insculpidos na Carta Magna deste país.

            É o parecer.

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

BARROSO, Luís Roberto. O novo direito constitucional brasileiro. Contribuições para a construção teórica e prática da jurisdição constitucional no Brasil. Belo Horizonte, Editora Fórum, 2013.

__________. A razão sem voto: o Supremo Tribunal Federal e o governo da maioria. In: SARMENTO, Daniel. Jurisdição constitucional e política. Rio de Janeiro, Forense, 2015.

_____________.Judicialização, ativismo judicial e  legitimidade democrática. Rio de Janeiro, Revista [Syn]thesys, Vol. 5, N. 1, 2012. Disponível em:<http://www.epublicacoes.uerj.br/index.php/synthesis/article/view/7433/5388>. Acesso em 23 de novembro de 2015.

BRASIL. Tribunal de Justiça do Rio de Janeiro. AC 2005.001.28033, Rel. Desembargador Renato Simoni.

 

BRITTO, Carlos Ayres. Voto na ADPF 132. Disponível em: http://www.stf.jus.br/arquivo/cms/noticiaNoticiaStf/anexo/ADI4277revisado.pdf

Acesso em 23 de novembro de 2015.


[1] Interpretação gramatical.

[2] ADPF 132 e ADIN 4.277.

[3]  BRASIL. Tribunal de Justiça do Rio de Janeiro. AC 2005.001.28033, Rel. Desembargador Renato Simoni.

[4] BRITTO, Carlos Ayres. Voto na ADPF 132, p. 31. Disponível em: http://www.stf.jus.br/arquivo/cms/noticiaNoticiaStf/anexo/ADI4277revisado.pdf. Acesso em 23 de novembro de 2015.

[5] Interpretação sistemática.

[6] BRITTO, Carlos Ayres. Voto na ADPF 132, p.20. Disponível em: http://www.stf.jus.br/arquivo/cms/noticiaNoticiaStf/anexo/ADI4277revisado.pdf

[7] Interpretação teleológica.

[8] Interpretação histórica.

[9] Princípio da supremacia da Constituição.

[10] BARROSO, Luís Roberto. O novo direito constitucional brasileiro. Contribuições para a construção teórica e prática da jurisdição constitucional no Brasil. Belo Horizonte, Editora Fórum, 2013, p. 166.

[11] Idem,  A razão sem voto: o Supremo Tribunal Federal e o governo da maioria. In: SARMENTO, Daniel. Jurisdição constitucional e política. Rio de Janeiro, Forense, 2015, p. 7.

[12] BARROSO, Luís Roberto.  Judicialização, ativismo judicial e  legitimidade democrática. Rio de Janeiro, Revista [Syn]thesys, Vol. 5, N. 1, 2012, p. 28.

[13] Ibidem, p. 28.

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Sobre os autores
Rierison Bruno Assunção

Advogado criminalista atuante no estado de Pernambuco.

Hiallys Seanny Pessoa de Lima

Estudante do 9º período de Direito na Faculdade ASCES. Estagiária do Ministério Público de Pernambuco.

Informações sobre o texto

Este texto foi publicado diretamente pelos autores. Sua divulgação não depende de prévia aprovação pelo conselho editorial do site. Quando selecionados, os textos são divulgados na Revista Jus Navigandi

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