2.MÉRITO
Meritoriamente, insiste a Agravante em afirmar a legalidade da cobrança da famigerada assinatura, bem como que cumpre rigorosamente as disposições impostas pela a agências reguladora, in casu, a ANATEL, daí a pseudo legalidade da famigerada tarifa de assinatura.
Não obstante tratar-se de matéria que concerne ao mérito da demanda, bem como o fato de que esse mesmo mérito ainda não ter sido apreciado na instância inferior, traduzindo-se, portanto, em clara supressão de instâncias, comentaremos as alegações da Agravante com o escopo de colocar às escâncaras a fragilidade da argumentação, de resto, falaciosa.
Ab ovo, assevera a Agravante estar cumprindo determinações da ANATEL e que o próprio Código de Defesa do Consumidor prevê a adoção de regulamentos expedidos pelas autoridades competentes.
Ora, é claro que o CDC prevê a adoção de regulamentos expedidos pelas autoridades administrativas competentes, porém tão-somente quando esses mesmos regulamentos prevêem direitos ao consumidor, os quais não podem ser deslembrados, como sói acontecer, na edição de tais atos administrativos.
Daí determinar a codificação consumerista que outros direitos previstos nos instrumentos normativos que especifica poderão fazer parte da malha protetiva ao consumidor, não obstante não estarem inseridos no Código, desde que prevejam direitos e, não, violações a direitos, o que ocorre reiteradamente com os atos administrativos expedidos pelas Agências reguladoras, notadamente as resoluções da ANATEL, no particular quanto ao sistema de cobrança de assinatura.
A outro giro, insiste a Agravante na falaciosa tese de que os pulsos – em número de 100 (cem) – constituem franquia deferida graciosamente pela operadora de telefonia ao consumidor e que a cobrança de assinatura traduz-se em valores para a manutenção do sistema de telefonia.
Tanta ingenuidade!
Ora, nem os 100 (cem) pulsos são gratuitos, nem a cobrança de valores a título de assinatura poderá servir para a manutenção do sistema telefônico.
A uma, porque os 100 (cem) pulsos, ditos gratuitos, são efetivamente cobrados, haja vista que seus valores estão inseridos no valor pago a título de assinatura; a duas, as operadoras de telefonia não podem cobrar valores a título de assinatura para manutenção do sistema, uma vez que para tanto cobram os pulsos quando da conexão das ligações telefônicas realizadas, e somente aí deverá residir a fonte de lucro, assim como o sustento do sistema, eis que os valores recebidos dos consumidores, neste caso, são a contraprestação do serviço efetivamente prestado.
Raciocínio diverso nos levará ao absurdo econômico-jurídico de que todo empresário poderá cobrar valores dos consumidores em razão de seus produtos ou serviços sem que entregue o respectivo produto ou preste efetivamente o serviço ao argumento de que aqueles valores cobrados sem a efetiva contraprestação consubstanciam quantias para a manutenção da empresa.
Assim, tomemos como exemplo, para ilustrar as conseqüências danosas do estapafúrdio raciocínio para o consumidor, um empresário de transporte coletivo, serviço público por natureza. Imaginemos que tal empresário cobrasse valores a título de tarifa de passagem mesmo para aqueles consumidores que não utilizassem seu serviço sob o color de manter o serviço à disposição de todos os consumidores. Estaríamos, in casu, perante valores cobrados cujas características nos levariam a pensar na cobrança de uma espécie de tributo, qual seja, a taxa que, estando o serviço público meramente à disposição do contribuinte, já legitimaria a cobrança do valor pelo Poder Público.
No caso em questão, estaria estabelecida a imposição de tributo – da espécie taxa – por pessoas jurídicas privadas – sem previsão legal –, o que consistiria em simples absurdo jurídico.
Daí que, nos contratos comutativos – como o são aqueles travados entre a Agravante e os consumidores dos seus serviços – as obrigações das partes deverão ser equilibradas, comutatividade que extrai-se do ônus quantitativo e qualitativo que os contratantes se obrigaram a cumprir.
Ora, não existe comutatividade no contrato – consequentemente equilíbrio nas obrigações recíprocas – quando um dos parceiros contratual recebe valores a título de pagamento que não esteja vinculado à uma obrigação sua que venha a equilibrar as partes no que toca aos seus deveres.
Com este pensamento, o saudoso Caio Mário da Silva Pereira, em escólios, assevera que:
"São comutativos os contratos em que as prestações de ambas as partes são de antemão conhecidas, e guardam entre si uma relativa equivalência de valores. Não se exige a igualdade rigorosa destes, porque os bens que são objeto dos contratos não têm valoração precisa."
Sem embargo, mesmo que comutativos, a mais autorizada doutrina não olvida da função social do contrato, mormente de causas que ensejam o enriquecimento ilícito de um dos parceiros contratantes:
"Conteúdo do negócio é – como dissemos (§ 16) – não uma ‘vontade’ qualquer, expressão vazia e incolor do capricho individual, mas um preceito da autonomia privada, com o qual as partes pretendem regular os seus interesses, nas relações entre elas ou com terceiros, em vista de escopos práticos de caráter típico, socialmente valoráveis pela sua constância e regularidade na vida de relações corrente. Quem promete, dispõe, renuncia, aceita, não pretende, pura e simplesmente, obrigar-se, despojar-se de um bem, transmiti-lo, adquiri-lo sem outro fim, não procura fazer tudo isso só pelo prazer de praticar um ato que seja fim em si mesmo. Mas procura sempre atingir um dos escopos práticos típicos que governam a circulação dos bens e a prestação dos serviços, na interferência entre as várias esferas de interesse que entram em contato na vida social [...] Em qualquer negócio, analisado no seu conteúdo, pode distinguir-se, logicamente, um regulamento de interesses nas relações privadas e, concretizada nele – quando, como é normal, não se tenha desfeito (§ 24) – uma razão prática típica que lhe é imanente, uma ‘causa’, um interesse social objetivo e socialmente verificável, a que ele deve corresponder. Causa, bem entendido, não em sentido fenomenológico, mas teleológico e deontológico, atinente à exigência da sociabilidade que preside à função ordenadora do direito. Tal como os direitos subjetivos, também os poderes de autonomia, efetivamente, não devem ser exercidos em oposição com a função social a que são destinados: o instrumento da autonomia privada, colocado à disposição dos indivíduos, não deve ser desviado do seu destino."
Ademais, cabe lembrar com Cláudia Lima Marques que:
"As características básicas da lesão ou da cláusula leonina identificada, nos contratos comutativos, seriam, em uma análise, a desproporcionalidade das prestações daí resultante, no que diz respeito aos valores das prestações previstas, e o dolo de aproveitamento ocorrido, representado pelo abuso da inexperiência e da necessidade premente sentida pelo outro contraente em concluir aquele negócio."
Esse egrégio Tribunal de Alçada já se manifestou no sentido da doutrina transcrita, ratificando a necessidade de manter-se a comutatividade contratual mesmo que por vias judiciais:
CONTRATO DE ADESÃO - FORNECIMENTO DE GASOLINA E DERIVADOS DE PETRÓLEO - PEDIDO DE RESCISÃO DO CONTRATO CUMULADO COM COBRANÇA DE MULTA COMPENSATÓRIA E DEVOLUÇÃO DE EQUIPAMENTOS DADOS EM COMODATO - CLÁUSULA PENAL LEONINA E ABUSIVA - ENRIQUECIMENTO ILÍCITO.
As cláusulas padrão, leoninas e abusivas que são inseridas em contrato de adesão para fornecimento de gasolina e derivados de petróleo, estabelecendo prazo contratual demasiadamente longo (onze anos), cota mínima mensal para aquisição de derivados de petróleo superestimada e ainda impondo multa compensatória em elevado percentual a incidir sobre o total dos produtos que não forem adquiridos pela revendedora no prazo estabelecido para a duração da avença, fere a comutatividade das prestações e a igualdade das partes perante o pacto, razão pela qual devem ser consideradas nulas.
Recurso conhecido e improvido.
(Apelação Cível nº 0305595-0/2000, 4ª Câmara Cível do TAMG, Luz, Rel. Juiz Paulo Cézar Dias. j. 24.05.2000, unânime).
Ausente, pois, a comutatividade nos contatos bilaterais de telefonia, impõe-se o reequilíbrio contratual por vias judiciais, ante a presença de desvantagem exagerada imposta ao consumidor com a pagamento de valores sem a devida contraprestação, não sendo justificável, lado outro, a falaciosa argumentação segundo a qual tais valores servem à manutenção do sistema de telefonia, que deve ser sustentado pela cobrança de valores relacionados ao serviço efetivamente prestado.
Mas não é só.
Em raciocínio diverso, porém que converge para a mesma conclusão – a de que não há contraprestação de serviço que justifique a cobrança de valores a título de assinatura – o Superior Tribunal de Justiça, pela sua 1ª Turma, em aresto relatado pelo Min. Humberto Gomes de Barros, decidiu, em Recurso Especial sob o nº 402.047-MG, interposto por TELEBRASÍLIA – Telecomunicações de Brasília S/A, não incidir ICMS (Imposto sobre Circulação de Mercadorias e Serviços) sobre os valores cobrados a título de assinatura, exatamente porque tais valores não constituem prestação de serviços ao consumidor.
TRIBUTÁRIO – ICMS – "SERVIÇOS DE COMUNICAÇÃO" – CONCEITO – INCIDÊNCIA – AMPLIAÇÃO DA BASE DE CÁLCULO – CLÁUSULA PRIMEIRA DO CONVÊNIO 69/98.
Há "serviço de comunicação" quando um terceiro, mediante prestação negocial-onerosa, mantém interlocutores (emissor/receptor) em contato "por qualquer meio, inclusive a geração, a emissão, a recepção, a transmissão, a retransmissão, a repetição e a ampliação de comunicação de qualquer natureza". Os meios necessários à consecução deste fim não estão ao alcance da incidência do ICMS-comunicação.
A hipótese de incidência do ICMS-comunicação (LC 87/96; art. 2º, III) não permite a exigência do tributo com relação a atividades meramente preparatórias ao ‘serviço de comunicação’ propriamente dito, como são aquelas constantes na Cláusula Primeira do Convênio ICMS 69/98.
No Direito Tributário, em homenagem ao Princípio da Tipicidade Fechada, a interpretação sempre deve ser estrita, tanto para a concessão de benefícios fiscais, quanto para exigência de tributos. À míngua de Lei não é lícita a dilatação da base de cálculo do ICMS-comunicação implementada pelo Convênio ICMS 69/98 (art. 97, § 1º, do CTN).
Recurso provido.
Extrai-se, ainda, do voto do Relator:
"A Cláusula Primeira do Convênio ICMS 69/98 diz que ‘os signatários firmam entendimento no sentido de que se incluem na base de cálculo do ICMS incidente sobre prestações de serviços de comunicação os valores cobrados a título de acesso, adesão, ativação, habilitação, disponibilidade, assinatura e utilização dos serviços, bem assim aqueles relativos a serviços suplementares e facilidades adicionais que otimizem ou apliquem o processo de comunicação, independentemente da denominação que lhes seja dada.’
A Lei faz incidir o ICMS sobre ‘serviços de comunicação’, em cujo conceito se inserem os de telecomunicações. A interpretação do art. 2º, III, da LC 87/96, indica que só há incidência de ICMS aos serviços de comunicação ‘stricto sensu’, onde não se incluem os serviços meramente acessórios ou preparatórios à comunicação propriamente dita." (g.n.)
Ora, na esteira do raciocínio colacionado, se sobre os valores cobrados a título de assinatura não incide ICMS em razão de não consubstanciarem serviço de comunicação stricto sensu, não podem as operadoras de telefonia cobrarem tais valores, simplesmente por não haver a prestação de serviço de telefonia stricto sensu, ou seja, o que ocorre é, claramente, cobrança de valores dos consumidores sem a necessária contraprestação de serviço, como reiteradamente afirmado.
2.2. DA ILEGALIDADE DA COBRANÇA DA TARIFA DE ASSINATURA MENSAL
Ainda em momento meritório – não obstante a supressão de instância já mencionada – mister é a contradita aos argumentos frágeis explanados pela Agravante sobre a legalidade da cobrança da tarifa de assinatura mensal sob o color de que há previsão em normatizações expedidas pela ANATEL, às quais a Agravante cumpre rigorosamente.
Sem embargo, já o saudoso jurista e cientista político italiano Norberto Bobbio, em sua clássica obra Teoria do Ordenamento Jurídico, sustentava, com seu raciocínio positivista analítico, à símile de Hans Kelsen, que toda norma possuía fundamento de validade naquela imediatamente precedente ou anterior em razão da sua escalonação que redundaria na unidade do ordenamento jurídico.
"Aceitamos aqui a teoria da construção escalonada do ordenamento jurídico, elaborada por Kelsen. Essa teoria serve para dar uma explicação da unidade de um ordenamento jurídico complexo. Seu núcleo é que as normas de um ordenamento não estão todas no mesmo plano. Há normas superiores e normas inferiores. As inferiores dependem das superiores. Subindo das normas inferiores ‘aquelas que se encontram mais acima, chega-se a uma norma suprema, que não depende de nenhuma outra norma superior, e sobre a qual repousa a unidade do ordenamento. Essa norma suprema é a norma fundamental. [...] É essa norma fundamental que dá unidade a todas as outras normas, isto é, faz das normas espalhadas e de várias proveniências um conjunto unitário que pode ser chamado ‘ordenamento’.
A norma fundamental é o termo unificador das normas que compõem um ordenamento jurídico. [...] Devido à presença, num ordenamento jurídico, de normas superiores e inferiores, ele tem uma estrutura hierárquica. As normas de um ordenamento são dispostas em ordem hierárquica."
Em complemento às suas magníficas lições, compendia o jurista de Turim:
"O critério hierárquico, chamado também de lex superior, é aquele pelo qual, entre duas normas incompatíveis, prevalece a hierarquicamente superior: lex superior derogat inferiori. [...] Uma das conseqüências da hierarquia normativa é justamente esta: as normas superiores podem revogar as inferiores, mas inferiores não podem revogar as superiores. A inferioridade de uma norma em relação a outra consiste na menor força de seu poder normativo; essa menor força se manifesta justamente na incapacidade de estabelecer uma regulamentação que esteja em oposição à regulamentação de uma norma hierarquicamente superior."
Sedimentado tal raciocínio jurídico, impõe-se o reconhecimento de que, seja qual for a autarquia federal que expeça normas administrativas para regulamentação do setor para o qual foi criada, tais atos administrativos – por serem tais – deverão respeitar as normas jurídicas denominadas leis stricto sensu, além da Constituição Federal, a que todas as normas, para terem validade, como visto, devem conformação.
Dessarte, no caso que verte aos autos, raciocínio simplório é aquele no sentido de que toda e qualquer regulamentação expedidas pela ANATEL deverá ter conformação com o Código de Defesa do Consumidor, sob pena de invalidade.
E toda lei stricto sensu deverá seguir os preceitos e princípios constitucionais, dentre os quais, a proteção devida pelo Estado ao consumidor (art. 5º, XXXII CF/88).
Com efeito, as resoluções, sejam elas quais forem, da ANATEL sobre cobrança de tarifa de assinatura são efetivamente ilegais, visto malferirem o Código consumerista, no particular, por ensejarem o desequilíbrio na comutatividade, engendrando desvantagem exagerada em relação ao consumidor.
Não há argumento plausível que coloque tais resoluções dentro no espectro da legalidade, haja vista não possuir – tais normas – força superior no seu poder normativo; essa menor força se manifesta justamente na incapacidade de estabelecer uma regulamentação que esteja em oposição à regulamentação de uma norma hierarquicamente superior.
Em compêndio, não viceja um mínimo de importância os falaciosos argumentos encetados pela Agravante, que só possui efetivamente o puro objetivo de lucro a qualquer preço, inclusive com enriquecimento sem causa.
2.3. DO EQUILÍBRIO SOCIAL PREVALECENTE SOBRE O EQUILÍBRIO CONTRATUAL
Ao fundamentar suas razões de recurso, a Agravante fulcrou-se na Constituição Federal, mais especificamente em seu artigo 37, XXI.
Inicialmente, forçoso asseverar que a própria Constituição possui, em seu texto, normas hierarquicamente superiores a outras, o que se infere do artigo 60 da Lei Política, bem como da melhor doutrina.
"Mas mesmo na Constituição existem normas mais relevantes que outras. Essas, mais importantes, são as que veiculam princípios, verdadeiras diretrizes do ordenamento jurídico.
O princípio jurídico é um enunciado lógico, implícito ou explícito, que, por sua grande generalidade, ocupa posição de preeminência nos horizontes do sistema jurídico e, por isso mesmo, vincula, de modo inexorável, o entendimento e a aplicação das normas jurídicas que com ele se conectam."
Pois bem.
Segundo a Constituição Federal, em seu artigo 5º, XXXII, é dever do Estado fomentar (promover) a defesa do consumidor. Tratando-se de norma que encerra um direito fundamental, obviamente sobrepor-se-á ao dispositivo também constitucional de previsão de equilíbrio contratual (art. 37, XXI), eis que este, às escâncaras, não é princípio fundamental do Estado Democrático de Direito inaugurado em 05 de outubro de 1988.
De efeito, avulta de importância a norma que encerra um direito fundamental, impondo-se seu reconhecimento perante quaisquer outras, mesmo de cunho constitucional, como a aventada pela Agravante.
Dessa forma, vislumbra-se que na presente demanda existem – como, de resto, em quaisquer demandas – dois interesses conflituosos que, para sua pacificação, deverão ser sopesados axiologicamente, sob pena de violação expressa a preceptivos constitucionais.
Daí que o Autor – Ministério Público – está como substituto processual na defesa de interesses sociais relevantes, visto se tratar da economia popular de todo um País, pois que todos os consumidores-usuários foram violados em seus direitos a um contrato equilibrado financeiramente – perfeita comutatividade –, o que não ocorreu in casu.
De outro lado, encontra-se o interesse privado da Agravante de auferir o maior lucro possível na prestação de serviço de telefonia, sem efetivamente prestar o serviço para o qual se propôs.
Via de conseqüência, resta patente o desvio de perspectiva operado pela Agravante consubstanciado no privilégio dado ao seu interesse privado e egoístico de obtenção de lucro em detrimento do interesse social estampado na demanda proposta.
Não obstante, a Constituição Federal, além do art. 5º, XXXII, que constitui cláusula pétrea, determina em seu art. 170 que a ordem econômica tem por fim assegurar a todos existência digna, baseada no trabalho humano e na livre iniciativa, esta limitada pelos princípios expostos nos seus incisos, dentre os quais, a defesa do consumidor.
Com efeito, se o Estado tem o dever de fomentar (promover) a defesa do consumidor, e este mesmo Estado, desde de 1789, é tripartido em três funções, impõe-se a observação do dispositivo constitucional pelos três Poderes que encarnam tais funções, dentre os quais, o Poder Judiciário.
"Também o Poder Judiciário terá nova função, pois, se as normas imperativas destas leis, aqui chamadas de intervencionistas, restringem o espaço da liberdade individual no contrato, também legitimarão ao Judiciário para que exerça o tão reclamado controle efetivo do conteúdo do contrato, controle da justiça contratual, em especial, o controle das cláusulas abusivas."
Por conseguinte, o raciocínio exposto no recurso viola a determinação constitucional, ao tentar sobrepor interesses particulares e privados aos interesses sociais dos consumidores em um Estado que se diz Democrático de Direito.
O desvirtuamento principiológico esposado nas razões recursais é combatido, com vantagens, pela melhor doutrina, como acentuado pelo magnífico constitucionalista Paulo Bonavides:
"A Constituição de 5 de outubro de 1988 foi de todas as Constituições brasileiras aquela que mais procurou inovar tecnicamente em matéria de proteção aos direitos fundamentais. Não o fez porém sem um propósito definido, que tacitamente se infere do conteúdo de seus princípios e fundamentos: a busca em termos definitivos de uma compatibilidade do Estado social com o Estado de Direito mediante a introdução de novas garantias constitucionais, tanto do direito objetivo como do direito subjetivo."
Aludida violação se perfaz tendo em vista a utilização de uma hermenêutica aplicável somente à época da instauração da sociedade liberal-burguesa (século XVIII), hoje, no entanto, consubstanciando a chamada Velha Hermenêutica, obsoleta e ultrapassada.
Para melhor concreção dos direitos fundamentais (e o direito do homem consumidor, seja individual ou coletivo, inclui-se neste rol) faz-se mister o aprimoramento de técnicas e métodos hermenêuticos orientados de cunho social, afastando-se, via de conseqüência, o normativismo sistêmico descompromissado com a Ética estabelecida na realidade social subjacente à norma jurídica.
Daí o Prof. Paulo Bonavides asseverar, fincado na doutrina do Juiz da Corte Constitucional alemã, Konrad Hesse, serem os métodos da escola de Savigny insuficientes para a hermenêutica constitucional:
"A interpretação da Constituição toma um relevo todo especial com a tese de concretização formulada por Konrad Hesse.
Inspirado em Friedrich Müller (norma-texto, norma-programa, norma-âmbito, norma-direito e norma-decisão) e na Tópica, o insigne constitucionalista elege uma acepção estrita, em que interpretar significa concretizar, isto é, busca-se o emprego de categorias hermenêuticas por inteiro distintas daquelas cristalizadas nos quatro métodos tradicionais de interpretação, de Savigny – gramatical, lógico, histórico e sistemático –, posteriormente acrescidos do teleológico.
Com efeito, os métodos tradicionais, embora aplicáveis satisfatoriamente às leis no campo do Direito Privado, são, porém, de todo inadequados e insuficientes para captar o sentido das cláusulas não raro principiais de uma Constituição ou o alcance normativo pluridimensional de um direito fundamental.
Surge, assim, a necessidade de um operação valorativa, fática e material, que se executa mediante uma nova técnica interpretativa – a técnica concretizadora –, em que, fugindo ao esquema formal e abstrato de subsunção, peculiar à hermenêutica do positivismo, e fundado num voluntarismo subjetivo ou objetivo – a vontade do legislador ou a vontade da lei –, o intérprete se volve diretamente para uma ‘compreensão’ do conteúdo da norma que se vai concretizar.
Não existe, assevera Hesse, nenhuma interpretação da Constituição independente de problemas concretos.
De último, assinala ele o reconhecimento explícito do caráter criativo da interpretação jurídica, desde que operada nos limites da norma e do seu conteúdo de realidade."
Em raciocínio sumário:
"Para além disso, a Hermenêutica no Direito torna-se concretização, ou seja: processo de reconstrução do Direito aplicável ao caso, à luz do padrão constitucional e através de um procedimento argumentativo e racionalmente controlável."
De tal concretismo deve o hermeneuta abeberar-se quando do aclaramento interpretativo dos direitos fundamentais.
Neste sentido, viceja nos Tribunais pátrios, já de há muito, a adoção de tal método interpretativo, como, v. g., muito acertadamente, decidiu o Tribunal de Alçada de Minas Gerais, cujo aresto é da lavra do hoje Des. Wander Marotta, lídimo defensor da Nova Hermenêutica:
EVOLUÇÃO DA TEORIA CONTRATUAL - CÓDIGO DO CONSUMIDOR - CARTÃO DE CRÉDITO - CONTROLE DO ACORDO DE VONTADES PELO PODER JUDICIÁRIO - MODIFICAÇÃO DE CLÁUSULAS QUE ESTABELECEM PRESTAÇÕES DESPROPORCIONAIS (ARTIGO 6º, INCISO V, DO CDC) E NULIDADE DAS CLÁUSULAS ABUSIVAS - CLÁUSULAS-MANDATO - CLÁUSULAS DE DECLARAÇÃO FICTA - RECONHECIMENTO DE DÍVIDA - MULTA CONTRATUAL (APLICAÇÃO DO ARTIGO 52, § 1º, DO CDC, COM A REDAÇÃO CONFERIDA PELA LEI 9.298/1996, AINDA QUE A CONTRATOS CELEBRADOS ANTERIORMENTE À SUA VIGÊNCIA) - JUROS - LIMITAÇÃO A 12% AO ANO - DECRETO 22.626/33 - VIGÊNCIA - SÚMULA 596 DO STF - EXEGESE EQUIVOCADA DO ART. 4º, IX, DA LEI 4.595/64, REVOGADO PELO ART. 25, ADCT - ESTIPULAÇÃO EXCESSIVA - ILICITUDE DO OBJETO - OFENSA À MORAL E AOS BONS COSTUMES - ART. 82 DO CCB - VANTAGEM INÍQUA - ARTIGO 51, IV, DO CDC - VOTO VENCIDO.
A evolução do pensamento jurídico no âmbito do acordo de vontades representou o deslocamento do centro de gravidade da teoria contratual da autonomia de vontade - que refletia a ideologia do Estado Liberal, cujo auge foi no século passado, vindo a nortear o Código Civil pátrio - para o interesse social, em consonância com o Estado Social, que se afirma no ordenamento brasileiro no Código de Defesa do Consumidor.
O conteúdo do contrato pode ser controlado pelo Poder Judiciário, sendo possível a modificação de suas cláusulas (artigo 6º, inciso V, do CDC), quando requerida pelo consumidor, se evidente a desproporção entre as obrigações das partes contratantes, bem como substituir as cláusulas abusivas pela norma legal (artigo 51 do CDC).
As cláusulas de declaração ficta, em que o silêncio do consumidor se assemelha a reconhecimento de dívida, não o impedem de discutir a dívida perante o Poder Judiciário, pois as contas da prestadora de serviço de cartão de crédito, que inseriu tal previsão no contrato de adesão, devem espelhar o verdadeiro débito, em vez de apresentar extratos eivados de equívocos, em que se cobra a mesma dívida por mais de uma vez, com juros, multas e encargos abusivos.
As multas de mora pelo inadimplemento de obrigações não poderão ser superiores a dois por cento do valor da prestação (artigo 52, parágrafo primeiro, da Lei 8.078/90, CDC, em redação conferida pela Lei 9.298/1996).
Esta previsão alcança os contratos celebrados anteriormente à vigência da lei alteradora, posto que o momento de sua aplicação é o do pagamento do débito, ou o da ocorrência da mora. Se a prestação inadimplida vem a ser paga na vigência da nova disposição, deve o cálculo da dívida adequar-se aos ditames desta.
Os juros, remuneração pelo uso da coisa ou quantia pelo devedor, em virtude do tempo em que ficou privado o credor desta, não podem, no ordenamento jurídico pátrio, superar o limite de 12% (doze por cento) ao ano.
Não foi revogado o Decreto 22.626/33 pelo Decreto sem nº, de 25.04.91, por se cuidar aquele de decreto com força de lei. O Decreto sem nº de 29.11.91 (publicado no DOU de 02.12.91) tornou sem efeito a revogação do Decreto 22.626/33, sem que se cogite de repristinação.
A Súmula 596 do STF, já à época de sua edição, cristalizava entendimento equivocado. A atribuição ao Conselho Monetário Nacional, contida no artigo 4º, IX, da Lei 4.595/64, era para limitar as taxas de juros, e não liberá-las, devendo tal delimitação cingir-se à graduação até o limite legal (doze por cento ao ano), estatuído pelo Decreto 22.626/33.
Contudo, revogado está o artigo 4º, IX, da Lei 4.595/64, face ao art. 25, I, ADCT, c/c art. 48, XIII, da Constituição Federal de 1988, por atribuir, em ação normativa, ao Conselho Monetário Nacional, competência assinalada pela Lei Maior ao Congresso Nacional.
Inexistente a executoriedade compulsória do artigo 4º, IX, da Lei 4.595/64, norma especial, que restringia o campo de aplicação do Decreto 22.626/33, regulador das demais avenças, que não envolvessem instituições financeiras, passa a prevalecer, na íntegra, a norma geral do art. 1º deste Decreto, afastada a aberração de um efeito repristinatório.
A estipulação de juros excessivos fere o art. 82 do CCB. A ilicitude do objeto é conceito amplo, compreendendo tanto o que a lei proíbe quanto o que repugna à moral e aos bons costumes. É objeto de universal condenação a usura, a exploração do trabalho humano em favor da ganância, asfixiando o devedor, cujo esforço, voltado totalmente para a satisfação dos juros, lembra o castigo de Tântalo, por nunca se extinguir. Baldam os juros exorbitantes qualquer iniciativa honesta.
Além disso, o Código de Defesa do Consumidor (art. 51, IV) confere proteção aquele que é atingido por cláusula abusiva, que coloca o consumidor em vantagem exagerada, como no caso dos juros, cláusula atípica de remuneração, quando excessivos.
Enquanto não resolvida judicialmente a questão sobre o valor do débito é vedado ao credor o envio do nome do devedor aos cadastros de proteção ao crédito.
(Apelação (Cv) Cível nº 0301208-6, 3ª Câmara Cível do TAMG, Governador Valadares, Rel. Juiz Wander Marotta. j. 23.02.2000, maioria).
Dessarte, impõe-se o privilegiamento dos interesses sociais, posto traduzir com perfeição aquilo que o ato de idealismo insculpido na norma é incapaz de realizar: o bem social, não prevalecendo, como dito, o equilíbrio contratual em detrimento ao equilíbrio social.