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Habeas corpus em processo criminal por falsificação:

mudança na capitulação do crime

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19/09/2005 às 00:00
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V – DA INEXISTÊNCIA DE CRIME DECORRENTE DA FALSIFICAÇÃO GROSSEIRA.

            Afirmou a Paciente em seu depoimento perante a autoridade policial, "que a interrogada, sem consultar a sócia da empresa, escreveu no computador a palavra ‘outubro’, recortou esta palavra, colou sobre uma outra CND do INSS autêntica e já vencida da empresa e tirou uma cópia".

            Trata-se de meio rudimentar e impróprio de adulteração. Com efeito, o simples cotejo dos documentos existentes no autos (Doc. nº 3, fls. 51 e 09) revelam tratar-se de adulteração grosseira.

            Consultado pela defesa técnica, o renomado perito Dr. Roberto de Freitas Villarinho, ex-Diretor do Instituto de Criminalística Carlos Éboli (ICCE), da Polícia Civil do Rio de Janeiro, emitiu parecer técnico que é contundente em afirmar que a adulteração realizada o foi de modo grosseiro (Doc. nº 6, fls. 9/10).

            "Qualquer pessoa afeita a tarefa de examinar documentos como o em tela estaria capacitada a imediatamente verificar a inidoneidade do mesmo, isso sem levar em conta que a certidão questionada apresenta os mesmos números de série e PCND, individualizadores do documento padrão, passíveis de fácil comprovação junto ao INSS

            Outro aspecto com bastante importância está estampado no prazo de validade da certidão. A certidão autêntica teria validade até 28 de março de 1999. Com a introdução do mês de ‘Outubro’, essa validade passou a vigorar até o mês de abril de 1999. Dessa forma, entende o perito que para fazer prova essa certidão negativa de débito, seria imprescindível a imediata visualização do mês inserto no documento e a contagem de seis meses adiante. Acontece, que por ocasião dessa visualização, se um leigo poderia observar a gritante diferença, certamente o local onde a mesma foi usada, onde não deve haver leigos, com certeza observaria a diferença que salta aos olhos, diferente, diversa do restante da impressão, não só da data como do preenchimento de toda a certidão." (grifamos)

            Sobre a falta de semelhança do documento adulterado com o original, bem como a grosseria na sua adulteração, a doutrina assim se pronuncia:

            "Segundo a precisa lição de Nelson Hungria, ‘não há falsidade sem a possibilidade objetiva de enganar... Não basta a immutatio veri; é também necessária a imitatio veri. Sem esta (ou seja, sem a potencialidade de engano), inexiste, praticamente, ofensa à boa fé pública ou possibilidade de dano (elemento condicionante do crime)... Se a imitação é grosseira ou reconhecível prima facie, e nada obstante, alcança êxito, dada a supina desatenção ou cega credulidade do lesado, o crime a identificar-se já não será o de falsidade, mas estelionato ou fraude patrimonial’ (cf. Comentários, IX/263-264)." (TJSP – Ap. 121.685/9 – 2a CC. Re. Des. Canguçu de Almeida – RT 701/303)

            Logo, diante da adulteração perceptível à vista do simples exame, não há que se falar em crime. Nesse diapasão, a jurisprudência dos tribunais é torrencial, valendo citar, por todos, os seguintes julgados do Tribunal Regional Federal da 2a Região.

            "FALSIDADE DOCUMENTAL – Uso de documento falso – Atipicidade – Caracterização – Adulterações em passaportes incapazes de enganar as pessoas acostumadas a lidar com este tipo de documento – Falsificação absolutamente inidônea para o fim destinado – Trancamento da ação penal que se impõe.

            Ementa da Redação: Consignando o laudo pericial que as adulterações no passaporte eram incapazes de enganar pessoas acostumadas a lidar com este tipo de documento e, portanto, a falsificação era absolutamente inidônea para o fim destinado, embarque e posterior ingresso em território estrangeiro, tem–se que a conduta praticada é atípica, o que impõe o trancamento da ação penal.

            (RSE Nº 98.02.24112-1/RJ - Rel. Des. Federal Paulo Espírito Santo – DJU 06.04.1999.)

            "PENAL. USO DE DOCUMENTAL FALSO. FALSIFICAÇÃO GROSSEIRA.

            1. A falsificação grosseira do documento público, incapaz de configurar o falsum, afasta o delito descrito no art. 304 do Código Penal.

            2. Recurso provido."

            (ACR Nº 98.02.18655-4 – rel. Des. Federal Lana Maria Fontes Regueira – DJU 25.05.1999.)"


VI – ERRO NA CAPITULAÇÃO DA CONDUTA IMPUTADA.

            6.1 – Exercício arbitrário das próprias razões (art. 345, CP)

            Como é curial, o réu defende-se dos fatos imputados, e não de sua classificação jurídica. Todavia, quando o erro na capitulação acarreta grave prejuízo para a defesa, impende que o Poder Judiciário corrija os excessos da acusação.

            Como se vê do trecho da denúncia abaixo transcrito, o Ministério Público admite a dívida do ENTE PÚBLICO "TAL" para com a empresa, admite o atraso no pagamento desta dívida, e admite, ainda, que a conduta da Paciente foi orientada para satisfazer essa pretensão legítima de receber os valores devidos. Logo, a conduta imputada que é descrita e imputada não preenche os requisitos do tipo penal da falsificação de documento público, mas sim o delito de exercício arbitrário das próprias razões (art. 345 do Código Penal).

            "A denunciada fulana, funcionária responsável pela área administrativa da empresa xxxxxx LTDA., CGC nº 0000000000000, falsificou, em abril de 1999, cópia autenticada da Certidão Negativa de Débito – CND nº 0000000 – Série I, do INSS, inclusa à fl. 196, adulterando a sua data de emissão para 28 de outubro de 1998, e promoveu a sua utilização, em abril de 1999, perante o ENTE PÚBLICO "TAL", para fins de recebimento de parcela referente aos serviços prestados nos meses de fevereiro e março de 1999 (R$ 7.244,00 – sete mil, duzentos e quarenta e quatro reais- fl.73), decorrente de contrato celebrado entre o ENTE PÚBLICO TAL e a empresa em questão, com dispensa de licitação, conforme art.26, da Lei 8.666/93, para compra dos softwares XXXXXXXXXXXXX."

            Com efeito, o exercício arbitrário das próprias razões representa a conduta de "...quem, tendo ou acreditando ter o direito contra outra pessoa, em vez de recorrer à justiça, arbitrariamente satisfaz sua pretensão. Qualquer meio de execução pode ser empregado: violência, ameaça, fraude, subtração, etc." (DELMANTO, Celso et alii: Código Penal Comentado, 5a ed., Renovar: Rio de Janeiro, 2000, p. 628, grifamos).

            HUNGRIA (op. cit., p. 495) também exemplifica este delito na ação de quem emprega "meio fraudulento (ex. captar ardilosamente o dinheiro de devedor impontual, para pagar-se da dívida)" para satisfazer direito. Vemos, pois, que o exercício arbitrário das próprias razões pode ser praticado mediante diversas ações, que, acaso não fossem praticadas para satisfazer determinada pretensão, poderiam ser capituladas como outra espécie de delito.

            A jurisprudência traz exemplos diversos em que se opera a desclassificação da conduta supostamente típica, depois de dirimido o conflito de normas entre exercício arbitrário das próprias razões e o outro eventual delito, tais como: ameaça (RT 398/277); constrangimento ilegal (RT 393/321); cárcere privado (RT 512/423); apropriação indébita (JUTACRIM 12/306); dano (RT 419/390); extorsão (RT 422/300); extorsão mediante seqüestro (RT 507/449); furto (RT 498/324 e 554/377); roubo (RT 486/326); redução à condição análoga a de escravo (RJD 5/95), etc.

            Especificamente com relação aos delitos de falsidade, o Supremo Tribunal Federal já decidiu que:

            "EXERCÍCIO ARBITRÁRIO DAS PRÓPRIAS RAZÕES – PARTILHA – SIMULAÇÃO DE DÍVIDA.

            A simulação de dívida objetivando alcançar de imediato a meação de certo bem configura não o crime de falsidade ideológica, mas o do exercício arbitrário das próprias razões. A simulação, a fraude, ou outro qualquer artifício utilizado corresponde a meio de execução, ficando absorvido pelo tipo do art. 345 do Código Penal no que tem como elemento subjetivo o dolo específico, ou seja, o objetivo de satisfazer pretensão legítima ou ilegítima.

            (HC nº 74.672 – STF, 2a Turma – Rel. Min. Marco Aurélio. DJU 11/04/97)

            "Crime de estelionato; inexiste sem injusta locupletação. Não há confundir-se o dito crime com o de exercício arbitrário das próprias razões, onde não existe o animus lucri captandi; senão o animus damni vitandi. Extensão do habeas corpus a co-réus"

            (HC nº 38.202 – STF, Pleno – Rel. Min. Nelson Hungria. DJU 7/8/61)

            Note-se, ainda, que o direito arbitrariamente exercido não precisa ser legítimo, bastando que o agente assim o considere, como se vê da parte final da ementa do HC nº 74.672 (citado acima), e ainda como preleciona HUNGRIA (op. cit, p. 496):

            "É pressuposto do crime uma pretensão, a que deve corresponder um direito de que o agente é ou supõe ser titular. Pretensão é a direção da vontade para o exercício de um direito, seja este autêntico (caso de pretensão legítima) ou meramente putativo (caso de pretensão supostamente legítima)."

            Esse entendimento já foi esposado pelo Tribunal Regional Federal da 2a Região, como se vê da ementa transcrita.

            "Apelação criminal. Condenação por estelionato contra a Previdência Social. Identificação de acidente em serviço.

            Se o crime tivesse havido, seria o de exercício arbitrário das próprias razões. Falta, porém, de caracterização de conduta antijurídica."

            (ACR nº 89.02.11626-3/RJ – 2ª Turma – Rel. Des Federal D’Andréa Ferreira – DJU 12.07.1990)

            Assim, se houvesse uma ação delituosa, ela estaria caracterizada no exercício arbitrário de um direito legítimo. Finalmente, é imperioso destacar que se for acolhido o pedido para adequar a capitulação da conduta imputada ao delito do art. 345, CP, já teria ocorrido a prescrição da pretensão punitiva do Estado, eis que o fato (cuja pena máxima é de um mês) foi praticado em abril de 1999, tendo transcorrido mais de dois anos, portanto.

            6.2 – Falsificação de atestado ou certidão (art. 301, § 1º, CP)

            Não acolhidos os argumentos acima expendidos (o que se admite apenas para efeito de argumentação), é imperioso constatarmos que a acusação também equivoca-se quando capitula a conduta imputada como o delito do art. 297, CP. Com efeito, tal artigo trata de documento público genérico, sendo certo que existe previsão de punição autônoma e diferenciada para a falsificação de certidão (art. 301, § 1º, CP).

            Especificamente acerca da falsificação de certidão negativa de débito expedida pelo INSS, esse Tribunal Regional Federal já declarou, por diversas vezes, que essa conduta constitui o delito do art. 301, § 1º, CP. Senão vejamos:

            "Revisão criminal. Falsificação de certidão negativa de débito – CND. Condenação com base no art.297 do Código Penal. Pedido de desclassificação para o art. 301, § 1º, do mesmo diploma. Princípio da especialidade. Procedência da revisão, com declaração da extinção da punibilidade pela prescrição de pretensão punitiva do Estado.

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            1) Ação ajuizada para a desclassificação de condenação a 03 anos de reclusão com no art.297 do código Penal pela falsificação de Certidão Negativa de Débito do extinto IAPAS.

            2) O tipo do art.301, § 1º, do Código Penal é crime comum quanto ao sujeito, não se tratando de crime próprio de funcionário público, podendo, conseqüentemente, ser cometido por qualquer pessoa.

            3) Tratando ali de certidão, é especial em relação aos demais tipos constantes dos arts. 297 e 299 do Código Penal, limitando-os quanto a tal documento.

            4) Procedência do pedido para desclassificar a falsificação de Certidão Negativa de Débito – CND do art.297 para o 301, § 1º, do Código Penal, reconhecendo-se a extinção de punibilidade pela prescrição da pretensão punitiva do Estado, por maioria."

            (Revisão Criminal nº 98.02.025909-7 – Rel. Des. Federal Julieta Lunz – DJU 05.06.2001)

            No mesmo sentido: ACR nº 96.02.13461-5/ES Rel. Des. Federal Frederico Gueiros – DJU 17.04.1997; RCCR nº 92.02.15715-4-RJ; ACR nº 92.02.09995-2-RJ;

            Portanto, acolhida essa tese e reclassificada a conduta imputada para o delito previsto art. 301, §1º, CP, seria necessário o trancamento da ação penal, eis que se trata de infração de menor potencial ofensivo, devendo o Ministério Público, antes de oferecer nova denúncia, manifestar-se acerca da eventual proposta de transação penal, na forma da lei nº 10.259/01.


VII – CONCLUSÃO

            Por todo o exposto, serve a presente para requerer o trancamento da ação penal com base nos seguintes fundamentos, isolados ou conjuntamente:

            1) atipicidade da conduta imputada em virtude da insignificância do ato apontado como delituoso e da ausência de resultado material lesivo ao bem jurídico protegido;

            2) ausência de justa causa para a persecução penal por estar configurada causa excludente de culpabilidade consubstanciada na inexigibilidade de conduta diversa;

            3) caracterização do crime impossível devido ao fato da adulteração praticada ser grosseira, característica incompatível com os delitos de falsidade;

            4) prescrição da pretensão punitiva em razão da desclassificação para o delito tipificado no art. 345, do CP;

            5) rejeição da denúncia em razão da desclassificação para o delito tipificado no art. 301, § 1º, do CP, que por ser infração de menor potencial ofensivo exige a manifestação do Ministério Público acerca da propositura de transação penal.

            Termos em que,

            P. Deferimento.

            Rio de Janeiro, 09 de agosto de 2002.

            Thiago Bottino

            OAB/RJ nº 102.312

            RELAÇÃO DOS DOCUMENTOS EM ANEXO

            - Doc. nº 1 – Denúncia ofertada em face da Paciente.

            - Doc. nº 2 – Decisão de recebimento da denúncia, com designação de data para interrogatório.

            - Doc. nº 3 – Processo administrativo com trâmite perante o ENTE PÚBLICO "TAL" que versa sobre o contrato firmado entre a empresa XXXXX Ltda. e o ENTE PÚBLICO "TAL".

            - Doc. nº 4 – Extratos bancários de contas da empresa.

            - Doc. nº 5 – Depoimentos prestados no curso do inquérito policial.

            - Doc. nº 6 – Parecer técnico documentoscópico sobre a falsificação grosseira.

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Sobre o autor
Thiago Bottino do Amaral

advogado criminalista no Rio de Janeiro (RJ), mestre e doutorando em Teoria do Estado e Direito Constitucional pela PUC/RJ

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

AMARAL, Thiago Bottino. Habeas corpus em processo criminal por falsificação:: mudança na capitulação do crime. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 10, n. 808, 19 set. 2005. Disponível em: https://jus.com.br/peticoes/16637. Acesso em: 23 dez. 2024.

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