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Umbandistas defendem feriado de Ogum (São Jorge) no STF

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DEMAIS CONSIDERAÇÕES DO AMICUS

6. Na inicial da ADI, a CNC, alega vício de competência da Lei Estadual, argumentando que somente a União poderia legislar sobre Direito do Trabalho. Mas a instituição de feriado não é matéria afeta diretamente ao Direito do Trabalho. Apenas gera, reflexamente, efeitos trabalhistas. De outra parte, o motivo do feriado de São Jorge tem caráter cultural, religioso, e não apenas gerar efeitos trabalhistas.

6.1. Para ilustrar a tese retro mencionada, vamos supor que um circorequeira à prefeitura municipal uma autorização de uso para instalar a lona em uma praça. Dentro do seu campo de discricionariedade, se a prefeitura municipal conceder a autorização de uso restringindo o funcionamento do circo apenas para depois das 22:00h, acabará, ainda que reflexamente, adentrando em matéria trabalhista, eis que indiretamente tornou obrigatório para o circo o pagamento de adicional noturno e proibiu o trabalho de menores. Há mais: no exemplo citado, sequer há lei formal, e sim mero ato administrativo precário gerando efeitos trabalhistas. Em tese, ninguém poderia dizer que tal ato administrativo estaria usurpando a competência da União de legislar sobre direito do trabalho...

6.2. Haveria inconstitucionalidade, por exemplo, se uma lei municipal ou estadual legislasse especificamente sobre direito do trabalho, como instituindo uma nova obrigação trabalhista não prevista em lei federal. Por exemplo, Lei Municipal estabelece que o adicional de periculosidade passe a ser de 50%.

6.3. A Lei Estadual que institui feriado não cria novas obrigações trabalhistas, pois o dever do empregador de pagar em dobro, por exemplo, já está previsto em lei federal. Em muitos casos, sequer é pago qualquer acréscimo devido à existência de tratos coletivos de trabalho, escalas de revezamento ou mesmo acordo de compensação de horas... O que não pode é a Lei Estadual que institui feriado exigir que o pagamento seja feito em triplo, ou que ao menos não haja pagamento em dobro.

6.4. Além disso, em feriados municipais, por exemplo, as repartições públicas federais e estaduais do respectivo município não funcionam, e nunca se cogitou que a lei que instituiu tal feriado estaria legislando sobre direito administrativo...

6.5. Assim, considerando que o feriado de São Jorge tem cunho religioso e, portanto, cultural, incidiria o disposto no artigo 215 CRFB:

Art. 215. O Estado garantirá a todos o pleno exercício dos direitos culturais e acesso às fontes da cultura nacional, e apoiará e incentivará a valorização e a difusão das manifestações culturais.

§ 1º - O Estado protegerá as manifestações das culturas populares, indígenas e afro-brasileiras, e das de outros grupos participantes do processo civilizatório nacional.

Ou seja, o Estado (todos os entes) tem o dever de proteger a difusão de manifestações culturais, tais como os dias de preceito religioso, de modo que um estado membro poderia decretar um feriado tal fim.

6.6. Essa Excelsa Corte proferiu um acórdão em 2005, citado pela CNC, que reitera o caráter trabalhista da instituição de feriados, afirmando a competência da União. Mas tal precedente se refere ao "dia do comerciário". E no feriado de São Jorge o que se defende é a manifestação da religiosidadede diferentes religiões, principalmente as afrobrasileiras, que pelo art. 215, § 1º CF receberão especial proteção do Estado (todos os entes) em suas manifestações.

6.7. Há mais: toda regra jurídica pode ser decomposta em seus preceitosprimário e secundário. O preceito primário se refere às questões fáticas, jurídicas, situações previstas nanorma que ensejam sua aplicação. Grossomodo, o preceito primário é a "hipótese de incidência" daregra. O preceito secundário se refere às conseqüências jurídicas da ocorrência do preceito primário na realidade fática.

6.8. Assim, no ramo juslaboral, um preceito primário seria a realização de trabalho noturno; o secundário, a obrigatoriedade do adicional. Uma Lei Estadual que institui um feriado estaria apenas prevendo uma situação fática, um preceito primário. Os efeitos jurídicos de tal feriado -ou seja, o preceito secundário -estão previstos em lei federal.

6.9. A lei estadual do feriado não pretende modificar o preceito secundário da lei federal; apenas prevê uma hipótese em que incidiria a legislação da União, isto é, apenas prevê um preceito primário. Por esses e outros motivos, é possível se defender que a competência privativa da União se resume ao preceito secundário das normas trabalhistas, e não ao preceito primário.

6.10. Ora, se os particulares podem firmar relações trabalhistas - preceitos primários-cujos efeitos legais estão na lei federal, outros entes da federação - para fomentar a defesa da cultura de seu povo - poderiam criar feriados - preceito primário -, cujos efeitos trabalhistas - preceito secundário -estão na lei federal. O que é proibido a Estados e Municípios é legislar sobre preceitos secundários da legislação trabalhista. Ao se impedir que tais entes possam legislar sobre preceitos primários, poder-se-ia chegar ao extremo dese proibir que tais entes firmem relações trabalhistas (como contratar trabalhadores pelo sistema celetista - preceito primário), já que estariam produzindo efeitos típicos de tal ramo do direito.

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6.11. Somente assim, com o devido respeito, seria possível defender a inconstitucionalidade da lei federal 9.093/95 por restringir a atuação dos demais entes da Federação na promoção da cultura de seus povos (violação do princípio federativo e da subsidiariedade).


DIA FERIADO, ESTADO-MEMBRO, AUTONOMIA E DESCENTRALIZAÇÃO: O PRINCÍPIO DA FEDERAÇÃO

7. Enunciam Mendes, Coelho e Branco [14], referindo-se às características básicas do Estado Federal, que a "autonomia importa, necessariamente, descentralização do poder". Essa descentralização, dizem eles, é "não apenas administrativa, como, também, política". Assim, os Estados-membros não "apenas podem, por suas próprias autoridades, executar leis, como também é-lhes reconhecido elaborá-las. Isso resulta em que se perceba no Estado Federal uma dúplice esfera de poder normativo sobre um mesmo território e sobre as pessoas que nele se encontram, há a incidência de duas ordens legais: a da União e do Estado-membro".

7.1. A princípio, podemos dizer, considerando os argumentos explanados ao longo do item 06 da presente e aqueles enunciados pelos constitucionalistas citados neste item 07, que falece razão à CNC na peça vestibular, quando suscita vício de competência supostamente contido na Lei Estadual impugnada. Em termos psicanalíticos poderíamos dizer que a CNC quer "tirar a potência" do Estado-membro ao tentar impedi-lo de exercer o seu direito à autonomia legislativa, para legislar sobre feriado, por via da presente ADI...

7.2. No mesmo sentido, Baracho [15], no clássico O Princípio de Subsidiariedade: conceito e evolução, ao comentar os temas: SUBSIDIARIEDADE E FEDERALISMO, à luz dos autores que tratam do federalismo alemão, aponta os pontos essenciais do federalismo: a) o federalismo preserva a diversidade histórica e a individualidade; b) facilita a proteção de minorias; c) aplica o princípio da subsidiariedade; d) o federalismo é um meio de proteção da liberdade; e) o federalismo encoraja e reforça a democracia, facilitando a participação democrática (...), que também são princípios (explícitos ou implícitos), regras e valores esposados pela Constituição da República Federativa do Brasil de 1988, invocados ao longo do presente texto em favor do Estado que legislou o dia feriado de São Jorge, bem assim para os devotos de todas as religiões que se identificam com esse santo.


DAS CONSIDERAÇOES (QUASE) FINAIS DO AMICUS CURIAE

8. As diversas considerações formuladas ao longo deste memorial pretenderam demonstrar, em caráter interdisciplinar [16] - para além do positivismo jurídico, que a tudo pretende solucionar pelo método lógico-dedutivo ou da subsunção automática da lei aos fatos - que a Lei nº 5.198, de 05 de março de 2008, do Estado do Rio de Janeiro, que instituiu o feriado, no dia 23 de abril, "dia de São Jorge", publicada no dia 06 de março de 2008, além de formal e materialmente ajustada, à fiveleta, à Carta Federal em vigor, cumpre outras finalidades programáticas, principiológicas e valorativas previstas na nossa Constituição Dirigente, tais como: o princípio da federação; da subsidiariedade; da democracia, da dignidade humana; do direito à religião e seus consectários; da pluralidade religiosa, étnica e racial etc.

8.1. E, quase finalizando, a entidade Amici reproduz os trechos do artigo de Márcia Miranda Soares, intitulado Federação, Democracia e Instituições Políticas, destacado no início deste memorial, pois consoante e totalmente aplicável ao caso sob censura, "tendo em vista a composição pluralista, preferivelmente subsidiária, de entes autônomos, o Estado federal possui a peculiaridade capaz de assim se transformar num agente regulador da convivência harmônica entre os grupos territoriais, reunidos para tanto num pacto federativo, mas também nacional e de união perpétua".

(...)

O maior mérito do sistema federal não está no campo da eficácia econômica ou administrativa, mas no campo das relações de poder: a federação, como se procurará demonstrar, é o meio de organização territorial mais apropriado para garantir, via democracia, estabilidade e legitimidade políticas aos governos dos Estados nacionais cujas sociedades são marcadas por grande heterogeneidade de base territorial.

(...)

Heterogeneidades territoriais: As forças centrífugas, caracterizadas acima, são decorrentes de um contexto de heterogeneidades territoriais que consiste na existência de focos distintos de solidariedades de base territorial presentes numa sociedade nacional. É aos problemas derivados deste contexto, colocados à formação ou mesmo à manutenção do Estado nacional, que a federação aparece como solução. Estas heterogeneidades podem ter correspondência étnica, lingüística, religiosa ou serem simplesmente clivagens de identidades que se definiram pela ocupação comum de um determinado territorial.


DOS PEDIDOS:

9. Diante do exposto, a entidade amici requerer:

a.indeferimento do pedido de concessão de medida liminar, em face da ausência de motivos de ordem pública ou periculum in mora; conhecimento e deferimento da preliminar suscitada, de carência de ação, com decretação da extinção do processo sem a apreciação e julgamento do mérito, ou, no mérito, seja julgada improcedente a presente ação direta de inconstitucionalidade.

Pede Deferimento.

Rio de Janeiro, RJ, 30 de outubro de 2008.

Luiz Fernando Martins da Silva

Adv. Insc. nº 57.095. OAB-RJ

Pedro Ivo Martins Caruso D’Ippolito

Adv. Insc. Nº 153.196. OAB-RJ


Notas

  1. SOARES, Márcia Miranda. Federação, Democracia e Instituições Políticas. In: Instituições. Revista de Cultura a Política, nº 44. ISSN 0102-6445. São Paulo: CEDEC. 1988.
  2. CLÈVE, Clèmerson Merlin. A fiscalização abstrata da constitucionalidade no Direito brasileiro. 2ª. ed. revista e atualizada e ampliada. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2000, p. 159.
  3. BARROSO, Luis Roberto. Conceitos fundamentais sobre o controle de constitucionalidade e a jurisprudência. In SARMENTO, Daniel (org.). O controle da constitucionalidade e a Lei no 9.868/99. Rio de Janeiro: Lúmen Júris, 2002.
  4. V. por todos, CLÈVE, ob.cit., p. 165.
  5. V. MENDES, Gilmar Ferreira. Jurisdição constitucional. 3.a ed. São Paulo: Saraiva, 1999, p. 61.
  6. ORIXÁ: Segundo o Dicionário Aurélio, entre os iorubas e nos ritos religiosos afro-brasileiros, como o candomblé, a umbanda, etc., personificação ou deificação das forças da natureza ou ancestral divinizado que, em vida, obteve controle sobre essas forças; guia, encantado.
  7. WEBER, Max, A Ética Protestante e o Espírito do Capitalismo. São Paulo: Martin Claret. 2002, p. 23,
  8. É sempre oportuno lembrar que os autodeclarados pretos e pardos no Brasil somam quase a metade de nossa população que é de cerca de 170 milhões de pessoas. O censo de 2000, realizado pelo Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE), constatou que a soma da porcentagem de pretos (6,21%) e pardos (38,45%) é de 44,66% perfazendo algo em torno de 76 milhões de pessoas, constituindo a maior população de origem africana fora da África. É a segunda maior população negra do mundo, só inferior numericamente ao mais populoso país africano, a Nigéria.
  9. Ver Harding, Rachel E. 2000. A refuge in thunder : Candomblé and alternative spaces of blackness, Blacks in the diaspora. Bloomington: Indiana University Press; Omari-Tunkara, Mikelle Smith. 2005. Manipulating the sacred : Yoruba art, ritual, and resistance in Brazilian Candomble, African American life series. Detroit: Wayne State University Press.
  10. Ver Falola, Toyin, and Matt D. Childs. 2004. The Yoruba diaspora in the Atlantic world, Blacks in the diaspora. Bloomington: Indiana University Press; Johnson, Paul C. 2002. Secrets, gossip, and gods : the transformation of Brazilian Candomblé. Oxford ; New York: Oxford University Press.
  11. Sobre a teoria do reconhecimento ver Feres Júnior, João, and Bethania Assy. 2006. Reconhecimento. In Dicionário de Filosofia do Direito, edited by V. d. P. Barretto. Rio de Janeiro; Honneth, Axel. 1992. Integrity and disrespect: principles of a conception of morality based on the theory of recognition. Political Theory 20 (2):187-202; e Honneth, Axel. 1995. The struggle for recognition: the moral grammar of social conflicts. Cambridge, UK; Oxford ; Cambridge, MA: Polity Press - Blackwell.
  12. d´ADESKY, 2001, 185-187.
  13. Para reforço da Identidade dos praticantes de religiões de matriz africana, especialmente os afro-brasileiros, que são cotidianamente discriminados e, portanto, sem possibilidades de elaborar e superar a vulnerabilidade subjetiva decorrente da prática reiterada da discriminação. Sobre o termo ação afirmativa, vide o verbete "ação afirmativa" in: FERES JÚNIOR e SILVA, Luiz Fernando Martins da. Dicionário De Filosofia Do Direito, Vicente de Paulo Barretto (Coord). São Leopoldo e Rio de Janeiro: Editora Unisinos e Editora Renovar, 2006.
  14. MENDES, Gilmar Ferreira, COELHO, Inocêncio Mártires, BRANCO. Curso de Direito Constitucional. 2ª. ed. rev. e atual. São Paulo: Saraiva, 2008, p. 798.
  15. BARACHO, José Alfredo de Oliveira. O princípio da subsidiariedade: conceito e evolução. Rio de Janeiro: Forense, 2000, p. 43.
  16. Colaboraram para a produção do presente Memorial as seguintes pessoas: Luiz Fernando Martins da Silva (Ogã confirmado para Xangô do Ilê Axé Oxumarê, Salvador (BA), advogado, pesquisador e ex-professor da Faculdade Brasileira de Ciências Jurídicas – SUESC-Pitágoras); Prof. Dr. Jaques d’Adesky (economista e antropólogo, pesquisador e Professor da Universidade Candido Mendes - RJ- UCAM e Coordenador do Programa Sul-Sul/CLACSO); Prof. Dr. João Feres Junior (cientista político, pesquisador e professor do Instituto de Pesquisas do Rio de Janeiro – IUPERJ); Prof. Mestre José Henrique Motta de Oliveira (Umbandista e sacerdote da Cabana de Pai Pescador das Almas, situado em Campo Grande (RJ), jornalista, historiador e pesquisador); Pedro Ivo Martins Caruso D’Ippolito (advogado), Bela Balassiano (contadora e acadêmica de Direito da Faculdade Brasileira de Ciências Jurídicas – SUESC-Pitágoras); Margarete Alves dos Reis de Sousa (professora da rede municipal da cidade do Rio de Janeiro, Licencianda em História do Instituto Metodista Bennett) e Jorge Mattoso (secretário da Congregação Espírita Umbandista Do Brasil – CEUB
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Sobre o autor
Luiz Fernando Martins da Silva

advogado, ex-diretor e assessor jurídico do Instituto de Pesquisa e Culturas Negras e do Centro Brasileiro de Informação e Documentação do Artista Negro

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

SILVA, Luiz Fernando Martins. Umbandistas defendem feriado de Ogum (São Jorge) no STF. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 14, n. 2149, 20 mai. 2009. Disponível em: https://jus.com.br/peticoes/16892. Acesso em: 8 mai. 2024.

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