Uma das questões processuais mais delicadas atualmente, para os juízes que atuam em varas cíveis (da Justiça Estadual), tem sido definir sua competência para processar e julgar causas em que litigam participantes de planos de previdência complementar privada e as entidades que operam esses planos. Os participantes de planos previdenciários hoje em dia atulham o Judiciário com pedidos os mais diversos, desde os mais corriqueiros pedidos de aumento do valor dos benefícios, passando por discussões sobre direito de manutenção do valor de sua contribuição ou a do patrocinador, até reivindicações de portabilidade dos valores acumulados para outro plano ou resgate das contribuições pagas. São, portanto, muitos os tipos de ações movimentadas na Justiça em torno do regime de previdência complementar privada. Além do trabalho normal de dar vazão e solução a todas essas questões, uma dificuldade adicional tem aparecido: a de definir exatamente o âmbito de atuação do Poder Judiciário estadual, ou seja, para quais desses tipos de causas são competentes os juízes das varas cíveis da Justiça estadual.
Como se sabe, a Constituição Federal em seu art. 202 previu o Regime de Previdência Privada, que tem caráter complementar e é organizado de forma autônoma em relação ao regime geral de previdência social (pública). Nessas condições, o regime de previdência privada é operado por entidades que têm por objetivo principal instituir e executar os planos de benefícios previdenciários[1]. Essas entidades são classificadas em abertas ou fechadas, conforme funcionem oferecendo seus planos de benefícios previdenciários a quaisquer pessoas físicas ou somente a determinadas categorias de pessoas. De fato, pela conceituação legal, as entidades de previdência complementar abertas têm por objetivo instituir e operar planos de benefícios de caráter previdenciário "acessíveis a quaisquer pessoas físicas" (art. 36 da Lei Complementar n. 109, de 29 de maio de 2001)[2]. Já as entidades de previdência complementar fechadas são aquelas acessíveis exclusivamente:
a) aos empregados de uma empresa ou grupo de empresas, denominadas de patrocinadores;
b) aos servidores da União, Estados e Municípios, denominados de patrocinadores;
c) aos associados ou membros de pessoas jurídicas de caráter profissional, classista ou setorial, denominadas instituidores (art. 31 da citada Lei Comp. 109)
Extrai-se dessa classificação que as entidades de previdência complementar fechadas podem ser patrocinadas por empresas públicas ou privadas[3]. Além dos entes da federação (União, Estados e Municípios), suas autarquias, empresas públicas, fundações e sociedades de economia mista podem constituir entidades fechadas, isto é, empresas criadas com a finalidade de operar planos de benefícios previdenciários em favor exclusivo dos servidores de seus patrocinadores[4]. Elas organizam-se sob a forma de sociedade civil, sem fins lucrativos (par. 1o., do art. 31 da Lei Comp. 109).
Tratando-se de litígio entre um participante de plano de benefícios contratado com entidade aberta, certamente não há dificuldade em se apontar a Justiça Comum para resolver a pendenga. O adquirente não é um ex-empregado da empresa patrocinadora da entidade que opera o plano e sua participação não depende do preenchimento de requisitos trabalhistas ou associativos prévios. Como consumidor que aderiu ao plano sem imposição de condições outras a não ser o pagamento das prestações estabelecidas contratualmente, não existem outros "requisitos de elegibilidade" - ao contrário do que ocorre em se tratando de beneficiário de plano instituído por entidade previdenciária fechada, que pressupõe vínculo empregatício com o patrocinador ou associativo com o instituidor (ver classificação das entidades fechadas feita acima).
A dificuldade aparece quando o conflito envolve empresa fechada que opera planos previdenciários em favor de classe específica de pessoas, empregadas de uma empresa ou grupo de empresas patrocinadoras (ver item a da classificação das entidades fechadas, feita acima). Nessa situação, o outro litigante é necessariamente um empregado da empresa patrocinadora ou seu ex-empregado, que passou a usufruir os benefícios do plano em razão da cessação do vínculo empregatício. Cuida-se de alguém que ainda mantém ou se desligou de uma relação empregatícia para assumir posição (a partir daí única) numa relação contratual previdenciária. Em razão dessa conexão que o plano previdenciário guarda com a relação de emprego, não seria lógico supor a extensão da jurisdição trabalhista para alcançar esse tipo de demanda?
Parece-nos que sim. A relação contratual empregatícia não encerra, com o seu término, a produção de efeitos jurídicos. Mesmo extinta, ela continua a produzir alguns efeitos, e um desses efeitos é justamente proporcionar que o (ex)empregado assuma a condição de assistido[5] de plano (contrato) previdenciário administrado por outra empresa. Diga-se, aliás, que a jurisprudência já se pronunciou no sentido de que os direitos relacionados ao extinto contrato de trabalho, mesmo após a aposentação do obreiro, não deixam de manter correlação com ele (AgRG no CC 38.915-RJ, rel. Min. Aldir Passarinho Júnior, julgado em 11.02.04).
Realmente, nesses casos de lide entre o assistido e a operadora de plano previdenciário fechado (patrocinado por empresa privada) a solução passa inevitavelmente pelo exame da relação trabalhista precedente. Tome-se como exemplo uma ação movida por um empregado aposentado visando à complementação do benefício de aposentação. O julgador forçosamente termina analisando condições e cláusulas trabalhistas, pela razão de que o benefício previdenciário decorre em última análise do próprio contrato de trabalho celebrado com o patrocinador (a empresa patronal). Com efeito, a causa de pedir mediata para a complementação dos proventos de aposentadoria, nesse caso, vai sempre desaguar nas normas do contrato de trabalho prévio, pela razão de que o contrato previdenciário estabelecido com empresa de previdência privada fechada pressupõe prévio contrato de trabalho. E, tratando-se de controvérsia decorrente de relação de trabalho, a competência para decidi-la é da Justiça do Trabalho, a teor do art. 114 da CF.
A jurisprudência já vem se inclinando pela aceitação dessa tese, como se observa de alguns arestos do STJ sobre o tema:
"COMPETÊNCIA. CONFLITO NEGATIVO.
-Complementação de aposentadoria, que se vincula ao contrato de trabalho.
-Competência da Justiça do Trabalho para a causa (CC 33920-RJ, rel. Min. Fontes de Alencar, j. 10.09.03, DJ 02.02.04)
"CONSTITUCIONAL. CONFLITO DE COMPETÊNCIA. COMPLEMENTAÇÃO DE APOSENTADORIA.RELAÇÃO DE CONTRATO DE TRABALHO. JUSTIÇA ESPECIALIZADA.
-Compete à Justiça do Trabalho processar e julgar reclamação trabalhista proposta por empregado aposentado, na qual se objetiva perceber complementação de aposentadoria resultante de contrato de trabalho.
-Conflito conhecido para declarar a competência do juízo trabalhista, o suscitado (3ª Seção, CC 29215-SP, rel. Min. Vicente Leal, j.25.09.04, DJ 21.10.02).
Essa também é a posição que já vem sendo defendida pelo TST:
"COMPETÊNCIA DA JUSTIÇA DO TRABALHO. PREVIDÊNCIA PRIVADA
Esta Corte tem adotado entendimento no sentido de que planos de previdência complementar privada fechada, entre empregado, empregador e entidade instituída pelo empregador para a complementação de aposentadoria de seus empregados, fazem parte da competência da Justiça do Trabalho, visto que a controvérsia origina-se do contrato de trabalho. Logo, não há falar em violação ao art. 114 da CF/88 (TST RR 88-2003-008-08-00, 2ª Turma, rel. Min. José Simpliciano Fernandes, j. 10.12.03, DJ 13.02.04).
No mesmo sentido é a jurisprudência do STF:
"DIREITO CONSTITUCIONAL, PREVIDENCIÁRIO E PROCESSUAL CIVIL. JURISDIÇÃO. COMPETÊNCIA. COMPLEMENTAÇÃO DE PENSÃO OU DE PROVENTOS DE APOSENTADORIA, QUANDO DECORRENTE DE CONTRATO DE TRABALHO. COMPETÊNCIA DA JUSTIÇA DO TRABALHO.
(...)
A questão suscitada no recurso extraordinário já foi dirimida por ambas as Turmas do Supremo Tribunal Federal, segundo as quais compete à Justiça do Trabalho o julgamento das questões relativas à complementação de pensão ou proventos de aposentadoria, quando decorrente de contrato de trabalho.
(...)
Agravo improvido (Ag. Reg. No AI 198260-MG, rel. Min. Sydney Sanches, j.07.08.01, DJ 16.11.01).
Como visto, as questões relativas à complementação de aposentadoria, quando esta for decorrente de relação de trabalho, vão sempre resultar na necessidade de recorrer à interpretação das cláusulas e condições do contrato de trabalho. Embora o art. 68 da Lei Complementar 109 estabeleça que as condições contratuais previstas nos planos de benefícios das entidades de previdência complementar não integram o contrato de trabalho dos participantes[6], há uma inter-relação estreita entre as duas espécies contratuais, de modo a justificar a competência do mesmo órgão judiciário para examinar controvérsias em torno de ambas.
Podemos sustentar que a Competência da Justiça especializada não engloba apenas as ações em que o autor pretende a complementação do benefício de aposentadoria, mas abarca todos os casos em que se tenha de julgar questões que envolvam planos (contratos) de previdência privada fechada, celebrados com o objetivo de atribuir os benefícios de aposentadoria a empregado do setor privado. É claro que nem todos pensam assim, havendo quem entenda ser possível a discussão de cláusulas exclusivamente do contrato previdenciário, sem resvalar na origem empregatícia do vínculo contratual anterior (nesse sentido: STJ-3ª Seção, CC 36071-RJ, rel. Min. Carlos Alberto Menezes Direito, j. 10.09.03, DJ 29.09.03). Essa jurisprudência, no entanto, não expressa o sentimento majoritário do STJ e deve ser afastada por proporcionar insegurança jurídica. O mais correto, pelas razões já expostas e também para proporcionar maior grau de certeza aos órgãos judiciários, é definir que sempre que a causa versar sobre plano (contrato) de previdência complementar fechada em benefício de empregado do setor privado, a competência é da Justiça laboral. Um fundamento de ordem prática pode ser aventado: para o Juiz concluir se há necessidade ou não de revolver cláusulas do contrato de trabalho, fica obrigado a examinar a própria questão de fundo, tarefa que geralmente só realiza quando o processo está pronto para julgamento, após o término da instrução. Ora, é economicamente inviável deixar-se a decisão quanto à competência somente para momento final, quando já realizado trabalho processual exaustivo.
Ainda um último argumento pode ser levantado em prol da competência plena da Justiça do trabalho para examinar e julgar lides entre empresas de previdência fechada (do setor privado) e os beneficiários dos planos que administra. O fundamento é o de que o contrato previdenciário, em última análise, é firmado com a própria empresa empregadora, ainda que esta se faça representada por meio de empresa pertencente a mesmo grupo empresarial. A obrigação jurídica de contrato de previdência complementar fechada decorre de relação que se dá entre o beneficiário (empregado) e o ex-empregador, ainda que de forma indireta. Se é verdade que os contratos previdenciários não são celebrados diretamente com a própria empresa empregadora, o são com empresa de alguma forma coligada a ela, instituída com o fim exclusivo de formar fundo previdenciário para complementar a aposentadoria do seu trabalhador (da empresa patrocinadora). Essa simbiose entre a entidade fechada de previdência privada e a empresa patrocinadora fica mais evidente quando se observa que: a) em geral, os entes patrocinadores permanecem ligados à entidade previdenciária e somente se retiram em casos excepcionais, mediante aprovação do órgão regulador e fiscalizador (art. 33, III, da Lei Comp. 109); b) os patrocinadores têm representantes nos conselhos deliberativos e fiscal da entidade fechada (art. 35, par. 2o.); e c) os administradores dos patrocinadores são responsabilizados pelos danos ou prejuízos causados às entidades de previdência complementar, especialmente pela falta de aporte das contribuições a que estavam obrigados (art. 57, par. únic.).
Sem sombra de dúvida, não somente há uma inter-relação entre o contrato de trabalho e o contrato previdenciário, como também há uma ligação estreita entre a entidade fechada operadora e a patrocinadora, o que justifica inclusive que os autores (participantes ou assistidos dos planos) de ações incluam ambas no pólo passivo da demanda. Registre-se que é exatamente isso o que tem ocorrido na prática forense.
Notas
[1] Art. 2o. da Lei Complementar n. 109, de 29 de maio de 2001, que dispõe sobre o Regime de Previdência Complementar, regulamentando o "caput" do art. 202 da CF.
[2] Além disso, a Lei estabelece que as entidades abertas são constituídas unicamente sob a forma de sociedades anônimas (art. 36).
[3] As relações entre as entidades previdenciárias e seus patrocinadores públicos estão definidas na Lei Complementar n. 108, de 29 de maio de 2001,que regulamentou o parágrafo 4o. do art. 202 da CF (na redação da EC 20.15.12.98).
[4] Par. 4o. do art. 2002 da CF.
[5] Na definição oferecida pelo art. 8o., incs. I e II, da Lei Comp. 109, participante é a pessoa física que aderir aos planos de benefícios, enquanto que assistido é o participante ou seu beneficiário em gozo de benefício de prestação continuada.
[6] O art. 68 da Lei Complementar 109 reproduz o par. 2o. do art. 2002 da CF (na redação da Emenda Constitucional n. 20, de 15.12.98), de seguinte teor:
"As contribuições do empregador, os benefícios e as condições contratuais previstas nos estatutos, regulamentos e planos de benefícios das entidades de previdência privada não integram o contrato de trabalho dos participantes, assim como, à exceção dos benefícios concedidos, não integram a remuneração dos participantes, nos termos da lei".