Sras. Laura e Sucena,
Por acaso, encontrei um julgado do Tribunal de Justiça do Rio Grande do Sul que poderá ser invocado pela defesa de vocês nos autos da ação a ser movida contra o pai biológico de seus filhos (veja-se: o precedente não socorre a Sra. Josinéa, cujo pedido parece ser juridicamente impossível, como bem destacou a colega Rosana).
No caso, o pai da criança também a havia abandonado, sendo que a infante acabou sendo criada pelo padrasto, que, na prática, assumiu o papel de pai. Então, propôs-se ação de destituição familiar contra o pai biológico, que saiu vencido em primeira instância (ou seja, o juiz deixou de considerá-lo como pai, em razão do abandono, e o substituiu pelo padrasto). Inconformado com a decisão, ele (o pai biológico) recorreu (!!) ao Tribunal de Justiça e, novamente, saiu perdedor. Os desembargadores (juízes de 2ª instância) deram maior relevo à relação socioafetiva entre a criança e o padrasto que à mera filiação natural.
Abaixo, segue a transcrição parcial dessa decisão (Apelação 70008755159, Relator: Des. Luiz Felipe Brasil Santos, 7ª Câmara Cível, Tribunal de Justiça do Rio Grande do Sul, julgada em agosto de 2004):
"Se, por um lado, somente situações graves autorizam a destituição do poder familiar, por outro, deve-se sobrelevar o interesse da criança e é sob este prisma que será pautada a decisão.
É incontroverso o fato de que o apelante deixou a filha XXX, hoje com 8 anos e 7 meses, quando esta tinha cerca de 1 ano de idade, sem jamais procurá-la ou assisti-la de qualquer forma, material ou afetivamente, justificando sua conduta na ausência de condições financeiras.
Durante todo esse tempo, até ser citado na presente ação, nada soube da filha. Jamais procurou saber se ela estava bem, com frio ou fome, doente, ou precisando de sua ajuda. Nada sabe sobre a sua escolinha ou sobre as músicas que gosta de cantar, qual comida prefere, qual o tamanho do seu sapatinho. Não sabe sobre os seus medos nem sobre os seus sonhos. Nada sabe, nunca quis saber. É um estranho. Um estranho pai biológico. Um genitor apenas.
Enquanto o apelante estava em Gravataí, fazendo biscates, tentando ganhar a vida, a pequena XXX crescia em Três Passos, tendo como única referência paterna aquele que viria a ser marido de sua mãe, aquele a quem chama de pai e ama como pai. Aquele que acompanha seu crescimento, que a leva à Igreja e à escola, que a estimula a cantar e a sonhar. É esse o pai que XXX conhece. É esse que é também pai da sua irmãzinha. A família que XXX tem, ama e reconhece é a formada por ela, sua irmã YYY (5 anos), sua mãe ZZZZ e seu pai afetivo AAAA. É essa a referência de apego e proteção que lhe permite crescer e se desenvolver como pessoa.
Esta Câmara vem firmando o entendimento de que somente situações de extrema gravidade autorizam a destituição do poder familiar. São, de regra, situações de negligência extrema, maus tratos e abuso sexual. Não é o caso dos autos. Aqui há outra espécie de grave violação aos deveres inerentes ao poder familiar: o abandono, que, à luz do art. 1638 do Código Civil, impõe a destituição.
Manter o apelante no exercício do poder familiar em relação à filha XXX trará a ela conseqüências irreparáveis, especialmente no que tange à possibilidade de vir a ser adotada por AAAA. Não sendo o apelante destituído do poder familiar, somente como seu consentimento será possível a adoção. Consentimento esse que certamente não será dado. E será negado à XXX o reconhecimento jurídico da família que ela já tem como sua.
Quem vai explicar o fato – que logo será por ela percebido – de que tem o sobrenome diferente do da irmã? Quem esclarecerá que aquele nome que consta na sua ficha escolar, de um homem que ela não conhece, é o do seu pai? Que pai?
Prover este apelo é coroar a paternidade negligente e irresponsável, a desfaçatez de quem justifica o absurdo de passar mais de cinco anos sem tomar o menor conhecimento da vida da filha na falta de condições financeiras.
Ora, nem mesmo a mais extrema pobreza impede um pai que ama e se importa com seus filhos de, ao menos, dar um telefonema, escrever uma carta.
A questão aqui é que o apelante simplesmente abandonou a filha que, por sorte, encontrou respaldo na mãe e na nova família por ela constituída. Não fosse assim, como estaria XXX?
Não bastasse isso, tentar restabelecer vínculo com um pai que a menina sequer conhece, que não representa para ela a menor referência pode ser nefasto para a sua higidez psicológica, fundada em bem delineadas as figuras de apego.
A impressão que fica é que o apelante está aqui se insurgindo contra a decisão e ofertando alimentos apenas para não dizer que perdeu a filha para outro homem, para o atual marido de sua mulher, em uma mera disputa de poder. Agora quer a filha porque soube que outro a quer. O apelante foi um dia pai de XXX, na concepção e no registro civil. Além disso, nada mais. Eles não se conhecem, nada sabem um do outro, porque o apelante assim o quis. Outro foi seu verdadeiro pai. E este é o atual marido da mãe da menina, que formou com ela verdadeira relação socioafetiva, que, tudo indica, levará à concretização da adoção.
Como salienta Julie Cristine Delinski : O ato de ser pai não se limita à procriação, mas exige amar, compartilhar, cuidar, construir uma vida juntos . E se a procriação é apenas um dado, a efetiva relação paterno-filial exige mais do que apenas os laços de sangue. Assim, através da ‘posse do estado de filho’ vai se revelar essa outra paternidade, fundada nos laços de afeto (ob. cit. p. 101).
Nesses termos nego provimento ao apelo."
Achei essa decisão fantástica. Contudo, como já alertei antes, nem todos os juízes têm uma visão tão humanista como esta...
Até mais.