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Democracia e regime democrático

Agenda 17/09/2022 às 08:35

É impossível a instauração de autênticos Estados Democráticos de Direito (democracias materiais plenas) em países cuja concepção estrutural de soberania seja de orientação teocrática.

Reis Friede [1]*

Cada vez mais doutrinadores têm defendido a tese segundo a qual a democracia e o chamado regime democrático, - em sua tradução material (derivada, por seu turno, da necessária associação entre os Estados de legitimidade e de legalidade) -, constituem-se (na qualidade de conceitos elementares da Ciência Política) muito mais acertadamente em uma resultante estrutural dialética, relativamente a um processo histórico-factual de uma sociedade (em seu contexto político-ideológico), do que propriamente em um modelo concepcional de regime político que, nesta (ultrapassada) caracterização, poderia (em tese) ser implantado, aleatoriamente, conforme o eventual desejo formal manifestado (de algum modo) pelo povo ou pela classe ou grupo governante.

Nessa direção, a liberdade individual, na qualidade de um dos pilares fundamentais do regime democrático, estaria muito mais associada ao grau de maturidade sociopolítica (nível de conscientização popular) de uma coletividade organizada e, portanto, do patamar civilizatório alcançado por uma sociedade em seu desenvolvimento histórico-político, do que condicionado à simples vontade manifestada por qualquer instrumento formalizante de índole político-jurídica que se proponha a implantar (artificialmente) uma democracia, como, por exemplo, a Assembleia Nacional Constituinte.

Em outras palavras, segundo essa nova orientação doutrinária, simplesmente não seria viável a efetiva implantação do verdadeiro regime democrático em Estados cujos cidadãos ainda não tenham logrado atingir as condições mínimas de convivência ética e moral, até porque não é possível ultrapassar, por simples manifestação unilateral (ou mesmo grupal) de vontade, estágios naturais de desenvolvimento civilizatório e, igualmente, suprimir pressupostos básicos de amadurecimento social que, necessariamente, envolvem não somente um processo educacional complexo (e verdadeiramente eficiente), mas, acima de tudo, fatores históricos genuinamente revolucionários que tenham marcado uma sociedade, permitindo a sua indispensável reflexão coletiva.

Neste sentido, TOM DWYER, conhecido sociólogo neozelandês radicado no Brasil, salienta, com mérita propriedade, que a pobreza ou mesmo as desigualdades sociais não são, por si só, suficientes para explicar o fenômeno da violência e da desordem urbana em situações de momentânea ausência (ou impotência) do Estado, citando, exemplificativamente, por um lado, o comportamento exemplar dos cidadãos norte-americanos residentes em Nova York durante o apagão de 1965, ou dos países asiáticos atingidos pela tsunami de 2004, em contraposição crítica à situação caótica no Iraque (ocupado, libertado e supostamente democratizado) de 2005, ou o permanente clima de pré-guerra civil existente no Rio de Janeiro ou mesmo a degradação social observada nos três estados mais atrasados dos EUA (Mississipi, Louisiana e Alabama) durante a devastação do furacão Katrina em 2005, buscando, por fim, demonstrar onde efetivamente se encontra a parte civilizada da população mundial. (O Globo, 04/09/2005, p. 39)

Destarte, de acordo com essa linha de pensamento, resta forçoso concluir que todos os países que, hoje, podem ser inequivocamente reputados Estados Democráticos de Direito, - ou seja, cumprindo os requisitos quanto à presença dos atributos e características inerentes às democracias materiais substantivas, bem como usufruindo a plenitude do Estado Constitucional, associativo quanto aos paradigmas da legitimidade e da legalidade -, passaram, em algum momento histórico, por algum processo político estrutural de grande envergadura (e de nítido viés revolucionário) que permitiu, em última análise, a institucionalização da verdadeira democracia e do correspondente regime democrático material.

Sob esse prisma analítico, o Reino Unido e a França (em função, respectivamente, da Revolução Gloriosa 1666/89 e da Revolução Francesa 1789/99, que transformaram, em última análise, a concepção estrutural da soberania originariamente teocrática em democrática) seriam, hoje, reconhecidas democracias consolidadas, da mesma forma que os Estados Unidos (em decorrência da Guerra Civil Americana 1861/65), a Alemanha (em função do Nazismo 1933/45), a Itália (em função do Fascismo 1919/43), e a Espanha e Portugal (respectivamente, por consequência dos períodos Franquista 1939/75 e de SALAZAR 1932/74), valendo pontuar que a plenitude do regime democrático alemão, a exemplo de todos os demais casos citados, não foi imediatamente instaurada após o fim do regime nazista em 1945 (muito embora tenha sido consequência direta do nível de conscientização popular auferido através do reconhecimento coletivo das barbáries praticadas, direta ou indiretamente, por integrantes do povo alemão e com uma determinada anuência de todos os demais). Muito pelo contrário, a democracia foi lentamente conquistada e, especialmente, consolidada nos anos posteriores ao pós-guerra, até atingir a situação de relativa plenitude nos anos 1970.

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Não por outra razão, nos chamados países periféricos e em todos os demais Estados que, por razões políticas e históricas, não experimentaram processo semelhante (limitando-se apenas a copiar, - por vontade própria ou por imposição estrangeira -, modelos democráticos previamente estabelecidos), em sinérgica contraposição, a democracia e o regime democrático vigentes têm se traduzido em uma forma de organização política fundada restritivamente não apenas em aparentes liberdades (situação em que a normatividade jurídica não possui plena efetividade), mas, especialmente, em verdadeiros feudos da era contemporânea, em que o populismo assistencial (e o correspondente controle indireto das massas) é a principal tônica governamental (caracterizando o que se convencionou designar por democracias formais ou aparentes).

É o caso de praticamente todos os países da América Latina na atualidade, com ênfase no emblemático exemplo da Venezuela de HUGO CHÁVEZ e de seu sucessor, NICOLÁS MADURO. Segundo longa e detalhada análise realizada por DIOGO SCHELP (Rev. Veja, 14/12/2005, ps. 156 e segs.), antes da era CHÁVEZ, o país era controlado por dois partidos da elite venezuelana que por décadas se restringiram a criar uma estrutura estatal perdulária, ineficiente e, sobretudo, corrupta. Em 1999, eleito através de regras reputadas democráticas, CHÁVEZ assumiu a presidência da República, alterou a Constituição e, com o vertiginoso aumento dos preços internacionais do petróleo, transformou a PDVSA (e os lucros com a venda do petróleo) em uma máquina de comprar apoio político interno (retirando US$ 3,7 bilhões/ano para programas sociais) e internacional (vendendo a preços subsidiados óleo para diversos países latino-americanos), além de estruturar uma milícia armada com aproximadamente 100.000 homens. Neste cenário, - não obstante as estatísticas de 2005 demonstrarem que a classe média encolheu 57%, o número de pobres aumentou 25%, o desemprego cresceu de 11% para 16%, metade das indústrias fechou, os empregos informais aumentaram 45%, a inflação subiu de 11% para 17% ao ano, o investimento estrangeiro declinou pela metade e a dívida pública dobrou -, CHÁVEZ, no mesmo período, contava com o inconteste apoio de metade dos venezuelanos (a parcela mais pobre, cativada através de políticas assistencialistas), além de ter consolidado o seu poder por meio de plebiscitos em que obteve ampla maioria. Nas eleições legislativas de 2005, por exemplo, obteve vitória esmagadora (graças ao boicote das oposições) e, paradoxalmente, apesar de defender a democracia participativa em detrimento da democracia representativa, não se preocupou em explicar a pífia participação de apenas 25% do eleitorado neste pleito. Descobriu-se, também, que CHÁVEZ, através do emprego de máquinas de identificação digital, conseguiu catalogar a orientação político-eleitoral de 12 milhões de eleitores durante o referendo de 2004, criando uma listagem batizada de Maisanta com informações que privilegiam os aliados em detrimento dos adversários em todos os níveis (obtenção de empregos públicos, emissão de passaportes, acesso a auxílios sociais, etc.). Além de tudo isto, foi obtido um controle quase absoluto do Estado venezuelano pelo governo (formalmente) democrático de CHÁVEZ: o Ministério Público é encarregado de processar os adversários sob acusação de traição à pátria; 80% dos magistrados têm contratos temporários (muitos de apenas três meses) que não são renovados caso julguem de forma contrária aos interesses governamentais; os nomes de mais de 20.000 trabalhadores da PDVSA (a estatal petrolífera venezuelana), demitidos depois de uma greve contra CHÁVEZ, estão registrados em uma lista negra, proibidos de trabalhar em qualquer órgão público ou na iniciativa privada (sob pena de represálias fiscais do governo); empresários que se envolvam em atividades políticas de oposição são submetidos a uma devassa fiscal; entre outras incontáveis e semelhantes iniciativas.

Portanto, o uso da pseudodemocracia para destruir a denominada democracia formal, nesse contexto, não é original, como bem salienta DIOGO SCHELP. ADOLF HITLER era líder de uma bancada parlamentar eleita com 33% dos votos quando foi democraticamente escolhido chanceler da Alemanha. Um ano depois, ele acumulou o posto de presidente, deixado vago pela morte do Marechal HINDENBURG, obtendo para isso a comprovada (e inconteste) aprovação dos alemães em plebiscito. Nos anos seguintes, fechou sindicatos, suprimiu a liberdade de imprensa e gradativamente eliminou os demais partidos.

Tanto a Venezuela dos dias atuais como a Alemanha do passado são exemplos clássicos das frágeis estruturas institucionais e do baixo grau de maturidade política inerentes à chamada democracia formal ou aparente (lá existentes), que viabilizaram essa sorte de acontecimentos. Tanto é verdade que o país mais estável da América Latina atual, ou seja, o Chile (onde é impensável uma aventura política chavista), louva-se, curiosamente, de também ter experimentado a ditadura mais longa e rígida do continente (ou seja, o governo PINOCHET, - ou sua interferência direta -, de 1973 a 1997), criando, em alguma medida (ao menos comparativa), parte das pré-condições para o estabelecimento de uma democracia relativamente mais substantiva que suas congêneres latino-americanas.

Ademais, cumpre assinalar, em necessária adição conclusiva, que, paradoxalmente, alguns governantes democraticamente eleitos, no âmbito destes regimes meramente formalistas, foram, durante o transcurso político de suas respectivas existências, afastados por movimentos populares, durante a plena vigência de seus mandatos eletivos, sem qualquer respeito à normatividade constitucional e aos procedimentos legais expressamente previstos no âmbito de seus correspondentes constitucionalismos (v.g. os governos DE LA RUA / Argentina 1999/2001 e GUTIÉRREZ / Equador 2002/05).

Oportuno acrescentar que, por razões ideológicas, também resta impossível (ou, ao menos, improvável) a instauração de autênticos Estados Democráticos de Direito (democracias materiais plenas) em países cuja concepção estrutural de soberania não seja de efetiva orientação democrática (todo poder emana do povo e em seu nome é exercido) e sim teocrática (todo poder emana de Deus e em seu nome é exercido) como é o caso típico dos diversos Estados que abrigam nações muçulmanas das mais variadas e diferentes orientações (xiitas, sunitas, etc.).

Por esse motivo, não foi surpresa que a tentativa de impor ao secular Iraque (curdo, xiita e sunita), - em um tempo extremamente reduzido e sem qualquer fato revolucionário ou de natureza assemelhada -, um autêntico regime democrático, fundado em uma concepção estrutural de soberania completamente diversa (e ininteligível para a cultura milenar iraquiana) da enraizada ideologia teocrática inerente ao mundo muçulmano, se constituiu em um amargo fracasso.

Aliás, lição, lamentavelmente, não aprendida mesmo após o desastroso episódio concernente à anterior tentativa de democratização do Irã (Pérsia) em 1979, realizada através da igualmente desastrosa política de direitos humanos empreendida pelo governo JIMMY CARTER (1977-81), que acabou por permitir, de forma descontrolada, a derrubada do regime do Xá REZA PAHLEVI (1953-79) e sua indesejável (porém, previsível à época) substituição pela teocracia totalitária islâmica dos Aiatolás KHOMEINI (1979-89) e KHAMENEI (a partir de 1989).

Não é por outro motivo que, historicamente (especialmente no período pós-Segunda Guerra Mundial 1939/45), a política norte-americana para o Sul da Ásia e para o Oriente Médio tem se pautado não só pela implantação, mas, sobretudo, pela manutenção (através de sólido apoio político, econômico e militar) de regimes de força pró-ocidentais que permitam não só evitar os riscos inerentes à implantação descontrolada e generalizada do totalitarismo islâmico, mas igualmente manter um relativo controle sobre uma região extremamente importante sob o ponto de vista geopolítico.

Ainda assim, são fontes de permanente preocupação, por parte dos principais estrategistas da comunidade político-militar estadunidense, as constantes bravatas declaradas, particularmente pelo controvertido governo GEORGE W. BUSH (2001-09), quanto à existência de projetos (ou, no mínimo, instruções) para a implantação de regimes democráticos em países que gozam de relativa estabilidade política, como o Egito, a Arábia Saudita e o Paquistão (este último, inclusive, detentor de armas nucleares).

Finalmente, resta consignar, em necessária síntese conclusiva, que por motivos não propriamente ideológicos (uma vez que a concepção estrutural de soberania, na hipótese vertente, também é, a exemplo dos regimes ocidentais, de índole democrática somada ao fato também relevante de que os ideais comunistas clássicos já foram há muito sepultados), mas, ao reverso, de natureza essencialmente pragmático-conjuntural, a implantação (pelo menos a curto e médio prazos) de genuínos Estados Democráticos de Direito em países centrais, ex-protagonistas do período histórico conhecido por Guerra Fria (1947-91), - como a Rússia (antiga União Soviética) e a China -; igualmente se apresenta pouco provável, sendo muito mais plausível, em virtual contraposição, que os mesmos venham a desenvolver inexoráveis formas peculiares de democracia formal (mas que, em essência, são autoritarismos atávicos ou mesmo totalitarismos singulares), intenção esta já incisivamente manifesta por VLADIMIR PUTIN quando expressamente pontuou, em discurso para a Comunidade Internacional, por ocasião do atentado terrorista em Beslam (2004), que a Rússia não se curvará à pressão internacional para copiar modelos democráticos estrangeiros (não adaptáveis à realidade russa), até porque desenvolve solução democrática própria.

Cumpre assinalar que nesses países, não obstante o longo período de totalitarismo radical experimentado, o regime anterior não foi propriamente derrubado (de forma diversa do Nazismo na Alemanha, do Fascismo na Itália, do Franquismo na Espanha, dentre outros exemplos históricos), não permitindo forjar a mesma experiência estruturante e, consequentemente, conquistar os mesmos resultados viabilizados, em última análise, no que concerne à instauração do (supostamente almejado) regime democrático material.

Sobre o autor
Reis Friede

Desembargador Federal, Presidente do Tribunal Regional Federal da 2ª Região (biênio 2019/21), Mestre e Doutor em Direito e Professor Adjunto da Universidade Federal do Estado do Rio de Janeiro (UNIRIO). É autor do livro Teoria do Direito.

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

FRIEDE, Reis. Democracia e regime democrático. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 27, n. 7017, 17 set. 2022. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/100193. Acesso em: 21 nov. 2024.

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