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Justiça e composição de litígios

Agenda 18/09/2022 às 11:25

A Justiça consensual, como forma de solução de conflitos, tem por si o influxo não só do direito positivo, mas também de veneranda tradição, apoiada na sabedoria das gentes.

Sumário. A excessiva demora na prestação jurisdicional equivale a denegação de justiça; pelo que, será digno de louvor todo o esforço para debelar esse grave mal. Entre as mais promissoras medidas propostas figura, inegavelmente, o instituto da conciliação das partes, ou justiça consensual.


1. A solução dos conflitos que surgem e recrudescem nas relações humanas é o primeiro alvo a que os órgãos do Poder Judiciário atiram seus esforços, no elevado intento de prover à paz social[1]. Tão clara e arrazoada é esta preocupação, que o mesmo texto da lei a propõe e encarece. Reza, com efeito, o art. 3º, § 2º, do Código de Processo Civil que “O Estado promoverá, sempre que possível, a solução consensual dos conflitos”[2].

Também na esfera do Direito Penal — com o advento da Lei nº 9.099/95, que instituiu os Juizados Especiais — adquiriu tal prática foros de preceito, que encerra não só a faculdade senão o estímulo para que se componham as partes (cf. arts. 60, 61 e 89).

Presidem à adoção da medida em nosso ordenamento jurídico duas razões de grande peso e alcance, poderosas a descoroçoar as aventuras forenses, a litigância de má-fé e o espírito de emulação: a urgência da prestação jurisdicional rápida e a sorte vária dos pleitos judiciais.

Em verdade, graças à conciliação ou concórdia[3] entre as partes no limiar da ação, fica dispensado o juiz de instaurar a fase de dilação probatória e, pois, de ferir o mérito da causa. O que isso representa de útil e proveitoso escusa dizê-lo, pois bem o sabem quantos um dia já transpuseram, aflitos, os pórticos solenes e perturbadores da Justiça!

Na tela sombria dos problemas com que defronta o Judiciário, há que considerar alguns pontos de reconhecida importância e gravidade. Conforme a opinião comum, que assenta na notoriedade pública, são estas as causas que, para nossa desgraça, obstam a célere e efetiva realização de justiça:

I – O número gigantesco da população brasileira, que, segundo o IBGE (Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística), orça por duzentos e quinze milhões de pessoas, das quais anda a metade em pendências com a Justiça.

II – O quadro geral da magistratura, que conta cerca de 18 mil juízes em atividade. (Mas, atento o número vultoso dos jurisdicionados, o Conselho Nacional de Justiça estima um “deficit” de 20%).

III – O uso (íamos quase a escrever abuso) da via recursal da 2a. Instância e Tribunais Superiores.

2. A forçosa consequência dessa realidade (que antes parecera crise permanente) é a demora demasiada na solução das controvérsias submetidas à Justiça.

No Brasil, a pormos fé inteira na voz da imprensa e nas estatísticas, “uma sentença de primeira instância leva 1.606 dias para sair”[4], mais de quatro anos, portanto!

Discorrendo da matéria num texto célebre, escrevia, há um século, o primeiro de nossos juristas:

“Justiça atrasada não é justiça, senão injustiça qualificada e manifesta. Porque a dilação ilegal nas mãos do julgador contraria o direito escrito das partes e, assim, as lesa no patrimônio, honra e liberdade” (Rui Barbosa, Oração aos Moços, 1a. ed., p. 42).

Ora, problemas e dificuldades, tanto que apareçam, é mister resolvê-los sem tardança, em obséquio à própria condição humana, que nunca se resigna às incertezas e às longas esperas.

Daqui a aura de simpatia e esperança que nobilita a iniciativa de espíritos ardentes, esclarecidos e bem-intencionados, de propugnar o aperfeiçoamento dos serviços judiciais.

Assim, embora se deite à sombra a hipótese de ser acrescentado o número dos juízes em todo o território nacional — à conta da alegada estreiteza financeira —, algumas ações ainda se poderiam empreender para poupar à Justiça imerecido descrédito e prevenir-lhe iminente paralisia funcional pela formidável pletora de serviços:

a)    prestigiar com afinco a Justiça Consensual, ampliando-lhe os casos de incidência;

b)    conferir à 2a. Instância — pois que se trata da derradeira etapa de análise da prova com cognição plena — o caráter de órgão de juízo definitivo sobre a questão de mérito resolvida pela sentença de primeiro grau.

Efeitos notáveis dessa inovação: no próprio Tribunal de Justiça — e não nas Cortes Superiores — receberá o processo judicial o selo da “res judicata”; as partes entrarão logo a cumprir o julgado; a Justiça Criminal expedirá guia de recolhimento do réu a que tiver sido aplicada pena privativa de liberdade, fazendo o Estado que expie o seu crime aquele que infringiu a lei penal. Numa palavra: far-se-á justiça em tempo razoável, com restauração do direito violado.

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3. Na adoção de tais medidas, que importam muitíssimo para a celeridade da Justiça, não poderá haver — é bem se registre com ênfase — preterição, posto que mínima, dos sagrados princípios da ampla defesa e do contraditório, que dominam o processo.

O Judiciário brasileiro, então, lançará de si a nota incômoda, com que justamente o verberou, pelo voto de um de seus membros, o Supremo Tribunal Federal:

“(…) em país nenhum do mundo, depois de observado o duplo grau de jurisdição, a execução de uma condenação fica suspensa aguardando o referendo da Corte Suprema” (HC nº 85.886; relª Minª Ellen Gracie; DJ 28.10.2005).

A Justiça Consensual, como forma de solução de conflitos, tem por si o influxo não só do direito positivo, mas também de veneranda tradição, apoiada na sabedoria das gentes.

Deveras, a nossos pais já ouvíamos dizer que é preferível um mau acordo a uma boa demanda. Tão prudente lhes parecia não deixar o certo pelo duvidoso![5] O móvel que lhes inflamava o espírito e dirigia a vontade exprimiu-o, em lição magistral, o nosso Rui:

“Duvidosa foi sempre a sorte das lides judiciárias, ainda quando manifesta a justiça dos litigantes. Daí a utilidade, reconhecida em todos os tempos, das transações; e por isso a sabedoria da experiência manda muitas vezes preferir a má composição à boa demanda” (apud Roberto Lyra, A Obra de Ruy Barbosa em Criminologia e Direito Criminal, 1952, p. 205).

Em suma, reforma judicial que ponha cobro à franca morosidade nos julgamentos pelo Poder Judiciário (sempre que provocado para dirimir questões) será a mais grata resposta à velha aspiração dos brasileiros de extirpar o mal grave que os desalenta: a falta de rapidez na distribuição de justiça.


Notas

[1] Mote ou legenda eloquente do brasão pontifício de Pio XII (1876-1958): “Opus justitiae pax”. A paz é fruto da justiça.

[2] O § 3º do referido artigo é ainda mais incisivo: “A conciliação, a mediação e outros métodos de solução consensual de conflitos deverão ser estimulados por juízes, advogados, defensores públicos e membros do Ministério Público, inclusive no curso do processo judicial”.

[3] Concórdia: “União dos corações” (Rafael Bluteau, Vocabulário, 1712; v. concórdia).

[4] In O Estado de S.Paulo, 1.9.2022.

[5] A propósito do dilema — litigar ou transigir? — é expressivo o rol dos aforismos e anexins: “Não deixemos o certo pelo duvidoso” (Solano Constâncio, Dicionário da Língua Portuguesa, 1877; v. duvidoso); “Antes uma composição má que uma boa demanda” (Séguier; apud Francisco Fernandes, Dicionário de Sinônimos e Antônimos, 2a. ed.; v. composição); “Vale mais transigir que litigar” (Séguier; apud Francisco Fernandes; Dicionário de Verbos e Regimes, 39a. ed.; v. transigir); “Mais vale um toma que dois te darei” (R. Magalhães Júnior, Dicionário de Provérbios e Curiosidades, 1960, p. 162); “Minima de malis” (Cicero, De Officiis, 3, 29, 15) – Dos males, o menor; Quando os males são inevitáveis, manda a prudência escolher o menor (Fedro, Fábulas, I, 2); Antes uma ruim avença que uma boa sentença; É melhor transigir do que contender; Vale mais um pássaro na mão do que dois voando; Vale mais um tico-tico no prato que um jacu no mato.

Sobre o autor
Carlos Biasotti

Desembargador aposentado do TJSP e ex-presidente da Acrimesp

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

BIASOTTI, Carlos. Justiça e composição de litígios. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 27, n. 7018, 18 set. 2022. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/100214. Acesso em: 21 nov. 2024.

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