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SOS Cárcere: uma pequena história da atividade policial militar

Agenda 23/12/1998 às 00:00

Dia 20 de Janeiro de 1998 policiais militares de serviço em uma viatura PM avistam um veículo de uma marca X transitando com uma pessoa no seu interior. Talvez por tirocínio resolvem realizar a abordagem para averiguações...abordagem realizada : 40 gramas de cocaína , divididos em papelotes, encontrados debaixo do banco do condutor do veículo. Voz de prisão dada ao condutor (19 anos), o qual é conduzido de imediato para a delegacia de polícia do local.

O condutor, pessoa aparentemente idônea, jura inocência, pois segundo ele transitava com o carro do seu primo, e nunca imaginou transportar drogas . Precisava do carro para realizar uma prova em concurso de determinado emprego público, por isso tomou-o de empréstimo, diz ele em prantos.

Na delegacia lavra-se o Auto de Prisão em Flagrante, formalizando assim, a prisão do indivíduo devidamente efetuada.

Colocado na cela da delegacia...capacidade para 20 presos, mas com um efetivo real de 107 . Doravante o nosso jovem está submetido às regras do cárcere. Como primeira medida interna ele apanha muito, ou melhor, é espancado incessantemente, mas não pela polícia – é fisicamente agredido pelos companheiros de cela, pois lá caro leitor, vige a lei do mais forte , a lei da selva. Com certeza após algumas horas de "diversão" e com algumas costelas trincadas passa-se a segunda fase. Agora ele é violentado sexualmente das maneiras mais perversas que nós "humanos" podemos imaginar, sendo freqüentemente realizado por diversos agressores de uma só vez. Algo animalesco, indelével. Há um pequeno detalhe que vale lembrar: cerca de 30% dos encarcerados em nosso país estão contaminados com o vírus HIV, além disso mais de 70% destes mesmos presos são tuberculosos.

Como há a hedionda lei de crimes hediondos (lei 8072/90), os presos não possuem o direito de responder o processo em liberdade (art.35 lei 6368/76, no caso de tráfico de entorpecentes), salvo alguns pouquíssimos juizes que tangenciam a lei, apoiados no princípio constitucional da presunção de inocência. São esses magistrados raras exceções, sem dúvida alguma.

Pelo que se descobriu o coitado do rapaz realmente não tinha vínculo algum com a droga encontrada... mas agora é tarde. Já está ele ( seja culpado ou inocente) condenado à morte, ou pelo menos muito próximo a ela, ou no mínimo, eternamente debilitado.



A realidade Prisional Brasileira em números

Hoje nosso país tem aproximadamente 170.000 presos encarcerados, segundo o censo penitenciário de 1997, para um capacidade de 80.000 vagas, resultando desta maneira, num déficit de 90.000 vagas. Calcula-se que exista 250.000 mandados de prisão expedidos e não cumpridos, mas se descontarmos os indivíduos que já morreram, as ordens judiciais em duplicidade e os atingidos pela extinção da punibilidade, poderemos chegar a um número aproximado de 200.000 mandados que não tiveram seu cumprimento efetuado.

Lá dentro, não rara às vezes, os presos se amarram às grades com lençóis, originando a denominação "presos-morcegos" ou "preso-aéreos", devido a falta de espaço no chão da unidade prisional. Outras vezes tira-se no palitinho a sorte de quem irá ser morto pelos próprios companheiros, pois a lei de física é muito clara, "dois corpos não ocupam o mesmo lugar no espaço". Em alguns lugares, como v.g. Campinas/SP um preso ocupava 18 cm2 em cadeia mais que superlotada ...já imaginaram? Uns outros se revezam de pé enquanto alguns dormem agachados ou encostados nas paredes do banheiro.



A inconsciência coletiva

Rebeliões aos montes... fugas em massa....chacinas internas e há aqueles que pregam ser o sistema prisional a capacidade-dever que o Estado tem de trazer ao seu seio os infratores, ressocializá-los e devolvê-los para esta mesma sociedade, verdadeiramente arrependidos dos atos que cometeram e prontos para uma nova vida de bons cidadãos. HIPOCRISIA PURA!!

Há muitos , e não duvidem disso, que fundamentam suas respostas do atual sistema prisional informando não ser o problema seu.. "quem mandou roubar, matar, estuprar, enfim, errar...por mim pode é morrer!" Porém, a partir do momento que um ente querido é submetido ao infortúnio do cárcere e sofre os tratamentos carcerários já citados... Ah!! Aí não.!. .mudam de opinião de maneira vergonhosa e telefonam para todos os políticos conhecidos no escopo constante para que se mude esta situação caótica e desumana. Tarde demais, pois a falta de conscientização prévia deste grave problema social tem seu preço individual também.

A necessária conscientização tem que ocorrer, nem que seja por puro egoísmo; palavras estas do ínclito Dr. Luis Flávio Borges D’Urso, durante o I Congresso de Direito Penal no Mercosul realizado em Blumenau/SC no mês de agosto do corrente ano.



A PM e sua vinculação ao problema prisional

Mas até quando? Quem se importa? E eu respondo: nós policiais militares nos importamos, primeiro por questão de sensibilidade humana e em segundo lugar porque queiramos ou não, refletirá diretamente em nossa atividade constitucional de polícia ostensiva.

Ora, hoje nós temos uma taxa de reincidência daqueles que já passaram pelo sistema prisional de 85%. Em vez de ressocializarmos, estamos profissionalizando criminosos, ou seja, transformando os "pouco-desajustados" em "desajustados por completo". Darei um pequeno exemplo: Por um motivo qualquer "A" trai a confiança do juízo como depositário fiel, portanto, é cabível a prisão civil. Os poucos dias que lá passará o depositário infiel já serão o suficiente para nós o chamarmos de "traficante infiel". Percebem? Estamos produzindo contra nós mesmos, contra nossa família, enfim, em prejuízo da nossa sociedade.

Algo está errado – isto é um consenso.



ALTERNATIVAS

Há soluções?

Sim, mas mister é a vontade política, sem aqui querer atingir "B" ou "C". Simplesmente refiro-me a vontade política em sentido genérico.

Segundo estimativa 500 novas vagas prisionais custariam ao Estado 15 milhões de reais... imaginem para 90.000 vagas que faltam. Isto só para equilibrar a situação atual , não nos esquecendo que anualmente soma-se ao quadro carcerário de nosso país mais de 10.000 presos. Então quais seriam as possíveis saídas?

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1. As penas alternativas são sem dúvida uma das grandes saídas, desde que o encarceramento seja restrito aos crimes graves, e não como ocorre hoje, ou seja, a banalização do direito penal. Não é o quantum da pena que prevenirá o crime, nem tampouco sua hediondez , mas sim a certeza da aplicabilidade de sanção estatal. Hoje há a ideologia que deve-se prender, prender, prender. Aqui ou acolá, pensam os formadores de opinião desta maneira na sua grande maioria , contagiando uma parcela significativa da sociedade muitas vezes pouco informada e levada por eloqüentes discursos de cunho interesseiro. Damásio de Jesus em entrevista concedida ao "Jornal do Criminalista" traz o importante dado que há mais de 20 anos a reincidência entre os egressos do sistema prisional espanhol atinge 60%, porém, naqueles que cumpriram penas alternativas a reincidência não supera 25% Notam esta diferença? Ora, ser apenado não significa ser preso. A prisão, concordo, é necessária, porém, não como vem sendo aplicada. Hoje, precisamos da ampliação das possibilidades de penas alternativas e não há mais tempo para esperar.

2. A conjugação de esforços no sistema prisional com a iniciativa privada , a exemplo do que ocorre no sistema prisional Francês, onde num sistema misto (Estado e iniciativa privada) faz-se a administração prisional. Neste modelo que já vem sendo adotado há uma década, a iniciativa privada edifica a unidade prisional, bem como administra internamente os serviços (o administrador particular ficará responsável pela comida, pelas roupas, pela limpeza, pela chamada hotelaria, enfim, pelos serviços indispensáveis numa unidade prisional).

As atividades de Polícia e segurança continuam com o Estado. Assim, os presos trabalhariam e os benefícios financeiros deste trabalho reverteriam para eles próprios, sem qualquer participação da iniciativa privada no lucro. O lucro percebido pela empresa seria uma taxa paga pelo Estado conforme o número de presos, economizando para os cofres públicos algo em torno de 50%. Desta maneira os presos produziriam podendo ressarcir as vítimas, o Estado, ajudar sua família, muitas vezes desamparada . É sem dúvida o trabalhoa melhor forma de ressocialização, aliado, claro, a educação.

Dizem alguns que idéias alienígenas não servem para o nosso país, mas pergunto: Por que não tentar? Iniciemos com um teste, um ou dois projetos pilotos. Não podemos é desistir sem tentar modificar esse terrível quadro.

1. Convênios com Universidades de Direito, para que se realize o acompanhamento por professores e alunos de processos de réus presos , ou seja, um intercâmbio de interesses, permanecendo de um lado o aprendizado estudantil devidamente acompanhado e de outro lado a urgente necessidade de não ocorrer o retardamento da progressão de regime prisional, ou ainda, não ser dada a devida liberdade ao preso.

2. A constituição de conselhos municipais , a exemplo de algumas cidades brasileiras, bem como a instituição de patronatos (estes supervisionados pelos conselhos), dimanando numa verdadeira integração comunidade local x comunidade carcerária, na busca de soluções locais imediatas.

3. Incentivos tributários às empresas que contribuírem com materiais e equipamentos que possam auxiliar e melhorar as condições carcerárias existentes, bem como o processo carcerário , seja no trabalho ao preso, no estudo ao preso, ou ainda, no lazer ao preso.

Muitas outras soluções existem, porém em sua grande maioria a longo prazo. Para finalizar suplico à todos os policiais militares que interiorizem o problema carcerário, não obrigatoriamente concordando com a opinião ora formulada, mas para que juntos busquemos alternativas. Estamos, desta maneira, seguindo a lei de nossa consciência ética, bem como a premissa constitucional "Segurança Pública dever do Estado, direito e responsabilidade de todos (grifei)"

Essa é a minha opinião.



BIBLIOGRAFIA

ABREU, Alexandre Arone.. Revista Direito Militar n. 05/maio/1997.
SARUBBI, Ary & REZENDE, Afonso Celso F. Sistema Prisional na Europa: modelo para o Brasil?. São Paulo: Peritas Editora, 1997.
Censo Penitenciário de 1997
Palestra do Prof. Luiz Flávio Borges D’Urso (Blumenau/SC/agosto/98)
Constituição Federal
Folha de S. Paulo, caderno Cotidiano
Revista Consulex n. 15
Sobre o autor
Rodrigo Kurth Quadro

tenente da Polícia Militar de Santa Catarina, em Rio do Sul (SC)

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

QUADRO, Rodrigo Kurth. SOS Cárcere: uma pequena história da atividade policial militar. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 3, n. 27, 23 dez. 1998. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/1014. Acesso em: 24 nov. 2024.

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