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Direitos humanos, neoconstitucionalismo e instituto da transação penal

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Agenda 15/07/2007 às 00:00

CAPÍTULO 3

INSTITUTO DA TRANSAÇÃO PENAL.

Cabe aqui contextualizar o instituto e a Lei 9.099/95, que o introduziu no ordenamento jurídico pátrio.

O Constituinte de 1987, além de respeitar a proporcionalidade na atribuição de penas e forma de seu cumprimento, com relação à gravidade da infração penal cometida, considerou, ainda que inadvertidamente, a falência da pena privativa de liberdade, notadamente com relação aos crimes de menor danosidade social, o que foi percebido desde a metade do século XIX, na Europa. Tal consideração consubstanciou-se na forma como foi previsto o tratamento a ser atribuído aos crimes mais graves (crimes hediondos) e aos menos graves (ou de menor potencial ofensivo), do direito penal brasileiro.

Esse entendimento é sufragado por Michel Foucault (2004, p. 87),

Encontrar para um crime o castigo que convém é encontrar a desvantagem cuja idéia seja tal que torne definitivamente sem atração a idéia de um delito. É uma arte das energias que se combatem, arte das imagens que se associam, fabricação de ligações estáveis que desafiem o tempo. Importa constituir pares de representação de valores opostos, instaurar diferenças quantitativas entre as forças em questão, estabelecer um jogo de sinais-obstáculos que possam submeter o movimento das forças a uma relação de poder.

Os crimes hediondos foram disciplinados de forma bastante rígida pelo legislador, através da Lei 8.072/90, que prevê a estes a insuscetibilidade de anistia, graça, indulto, fiança e liberdade provisória (vai-se notando o agravamento de sua disciplina, com relação ao inciso XLIII, art. 5.º, da Carta Constitucional), além de determinar o regime integralmente fechado de cumprimento de pena (de constitucionalidade afirmada pelo STF, ainda que estranhamente) e o aumento do prazo da prisão temporária, elevado para 30 (trinta), dias prorrogáveis por mais trinta nos casos previstos.

Tratamento tão agravado acarretou questionamentos por parte da doutrina nacional. Alberto Silva Franco apud Thaís Vani Bemfica (1998, p. 07) bem sintetiza a questão:

O que teria conduzido o legislador constituinte a formular o n. º XLIII do art. 5. º da CF? O que estaria por detrás do posicionamento adotado? Nos últimos anos, a criminalidade violenta aumentou do ponto de vista estatístico: o dano econômico cresceu sobremaneira, atingindo seguimentos sociais que até então estavam livres de ataques criminosos; atos de terrorismo político e mesmo de terrorismo gratuito abalaram diversos países do mundo; o tráfico ilícito de entorpecentes e drogas afins assumiu um gigantismo incomum; a tortura passou a ser encarada como uma postura correta dos órgãos formais de controle social. A partir desse quadro, os meios de comunicação de massa começaram a atuar por interesses políticos subalternos, de forma a exagerar a situação real, formando a idéia de que seria mister, para demove-la, uma luta sem quartel contra determinada forma de criminalidade ou determinados tipos de delinqüentes, mesmo que tal luta viesse a significar a perda de tradicionais garantias do próprio Direito Penal e do Direito Processual Penal.

Isso sem contar o fato de que a vingança, apesar de ter sido há muito retirada das mãos dos particulares (hoje se vivencia a fase da Vingança Pública), não saiu do imaginário popular. Pairam intangíveis no inconsciente dos povos os espetáculos sangrentos das arenas romanas, a punição exemplar, a lei de talião.

Vítimas desse sentimento inferior da humanidade foram, por exemplo, os representantes do cristianismo nascente, que eram jogados às feras, por desrespeitarem a Lei Mosaica. Diante disso, deve-se atentar para o fato de que, como afirma Loïc Wacquant, defender uma intervenção penal extremada é garantia de muitos votos aos políticos (o que faz com que muitos destes passem a partilhar, com intenções eleitorais – ou eleitoreiras – desse ponto de vista). Vale ressaltar que, no Brasil, o fenômeno ainda se encontra bastante tímido (ou muito bem disfarçado).

Os crimes considerados como de menor potencial ofensivo encontram-se no outro extremo do Direito Penal pátrio. Vladimir Aras (2002), ao tratar do art. 98, I, da CRFB, que prevê a criação dos Juizados Especiais Criminais no âmbito da Justiça Estadual, aponta que:

O objetivo não declarado, mas implícito, da norma constitucional, foi o de propiciar uma justiça criminal mais ágil e mais adequada à conjuntura social em um Estado democrático, simplificando procedimentos e impedindo a estigmatização do acusado pelo processo penal, que tem em si as suas próprias agruras.

Esse ponto será analisado no tópico que se segue.

3.1. ANÁLISE DO ART. 76 DA LEI 9.099/95.

Prega o art. 76 da Lei 9.099/95, in verbis:

Art. 76. Havendo representação ou tratando-se de crime de ação penal pública incondicionada, não sendo caso de arquivamento, o Ministério Público poderá propor a aplicação imediata de pena restritiva de direitos ou multa, a ser especificada na proposta.

§ 1. º Nas hipóteses de ser a pena de multa a única aplicável, o juiz poderá reduzi-la até a metade.

§ 2. º Não se admitirá a proposta se ficar comprovado:

I – ter sido o autor da infração condenado, pela prática de crime, à pena privativa de liberdade, por sentença definitiva;

II – ter sido o agente beneficiado anteriormente, no prazo de 5 (cinco) anos pela aplicação da pena restritiva ou multa, nos termos deste artigo;

III – não indicarem os antecedentes, a conduta social e a personalidade do agente, bem como os motivos e as circunstâncias, ser necessária e suficiente a adoção da medida.

§ 3. º Aceita a proposta pelo autor da infração e seu defensor, será submetida à apreciação do juiz.

§ 4. º Acolhendo a proposta do Ministério Público aceita pelo autor da infração, o juiz aplicará a pena restritiva de direitos ou multa, que não importará em reincidência, sendo registrada apenas para impedir novamente o mesmo benefício no prazo de 5 (cinco) anos.

§ 5. º Da sentença prevista no parágrafo anterior caberá a apelação referida no art. 82 desta Lei.

§ 6. º A imposição da sanção de que trata o § 4. º deste artigo não constará de certidão de antecedentes criminais, salvo para os fins previstos no mesmo dispositivo, e não terá efeitos civis, cabendo aos interessados propor ação cabível no juízo cível.

Um comentário inicial deve tratar da alteração sofrida pelo modelo de política criminal adotado em nosso País, que, desde a edição da Lei dos Crimes Hediondos (8.072/90) possui como notas marcantes: "aumento das penas, corte de direitos e garantias fundamentais, tipificações novas, sanções desproporcionais e endurecimento da execução penal" (GRINOVER et al., 1999, p. 41).

Nilo Batista (2004, p. 34) descreve, de forma singular, o fenômeno:

Do incessante processo de mudança social, dos resultados que apresentem novas ou antigas propostas do direito penal, das revelações empíricas propiciadas pelo desempenho das instituições que integram o sistema penal, dos avanços e descobertas da criminologia, surgem princípios e recomendações para a reforma ou a transformação da legislação criminal e dos órgãos encarregados de sua aplicação. A esse conjunto de princípios e recomendações denomina-se política criminal.

De um paradigma cada vez mais ditatorial e repressor, fundado num direito penal máximo e tendo o processo penal como mero instrumento de realização ou efetivação desse direito material, passou-se a projetar, com base na Carta Política de 1988 (art. 98, inciso I e parágrafo único, com relação aos Juizados Especiais no âmbito da Justiça Federal), um microssistema para a apuração e julgamento dos crimes considerados como de menor potencial ofensivo. Tomando-se por base supramencionado dispositivo constitucional, instituiu-se, por meio da Lei 9.099/95, os Juizados Especiais Criminais, com um rito próprio, principiologia específica (oralidade, informalidade, celeridade e busca acentuada da reparação dos danos materiais e morais sofridos pela vítima) e com instrumentos particulares de solução desta espécie de lide penal, adequado também à aplicação de suas penas, que, com base no princípio da proporcionalidade, devem ser de curta duração [01]. Ademais, foram estabelecidos mecanismos com o propósito de se evitar a reincidência e de fazer com que a aplicação de multicitadas penas, sempre que possível, não tocasse a esfera de liberdade dos indivíduos (art. 62, in fine, da Lei 9.099/95).

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Claus Roxin (2002, p. 20) confirma a adequação desta opção do legislador pátrio:

...fica claro que o caminho correto só pode ser deixar as decisões valorativas político-criminais introduzirem-se no sistema do direito penal, de tal forma que a fundamentação legal, a clareza e previsibilidade, as interações harmônicas e as conseqüências detalhadas deste sistema não fiquem a dever nada à versão formal-positivista de proveniência lisztiana. Submissão ao direito e adequação a fins político-criminais (Kriminalpolitische Zweckmäβigkeit) não podem contradizer-se, mas devem ser unidas numa síntese, da mesma forma que Estado de Direito e Estado Social não são opostos inconciliáveis, mas compõem uma unidade dialética: uma ordem jurídica sem justiça social não é um Estado de Direito material, e tampouco pode utilizar-se da denominação Estado Social um Estado planejador e providencialista que não acolha as garantias de liberdade do Estado de Direito.

Nesse sentido, Löic Wacquant (2003, p. 56) analisa a restrição à utilização das penas privativas de liberdade:

E vem a historiografia revisionista da questão penal anunciar o declínio irreversível da prisão: assim como ela tinha um lugar central no dispositivo disciplinar do capitalismo industrial, afirma-se que está destinada a desempenhar um papel menor nas sociedades avançadas nas quais se criam e se desenvolvem formas de controle social mais sutis e difusas ao mesmo tempo.

E ao comentar sobre o sistema carcerário da França, acaba por justificar esta opção (2003, p. 154), com singular propriedade:

...Finge-se descobrir, para logo se escandalizar, que as prisões da França não são "dignas da pátria dos Direitos do Homem", embora, em virtude justamente da lei, a instituição penitenciária funcione à margem do direito, na ausência de qualquer controle democrático, na arbitrariedade administrativa e na indiferença geral (penso no despotismo burocrático que é o pretório, o "tribunal interno" da prisão onde a administração joga com vidas humanas sem controle nem recursos, tendo como única preocupação a manutenção da ordem interior). A prisão, que supostamente deveria fazer respeitar a lei, é de fato, por sua própria organização, uma instituição fora-da-lei. Devendo dar remédio à insegurança e à precariedade, ela não faz senão concentrá-las e intensificá-las, mas na medida que as torna invisíveis, nada mais lhe é exigido.

Feitas estas observações introdutórias, deve-se passar à análise de alguns de seus pontos, a ser iniciada pelo fragmento "não sendo caso de arquivamento", constante do caput do dispositivo em exame.

É cediço que o Ministério Público, como dominus litis, é o órgão imbuído constitucionalmente da função de romper a inércia da jurisdição penal, o que se verifica através da denúncia – a petição inicial do processo penal no caso de crimes de ação penal pública condicionada ou incondicionada. Contudo, a denúncia só deve ser procedida nos casos em que se apure a prova da existência do delito e indícios suficientes de sua autoria. Não se verificando os requisitos aventados, por óbvias razões, não deverá proceder-se à proposta de transação penal.

No que tange ao sujeito passivo da proposta, sua posição é sui generis. Não se trata de denunciado, acusado, réu, suspeito, investigado ou indiciado (o que demandaria inquérito policial). A este o dispositivo em apreço nomeia "autor do fato".

Questão interessante surge com relação à natureza jurídica da sentença que aplica a pena restritiva de direitos ou pecuniária. Trata-se a mesma de uma sentença meramente homologatória ou sentença condenatória? A doutrina nacional não é unânime ao tratar do assunto, entretanto, duas correntes predominam: Tem-se, com Pêcego (2000) que "a primeira entende que não é condenatória a sentença, sendo simplesmente homologatória da transação penal, a segunda que é homologatória de natureza condenatória ou condenatória imprópria, por aplicar a pena, mas não os seus efeitos" [02].

Outro ponto de relevo é o atinente ao descumprimento da pena imposta. Com relação à pena de multa, a questão é de fácil solução: A Lei 9.714/98 considera a pena de multa descumprida como dívida de valor, devendo ser a mesma executada com base na Lei 6.830/80 (Lei de Execuções Fiscais). Já no caso específico do descumprimento de penas restritivas de direito aplicadas através de transação penal, a questão se torna tormentosa, dada a previsão expressa, constante tanto do Código Penal pátrio quanto da Lei de Execução Penal (Lei n.º 7.210/84), no sentido de dever a mesma ser convertida em pena privativa de liberdade. Em julgamento recente, o Supremo Tribunal Federal se pronunciou sobre o assunto [03]:

EMENTA: PENAL. PROCESSUAL PENAL. HABEAS CORPUS. JUIZADO ESPECIAL. TRANSAÇÃO PENAL DESCUMPRIDA. CONVERSÃO DA PENA RESTRITIVA DE DIREITOS EM PRIVATIVA DE LIBERDADE. ILEGALIDADE. Lei 9.099/95, art. 76, I – A conversão da pena restritiva de direitos, objeto da transação penal, em pena privativa de liberdade ofende aos princípios do devido processo legal, do contraditório e da ampla defesa, conforme jurisprudência do Supremo Tribunal Federal. II. – H.C. deferido.

Vislumbra-se, pela tomada de posição do STF, que a necessidade de respeitar-se os princípios insculpidos no art. 5. º da CRFB está se evidenciando, ainda que de forma oblíqua. Este assunto será objeto de reflexão no tópico seguinte.

3.2. FILTRAGEM CONSTITUCIONAL DO INSTITUTO DA TRANSAÇÃO PENAL.

Como dito alhures, apesar de não haver consenso doutrinário sobre o assunto, o bom senso faz com que se considere que uma sentença que aplica "pena restritiva de direitos ou multa" possua natureza jurídica de condenatória, apesar de que com características próprias, como foi revelado (daí o acerto da corrente que a considera como um gênero peculiar, o das denominadas "condenatórias impróprias").

Partindo-se desse pressuposto, surgem alguns problemas de ordem prática. Ainda que não conclua da forma que se intenta no presente trabalho, Geraldo Prado (2005, p. 216), ao tratar do tema, elenca uma importante lição:

A sentença que impõe a pena, ainda que fruto de acordo entre as partes traz algo mais, além do simples reconhecimento da existência do crime ou da contravenção.

Carrega em seu bojo a autorização para que se exija do suposto autor do fato, coativamente, determinada prestação.

Mas como um instituto trazido por uma legislação infraconstitucional pode impor ao suposto autor do fato a realização coativa de determinada prestação através de uma cognição sumária, sem qualquer dilação probatória, quando a Carta Magna impõe que "ninguém será considerado culpado até o trânsito em julgado de sentença penal condenatória" (art. 5. º, inciso LVII) e que tal decisão penal condenatória deverá, necessariamente, ser atingida através dos princípios do contraditório e ampla defesa, ao proclamar expressamente que "aos litigantes, em processo judicial ou administrativo, e aos acusados em geral serão assegurados o contraditório e ampla defesa, com os meios e recursos a ela inerentes" (art. 5. º, LV)? É de clareza meridiana que tal instituto está em dissonância com a Norma das normas.

Forçoso consignar aqui a lição sempre lapidar de Norberto Bobbio (1999, p. 46):

Em cada grau normativo encontraremos normas de conduta e normas de estrutura, isto é, normas dirigidas diretamente a regular a produção de outras normas. Comecemos pela Constituição. Numa Constituição, como a italiana, há normas que atribuem diretamente direitos e deveres aos cidadãos, como as eu dizem respeito aos direitos de liberdade; mas existem outras normas que regulam o processo através do qual o Parlamento pode funcionar para exercer o Poder Legislativo, e, portanto, não estabelecem nada a respeito das pessoas, limitando-se a estabelecer a maneira pela qual outras normas dirigidas às pessoas poderão ser emanadas.

E continua, linhas abaixo:

Basta-nos ter chamado a atenção sobre esta categoria de normas para a produção de outras normas: é a presença e a freqüência dessas normas que constituem a complexidade do ordenamento jurídico; e somente o estudo do ordenamento jurídico nos faz entender a natureza e a importância dessas normas.

E, segundo Tércio Sampaio Ferraz Júnior (2002, p. 49), "Normas jurídicas são decisões. Através delas, garantimos que certas decisões serão tomadas. Elas estabelecem assim controles, isto é, pré-decisões, cuja função é determinar outras decisões".

Pode-se considerar que princípios como o do devido processo legal, do qual são corolários os do contraditório e o da ampla defesa, constituem, além de direitos fundamentais, "normas para a produção de outras normas". Isso ocorre, pois o princípio do contraditório busca garantir a participação do acusado no processo, o que realiza a democracia em sua plenitude (já que esta pressupõe a participação dos indivíduos nas decisões de todos os Poderes) e o da ampla defesa visa garantir a efetividade de referida participação, evitando que a mesma ocorra apenas "formalmente".

E a ordem jurídica originada a partir da Constituição de 1988, democrática em sua essência, no dizer de Eugênio Pacelli de Oliveira (2005, p. 08),

...passou a exigir que o processo não fosse mais conduzido, prioritariamente, como mero veículo de aplicação da lei penal, mas além e mais do que isso, que se transformasse em um instrumento de garantia do indivíduo em face do Estado.

Reforçando esta visão, Carvalho et alii (2002, p. 19) bem ilustram o ajuste da teoria do Garantismo Penal à opção adotada pela Constituição de 1988. De acordo com os autores:

A teoria do garantismo penal, antes da mais nada, propõe-se a estabelecer critérios de racionalidade e civilidade à intervenção penal, deslegitimando qualquer modelo de controle social maniqueísta que coloca a "defesa social" acima dos direitos e garantias individuais. Percebido desta forma, o modelo garantista permite a criação de um instrumental prático-teórico idôneo à tutela dos direitos contra a irracionalidade dos poderes, sejam públicos ou privados.

Os direitos fundamentais adquirem, pois, status de intangibilidade, estabelecendo o que Elias Diaz e Ferrajoli denominam de esfera do não-decidível, núcleo sobre o qual sequer a totalidade pode decidir. Em realidade, conforma uma esfera do inegociável, cujo sacrifício não pode ser legitimado sequer sob a justificativa da manutenção do "bem comum".

O já citado Prado (2005, p. 217) aduz, em sua abordagem, um sentido que se amolda perfeitamente ao do presente estudo, quando questiona o pretenso "bem comum" atingido através do instituto da transação penal:

Mais ainda, na mesma linha e levando em conta o fundamento da legitimidade democrática do exercício da função jurisdicional, cabe também indagar com Ferrajoli como é possível conceber o nexo entre crime e sanção a partir de um comportamento processual do acusado e não do valor de verdade sobre a existência da infração penal e a responsabilidade de seu autor, demonstrado ao longo do processo, em contraditório.

Uma simples constatação de ordem pragmática aponta o perigo de desprezar-se os direitos fundamentais, como ocasiona a aplicação do instituto da transação penal: É que muitos inocentes, apesar de sua condição, ao sentirem o peso de uma possível condenação penal, ainda que esta se configure numa possibilidade remota, a ameaçar o bom conceito que detêm no campo social e acenar com prejuízos muitas vezes irreparáveis no campo profissional (daí a percepção de seu cunho dessocializador), preferem seguir o caminho aberto pela transação penal, apesar da imposição da sanção, que é imediata e não deixa qualquer vestígio. Esta é, como consideram alguns que não captam a amplitude da violação aos direitos humanos, a principal imperfeição do sistema.

Ocorre, muito embora, que, com a adoção do princípio da presunção de inocência e, conseguintemente, com a nova formatação dada ao sistema penal, a Constituição declarou expressamente preferir a absolvição de vários culpados à condenação de um só inocente.

Tal posicionamento se originou, dentre outros diplomas legais, da dicção do art. 8.º do Pacto de São José da Costa Rica, de 1969, promulgado em nosso País através do Decreto 678, de 06 de novembro de 1992. Apesar de longo, referido dispositivo merece ser colacionado quese que na sua íntegra, pela importância histórica que carrega. Assim, in verbis:

Artigo 8

Garantias judiciais

1. Toda pessoa tem direito a ser ouvida, com as devidas garantias e dentro de um prazo razoável, por um juiz ou tribunal competente, independente e imparcial, estabelecido anteriormente por lei, na apuração de qualquer acusação penal formulada contra ela, ou para que se determinem seus direitos ou obrigações de natureza civil, trabalhista, fiscal ou de qualquer outra natureza.

2. Toda pessoa acusada de delito tem direito a que se presuma sua inocência, enquanto não se comprove legalmente sua culpa. Durante o processo, toda pessoa tem direito, em plena igualdade, às seguintes garantias mínimas:

a)direito do acusado de ser assistido gratuitamente por tradutor ou intérprete, se não compreender ou não falar o idioma do juízo ou tribunal;

b)comunicação prévia e pormenorizada ao acusado da acusação formulada;

c)concessão ao acusado do tempo e dos meios adequados para a preparação de sua defesa;

d)direito do acusado de defender-se pessoalmente ou ser assistido por um defensor de sua escolha e de comunicar-se, livremente e em particular, com seu defensor;

e)direito irrenunciável de ser assistido por um defensor proporcionado pelo Estado, remunerado ou não, segundo a legislação interna, se o acusado não se defender ele próprio nem nomear defensor dentro do prazo estabelecido pela lei;

f)direito de defesa de inquirir as testemunhas presentes no tribunal e de obter o comparecimento, como testemunhas ou peritos, de outras pessoas que possam lançar luz sobre os fatos;

g)direito de não ser obrigado a depor contra si mesma, nem a declarar-se culpada; e

h)direito de recorrer da sentença para juiz ou tribunal superior. ...

No cotejo entre o Pacto de São José da Costa Rica e o instituto da transação penal, criado no âmbito do direito interno, indagação interessante é aventada por Comparato (2001, p. 59):

Pergunta-se: No terreno dos chamados direitos fundamentais, isto é, os direitos humanos reconhecidos expressamente pela autoridade política, existe uma hierarquia normativa? O direito internacional prevalece sobre o direito interno, ou trata-se de duas ordens jurídicas paralelas? Nesta última hipótese, como resolver os eventuais conflitos normativos entre o direito internacional e o direito interno?

Sem entrar na tradicional querela doutrinária entre monistas e dualistas, a esse respeito, convém deixar aqui assentado que a tendência predominante, hoje, é no sentido de se considerar que s normas internacionais de direitos humanos, pelo fato de exprimirem de certa forma a consciência ética universal, estão acima do ordenamento jurídico de cada Estado. Em várias Constituições posteriores à 2.ª Guerra Mundial, aliás, já se inseriram normas que declaram de nível constitucional os direitos humanos reconhecidos na esfera internacional. Seja como for, vai-se firmando a tese de que, na hipótese de conflito entre regras internacionais e internas, em matéria de direitos humanos, há de prevalecer sempre a regra mais favorável ao sujeito de direito, pois a proteção da dignidade da pessoa humana é a finalidade última e a razão de ser de todo o sistema jurídico.

O fragmento acima exposto só confirma a tese defendida no presente trabalho, de que a proteção aos direitos fundamentais (direitos humanos positivados) merece ser defendida da forma mais categórica possível, pelo simples fato de que referidos direitos não surgiram de maneira despropositada.

Muito pelo contrário. Os direitos humanos foram a forma encontrada pelos homens (ou por determinada categoria de homens) para que, estabelecendo enunciados universais, pudessem efetivamente se proteger das reiteradas violações à sua dignidade já perpetradas por seus pares, representantes do Estado ou, no caso da Inquisição, "pelos representantes de Deus na Terra".

Daí a impossibilidade de se afirmar, como muitos, que a forma como a Lei 9.099/95 disciplinou a aplicação da transação penal "constitui o devido processo legal exigido pela Constituição" (PÊCEGO, 2000). Definitivamente não constitui.

Sobre o autor
André Luiz Fernandes Fellet

advogado, especialista em Direito Público pelo Curso Praetorium, especialista em Ciências Penais pela Universidade Federal de Juiz de Fora, assessor da Procuradoria Geral do Município de Juiz de Fora (MG)

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

FELLET, André Luiz Fernandes. Direitos humanos, neoconstitucionalismo e instituto da transação penal. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 12, n. 1474, 15 jul. 2007. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/10150. Acesso em: 25 nov. 2024.

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