5. O MITO DA VERDADE REAL
Embora princípios como o da imparcialidade do juiz ou o acusatório não venham expressos no Texto Constitucional, nenhum intérprete sério [31] arriscar-se-ia a afirmar que eles não são mera derivação da cláusula do devido processo legal ou do próprio sistema constitucional. O mesmo, porém, não acontece com o chamado princípio da verdade real, que não tem origem constitucional.
Aprovem-se ou não as escolhas do constituinte, é inegável que a preocupação desse último, no campo do processo penal, não foi com uma cruzada em busca da "verdade real", mas com o respeito aos direitos e garantias individuais do acusado. Isso se torna bem claro não só pela observância de várias das disposições do artigo 5° da Constituição Federal, mas também pela leitura do dispositivo que inaugura a Carta. Ali, no inciso III, ao lado de outras garantias que só vêm a reforçá-la, consta que a dignidade da pessoa humana é fundamento da República Federativa do Brasil. Leia-se: na tensão entre respeito aos direitos do acusado e busca desenfreada pela condenação, deve ser dada prevalência ao primeiro interesse.
Não há, portanto, qualquer indício de que a "verdade real" tenha sido eleita como princípio pelo legislador constituinte. O "princípio da verdade real", repetido como mantra por tantos doutrinadores e tribunais, é regra matriz, princípio unificador, do sistema criado pelo Código de Processo Penal, que, como já vimos, privilegiava um propositalmente indefinido interesse social supremo e não os direitos e garantias individuais do acusado. Um sistema ultrapassado, inspirado por ideais autoritários, ditatoriais e inquisitórios, que não tem lugar após a Constituição de 1988. Ainda assim, grande parte dos operadores jurídicos, muitos por puro desconhecimento, continua a recitá-lo, permitindo que o magistrado controle o material decisório quando e como bem entender.
O problema, porém, não pára por aí. Até mesmo os mais conservadores admitem que, segundo o vetusto sistema do Código de Processo Penal, o magistrado somente está autorizado a determinar diligências probatórias para dirimir dúvida que verse a respeito de ponto relevante do processo [32], exercendo atividade meramente supletiva das partes. Significa isso que o magistrado somente deveria trabalhar com as provas que lhe foram trazidas pela acusação e defesa, servindo-se da instrução de ofício apenas para sanar dúvida gerada a partir do material que foi levado até ele.
Não é o que vemos na prática. O dia-a-dia forense nos revela que o usual é que o julgador, sem indicar qual seria a dúvida e sobre qual ponto relevante ela instalou-se, laconicamente determine a realização da prova "porque está em busca da verdade real".
Fosse aplicada a Constituição Federal, o juiz teria de motivar a decisão [33], indicando as razões que o levaram a determinar a realização daquela prova. A fundamentação da decisão, porém, criaria um sério problema: ao externar o raciocínio que o levou a determinar a produção da prova e revelar qual a parte potencialmente beneficiada com ela, estaria, em regra, quebrada a imparcialidade do juiz. É como ensina Gilberto Prado:
Quem procura sabe ao certo o que pretende encontrar, e isso, em termo de processo penal condenatório, representa uma inclinação ou tendência perigosamente comprometedora da imparcialidade do julgador. [34]
Como vemos, apesar de inconstitucional, não deixa de ser conveniente para os operadores jurídicos que elegeram a inquisição como sistema a ser seguido limitarem-se a determinar a produção da prova com fundamento na vazia fórmula da "busca da verdade real", ao invés de, fundamentadamente, exporem as razões que os levaram a tomar aquela decisão.
6. A GESTÃO DA PROVA NAS DEMANDAS PENAIS – O PAPEL RESERVADO AO MINISTÉRIO PÚBLICO
Para o próprio bem da Instituição, a pretendida imparcialidade do Ministério Público é mais um mito a ser destruído.
Após mais de seis séculos de Inquisição (XII a XIX), os Estados de cultura jurídica romano-germânica passaram, gradualmente, a adotar o modelo acusatório. O antigo sistema demonstrara o erro que era deixar nas mãos da mesma pessoa as funções de acusar e julgar, motivando a criação do Ministério Público da maneira como a Instituição é hoje conhecida. O novo modelo possibilita a manutenção do monopólio da jurisdição e da persecução penal nas mãos do Estado sem os perigos da Inquisição, pois agora as funções são atribuídas a órgãos distintos. É elementar, portanto, a constatação de que "o Ministério Público é uma parte fabricada. Surge da necessidade do sistema acusatório e garante a imparcialidade do juiz". [35]
Obviamente, isso não significa que o Ministério Público esteja dispensado de agir com lealdade e de obedecer à estrita legalidade, até mesmo porque a Instituição, ainda quando atua na posição acusatória, não se despe de sua função de defensora da ordem jurídica e do regime democrático. Denota, apenas, que no processo penal o órgão acusatório persegue, em regra, a condenação (aliás, se não fosse assim, não teria oferecido a denúncia), pois essa é própria razão da sua existência (logicamente, estamos nos referindo tão-somente ao campo penal). Expressa, enfim, que, da mesma maneira que a imparcialidade é inerente à função do julgador, a parcialidade é indissociavelmente ligada ao acusador.
Recorremos mais uma vez a Aury Celso Lopes Jr., que, inspirado em lição de autor estrangeiro, aborda o tema com precisão:
Para J. Goldschmidt (Problemas Jurídicos y Políticos del processo penal, p. 29), o problema de exigir a imparcialidade de uma parte acusadora significa cair em el mismo error psicológico que há desacreditado al proceso inquisitivo, qual seja, o de crer que uma mesma pessoa possa exercitar funções tão antagônicas como acusar e defender. [36]
Diferentemente do que pode ser pensado em um primeiro momento, assumir a posição de sujeito imparcial não é motivo de vergonha nem é uma capitis diminutio. Muito pelo contrário, é isso que garante a autonomia e a importância da Instituição. Enquanto o Ministério Público se esconde atrás do véu da imparcialidade, almejando ser o que não é, admite que outros exerçam a função que lhe é própria e exclusiva: produzir a prova da culpa do réu.
Embora tratando de uma questão tópica, Geraldo Prado, crítico acerbo da confusão das funções reservadas ao membro do Ministério Público e juiz de direito, equaciona bem a questão:
É claro que além da óbvia mensagem subliminar endereçada ao réu, de que a justiça penal tem função repressiva, motivo pelo qual juiz e Ministério Público estão aliados na tarefa de punir, há outra igualmente sutil, dirigida ao próprio Ministério Público. Segundo esta interpretação, a posição do Ministério Público, ao lado do juiz é justificada por discurso que ressalta a importância da instituição, todavia deixa abaixo da superfície a intenção de controle judicial das funções de persecução. [37]
O Ministério Público ganha autonomia quando assume a posição de sujeito parcial e, portanto, de único responsável por apresentar as provas que podem servir para condenação do réu. Caminha, porém, em sentido oposto, cada vez que busca se firmar como sujeito imparcial dentro do processo penal, confundindo sua atividade com a jurisdicional e, conseqüentemente, admitindo que o magistrado siga o mesmo viés.
A revalorização da função ministerial é, porém, via de mão dupla. Ao exigir que o juiz não seja contaminado no caminho em busca de material probatório, o modelo acusatório impõe pesado "fardo" [38] ao Ministério Público. A Instituição somente poderá recorrer ao Poder Judiciário para a produção de prova quando a intervenção jurisdicional for imprescindível para a legalidade da operação (exemplo: interceptação telefônica). Todo o resto, incluindo a expedição de ofícios para a localização de testemunhas e para requisição de informações, além da realização das perguntas em audiência (salvo aquelas genéricas, que o juiz, como sujeito imparcial, está autorizado a realizar), é ônus exclusivo do Ministério Público, a quem é vedado utilizar a máquina do Poder Judiciário em seu favor.
Por certo, essa não é a maneira mais "fácil" de condenar alguém, culpado ou inocente. É, contudo, a mais democrática e a eleita pelo nosso sistema constitucional. Nunca é demais lembrar que o processo, por si só, é um obstáculo à condenação. Ainda assim, por mais grave que fosse o crime cometido, membro algum do Ministério Público assistiria passivamente à condenação de alguém sem o prévio percurso do processo. Da mesma forma, a obediência ao sistema modelo é "obstáculo" necessário à condenação de qualquer pessoa, sob pena de afronta ao sistema processual adotado pelo constituinte.
É a observância desse modelo que assegurará que Ministério Público e Poder Judiciário cumpram verdadeiramente o papel que lhes foi reservado pelo Texto Constitucional. O primeiro como órgão persecutor, parcial por natureza, e com total responsabilidade pela gestão da prova. O segundo como órgão julgador, imparcial por princípio, e garante dos direitos fundamentais do acusado.
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Notas
01 WACQUANT, Loic. As prisões da miséria. Tradução de André Telles. Rio de janeiro: Jorge Zahar, 2001, p. 140-151.
02 São variados os dispositivos de lei que não mais têm qualquer validade, pois em dissonância com o sistema constitucional acusatório. Sem qualquer pretensão de exaurir os exemplos, mencionam-se três: artigos 311 (na parte em que permite a prisão preventiva decretada de ofício), 384 e 574, todos do Código de Processo Penal.
03 SUANNES, Adauto. Os Fundamentos Éticos do Devido Processo Penal. 2. ed. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2004, p. 93.
04 FERNANDES, Antonio Scarance. Processo Penal Constitucional. 4.ed. rev., atual e ampl. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2005, p. 46.
05 BOSCHI, José Antônio Paganella. O devido processo legal: escudo de proteção do acusado e a práxis pretoriana. Revista Jurídica, Porto Alegre, n. 338, p. 77, dez. 2005.
06 Provavelmente o maior monumento inquisitório fora da Igreja tenha sido as Ordonnance Criminelle (1670), de Luís XIV, na França, que, apesar de manter um processo que comportava partes, admitia a ampla instrução probatória pelo magistrado. Ver em COUTINHO, Jacinto Nelson de Miranda. Introdução aos Princípios Gerais do Direito Processual Penal Brasileiro. Revista de Estudos Criminais. Programa de Pós-Graduação em Ciências Criminais da Pontifícia Universidade Católica do RS, Porto Alegre, n. 1, p. 30, mar. 2001.
07 FERNANDES, Antonio Scarance. Op. cit., p. 19.
08 SILVA, Danielle Souza de Andrade e. A atuação do juiz no processo penal acusatório. São Paulo: Sérgio Antônio Fabris, 2005, p. 40.
09 LOPES JÚNIOR, Aury Celso. Introdução Crítica ao Processo Penal. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2005, p. 173.
10 COUTINHO, Jacinto Nelson de Miranda. Op. cit., p. 29.
11 Como tantos outros, Jacinto Nelson de Miranda Coutinho também pensa assim: "pode-se concluir que o sistema processual penal brasileiro é, na essência, inquisitório, porque regido pelo princípio inquisitivo, já que a gestão da prova está, primordialmente, nas mãos do juiz." Ver em COUTINHO, Jacinto Nelson de Miranda. Op. cit., p. 30.
12 COUTINHO, Jacinto Nelson de Miranda. Op. cit., p. 33.
13 SUANNES, Adauto. Op. cit., p. 280.
14 COUTINHO, Jacinto Nelson de Miranda. Op. cit., p. 33.
15 SILVA, Danielle Souza de Andrade e. Op. cit., p. 81.
16 PRADO, Geraldo. Sistema Acusatório: a conformidade constitucional das leis processuais penais. 4. ed. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2006. p. 136-137.
17 LOPES JÚNIOR, Aury Celso. Op. cit., p. 179.
18 FERRAJOLI, Luigi. Direito e Razão: teoria do garantismo penal. Tradução de Ana Paula Zomer Sica, Fauzi Hassan Choukr, Juarez Tavares e Luiz Flávio Gomes. 2. ed. ver., atual. e ampl. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2006. p. 330-333.
19 Sim, ao contrário do que a maioria de nós aprendeu nas universidades, o processo não é mero caminho para condenar o acusado.
20 É garantia de que para o alcance da condenação é necessária a existência de um processo. Mais: que não seja qualquer processo, mas o devido processo, nos moldes constitucionais.
21 BRASIL. Código de Processo Penal. Organizador Luiz Flávio Gomes. 9. ed. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2007. p. 349.
22 BRASIL. Op. cit., p. 347.
23 Pensa o magistrado: para que acusadores e defensores, se, afinal, eu sei o que é mais justo?
24 Pensa o magistrado: por que apenas decidir, se posso também fazer prova como se parte fosse (ainda mais quando isso foi aceito por tanto tempo)?
25 Somente para a prova de fato modificativo, impeditivo ou extintivo do pedido condenatório. E isso apenas para aqueles que entendem que esse ônus é da defesa, posição doutrinária que vem perdendo força ao longo dos anos.
26 PRADO, Geraldo. Op. cit., p. 105.
27 PRADO, Geraldo. Op. cit., p. 105.
28 LOPES JÚNIOR, Aury Celso. Op. cit., p. 156.
29 JUÍZES para a Democracia. Apud CARVALHO, Amilton Bueno. Garantismo Penal Aplicado. 2.ed. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2006. p. 270-271.
30 THUMS, Gilberto. Sistemas Processuais Penais: Tempo. Tecnologia. Dromologia. Garantismo. Rio de Janeiro: Lumens Juris, 2006, p. 252.
31 Abarcados aqui aqueles que dão conceituação distinta ao princípio acusatório.
32 Artigos 156 e 502.
33 Art. 93, IX.
34 PRADO, Geraldo. Op. cit., p. 137.
35 LOPES JÚNIOR, Aury Celso. Op. cit., p. 168.
36 LOPES JÚNIOR, Aury Celso. Op. cit., p. 168.
37 PRADO, Geraldo. Op. cit., p. 194.
38 A palavra vem entre aspas porque não pode ser considerado um fardo o exercício da função que justifica a própria existência do Ministério Público.