V – Da taxatividade da lista de serviços anexa à Lei Complementar n.º 116/03
Outra questão relevante ao deslinde do tema é a análise da cláusula "definidos em lei complementar", a que alude o art. 156, inciso III, in fine, da CRFB/88, ou seja, (i) se tal lei complementar lista taxativamente os serviços tributáveis por meio de ISS, ou (ii) se é meramente exemplificativa, podendo os Municípios tributar outros serviços além daqueles arrolados na lei complementar.
A tese encampada pela jurisprudência nacional é a de que o dispositivo constitucional acima referido outorga competência ao legislador federal, enquanto representante da nação, para que, por meio de lei complementar, defina quais os serviços passíveis de tributação pelos Municípios. Mais ainda: o legislador municipal, ao concretizar sua competência impositiva, está adstrito a tributar apenas aqueles serviços relacionados naquela lei complementar, não podendo ir além e incluir outras figuras que não as expressamente arroladas. Daí dizer que a lista anexa à Lei Complementar n.° 116/03 é taxativa, ou seja, relaciona numerus clausus os serviços tributáveis por meio de ISS. Entretanto, tal rigidez sofre relativa flexibilização ao admitir a jurisprudência que também podem ser tributados os serviços idênticos ou similares àqueles descritos na Lei Complementar. [24]
A corrente que defende a exemplificatividade da lista de serviços prevista em lei complementar tem entre os seus principais expoentes o saudoso Geraldo Ataliba [25], José Souto Maior Borges [26] e Aires F. Barreto [27]. Para tais autores, o rol de serviços é meramente exemplificativo, podendo os Municípios tributar todo e qualquer serviço, exceto aqueles que a Constituição afastou de sua competência (art. 155, II), independentemente de estarem ou não arrolados na lista de serviços prevista em lei complementar.
O argumento central da exemplificatividade reside na violação do princípio da autonomia municipal, na medida em que a taxatividade impõe ao Congresso Nacional o poder de definir o campo de atuação dos Municípios com relação ao ISS, em clara usurpação de competência. Para adequarem a parte final do inciso III do art. 156 da CRFB/88 ao sistema, afirmam que esta lei complementar poderia apenas dispor sobre eventuais "conflitos de competência" entre o ISS e outros tributos e regular as limitações constitucionais ao exercício de tal competência. Esse entendimento é extraído da interpretação conjunta daquele dispositivo com o art. 146 e incisos da Constituição Federal.
Com efeito, em que pese esse posicionamento estar amparado no gênio de juristas do maior quilate, ousa-se divergir dessa tese.
A lista de serviços não é exemplificativa porque a própria Constituição Federal optou por centralizar o poder na pessoa política da União, reduzindo o caráter da autonomia municipal neste ponto. O art. 156, inciso III, é, portanto, exceção constitucional ao princípio da autonomia municipal. Contudo, cumpre ressaltar que cabe à União fixar apenas e tão-somente a extensão do critério material e parte do critério quantitativo (alíquota – art. 156, § 3.º, I, da CRFB/88 e art. 88 do ADCT) do ISS, por meio de lei complementar. Qualquer estipulação que avance sobre os outros critérios da RMIT estará maculada pela pecha da inconstitucionalidade. E não calha o argumento de que esse posicionamento importaria concluir que a definição do critério material da RMIT dos tributos está sob o crivo do legislador infraconstitucional.
O critério material da RMIT já vem previamente fixado pela Constituição Federal, tendo-se em vista que a Magna Carta delimita a competência tributária dos entes federados pela descrição de determinados fatos ou comportamentos humanos, que podem ser tributados exclusivamente ou pela União, ou pelos Estados-membros, ou pelos Municípios. Por isso, não pode o legislador infraconstitucional modificar ou ampliar o que vem constitucionalmente delineado. Neste sentido, quando fala a Constituição Federal que serão tributados renda e proventos de qualquer natureza (art. 153, III), não se pode alargar tal conceito para permitir a tributação do patrimônio, mas somente o aumento patrimonial auferido em determinado período de tempo; quando fala a Constituição Federal em importação de produtos estrangeiros (art. 153, II), não se pode alargar tal conceito para permitir a tributação de produtos brasileiros que, por qualquer razão, provenham do exterior (reimportação) [28]; quando fala a Constituição Federal em serviços (art. 156, III), não se pode modificar o conceito constitucionalmente pressuposto de serviço para tributar o que não é serviço.
O fato de os serviços tributáveis pelo ISS estarem previstos em um rol taxativo, cuja confecção compete ao Congresso Nacional, não implica modificação ou ampliação do critério material – no máximo, significa redução. Veja-se que o critério material está definido constitucionalmente como serviço, cabendo ao legislativo federal, por meio de lei complementar, apenas explicitar quais são estes serviços, dentro de seu conceito constitucionalmente pressuposto. O que pode ocorrer é apenas uma redução do critério material, em que determinados serviços não estejam previstos e não possam ser tributados, mesmo levando em conta a interpretação extensiva. Da redução do campo material não se extrai inconstitucionalidade, mas apenas o não-exercício da competência impositiva da pessoa política responsável pela tributação, no caso plasmada na Lei Complementar n.º 116/03. De outra parte, eventuais inconstitucionalidades caracterizadas pela ampliação ou modificação do conceito de serviço nas atividades arroladas no Anexo da Lei Complementar n.º 116/03 certamente ensejarão a atuação do Poder Judiciário e a conseqüente expulsão da antinomia do sistema.
A conclusão, portanto, é a de que o fato de a lista de serviços ser taxativa não patrocina violação ao princípio da autonomia municipal, visto que é excepcionado pela própria Constituição Federal, da mesma forma que a definição destes serviços em lei complementar não deixa ao arbítrio do legislador infraconstitucional a definição do critério material da RMIT do ISS, revelando, no máximo, redução no âmbito de atuação do ente tributante pelo não-exercício de sua competência tributária.
Entretanto, um alerta há de ser feito. Tão-só a situação de o serviço estar listado no anexo da Lei Complementar n.º 116/03 não lhe impinge o caráter de "serviço tributável" por meio de ISS. Além de constar da lista, é necessário que a atividade enquadre-se no respectivo conceito constitucional de serviço, de forma a preencher o critério material da RMIT do imposto municipal. Constando da lista e não sendo serviço, impõe-se a declaração de inconstitucionalidade do item. Exemplo disso é o caso da locação de bens móveis, item vetado pelo Presidente da República na novel legislação, mas declarado inconstitucional pelo Supremo Tribunal Federal sob a égide da anterior regulação [29].
Sintetizando o pensamento: a lista de serviços anexa à Lei Complementar n.º 116/03 é taxativa, mas de interpretação extensiva dentro de cada item, permitindo a incidência do ISS sobre serviços correlatos (congêneres) àqueles previstos expressamente, desde que estes – serviços expressos e congêneres – enquadrem-se no conceito constitucionalmente pressuposto de serviço.
VI – Da não-incidência do ISS sobre a atividade de franquia
A partir das premissas fixadas, passa-se a discorrer sobre as razões que impedem a incidência do ISS sobre a atividade (contrato) de franquia.
O franchising, como assentado na jurisprudência do STJ, é um contrato de natureza complexa, na medida em que envolve uma série de obrigações recíprocas, diversas e variadas entre os contratantes. As obrigações envolvidas ora são de fazer, ora são de dar, situação que se depreende claramente da análise dos encargos do franqueador, expressamente aludidos na Lei n.º 8.955/94: (i) cessão do direito de uso de marca ou patente ao franqueado; (ii) possibilidade de entregar ao franqueado a mercadoria; (iii) transmitir a técnica de uso de tecnologia de implantação e administração de negócio ou sistema; e (iv) assistência permanente ao franqueado, como treinamento deste e de seus funcionários, orientação, auxílio na análise e escolha do ponto onde será instalado o negócio.
Indubitavelmente, as atividades definidas nos itens (i), (ii) e (iii) são obrigações de dar, já que compreendem a entrega de determinada coisa a alguém, que pode ser um bem móvel ou imóvel. Já no item (iv) é clara a obrigação de fazer, consistindo em uma prestação, um esforço, um dispêndio de energia do franqueador em favor do franqueado.
Por ser um contrato autônomo e complexo, como referido, que combina diversos elementos circunstanciais, não há de se falar de forma isolada apenas da cessão de marca ou da prestação de serviços. O que se verifica é uma gama de atividades concentradas no contrato de franquia, não se podendo conceber a preponderância de uma atividade em detrimento de outra. Como salienta o Ministro Franciulli Netto, "permitir a primazia da cessão de marca em face da prestação de serviço, data maxima venia, significa transformar o contrato de franquia em contrato de locação. Seguindo esse raciocínio, conceder preeminência à prestação de serviços em face da cessão de marca importa em transfigurar o contrato de franquia em contrato de prestação de serviços" [30].
Além disso, não há perder de vista o fato de que a franquia caracteriza-se apenas e tão-somente quando combinadas todas aquelas atividades (i, ii, iii e iv), e a ausência de qualquer uma destas representa negócio de outra índole, diferenciado, por esta razão, do franchising. Por isso, não colhe a argumentação daqueles que pretendem dissociar as obrigações inerentes à franquia, defendendo a incidência do ISS apenas sobre aquelas classificadas como de fazer. Tratando-se de contrato complexo, as obrigações daí decorrentes são indissociáveis, o que quer dizer que sua função jurídica só se implementa quando conjugadas as diversas cláusulas, condições e obrigações. O contrato complexo não se confunde com a cumulação de contratos. Em realidade, "há um plexo de deveres impostos a ambas as partes, onde a transferência de tecnologia é indissociável da cessão do uso de marca e dos demais pactos. Esses deveres não são unilaterais, muito pelo contrário. Incumbe a ambas as partes a execução de inúmeras obrigações de fazer. Isso torna inviável a dissociação de obrigações de fazer, para fins de identificação de "prestação de serviço" [31].
Como se isso não bastasse, a assistência técnica do franqueador em favor do franqueado é mera atividade-meio, desenvolvida no sentido de alcançar a atividade-fim, qual seja, a franquia. O ISS não pode gravar atividades-meio, já que essas são apenas pressupostos necessários à realização da atividade-fim, que há de ser a "prestação de serviço" [32].
Insistindo na mesma questão: acaso fosse possível a tributação em apartado da prestação de assistência técnica, qual seria a base de cálculo do ISS? Obviamente, o montante apanhado pelo franqueado ao franqueador não realiza tal conceito, pois aí também estão compreendidas a remuneração pela cessão da marca e as demais obrigações de dar.
Também não calha argumentar que a presença das duas atividades, sem que seja caracterizada a predominância de uma sobre a outra, acabaria por tornar a franquia serviço. Retomando o conceito fixado no ponto IV, o serviço tributável pelo ISS é o comportamento humano consistente em uma obrigação de fazer, economicamente apreciável, desenvolvido em favor de outrem de forma individualizada, sem vínculo de subordinação, contratado na forma do direito privado e não compreendido na esfera de tributação de outro ente federado que não o município. Ora, a franquia nunca poderá enquadrar-se neste conceito, elaborado com base na interpretação da Constituição Federal, na medida em que não é uma simples obrigação de fazer, mas uma conjugação indissociável de obrigações de dar e de fazer que, se consideradas separadamente, desvirtuam o instituto ora debatido.
O legislador complementar, ao limitar os serviços passíveis de tributação por meio de ISS pelos municípios, incluiu a atividade de franquia, tentando equivocadamente inseri-la no conceito de serviço tributável, que tem base constitucional. Tal expediente, além de desrespeitar a ordem constitucional, viola frontalmente o art. 110 do Código Tributário Nacional [33], que impede que a lei tributária venha a alterar a definição, o conteúdo e o alcance de institutos, conceitos e formas de direito privado, utilizados, expressa ou implicitamente, pela Carta Magna. Além de inconstitucional, a tributação da franquia pelo ISS também é ilegal.
Também não há perder de vista que a circunstância de estar a franquia prevista na lista de serviços anexa à Lei Complementar n.º 116/03 não tem o condão de sujeitá-la ao ISS. A tributação, por meio do imposto municipal, limita-se à consideração de atividades que se enquadrem ao conceito constitucionalmente pressuposto de serviço tributável. Não havendo correspondência entre um e outro, está vedada a incidência, como efetivamente ocorre no instituto objeto deste estudo.
Desta maneira, mantém-se o limite material fixado pelo Superior Tribunal de Justiça à incidência do ISS sobre a franquia. O franchising não se enquadra no conceito constitucional de serviço tributável e, de conseqüência, não preenche o critério material – prestar serviço – da RMIT do ISS, não se sujeitando ao imposto municipal, ainda que conste tal atividade do rol de serviços anexo à Lei Complementar n.º 116/03.
VII – Conclusões
A partir da fundamentação vertida linhas acima, podem-se fixar algumas conclusões sobre o tema ora debatido.
A jurisprudência do STJ, quando teve a oportunidade de se manifestar sobre a incidência do ISS sobre a atividade de franquia, ainda sob a égide do Decreto-lei 406/68, entendeu pela impossibilidade de tributação, tendo por fundamento dois limites: um de índole formal – ausência de previsão na Lista de Serviços – e outro de índole material – impossibilidade de se considerar a franquia como prestação de serviço.
Com a publicação da Lei Complementar n.º 116/03, a franquia passou a constar na lista de serviços tributáveis por meio de ISS, mais precisamente no item 17.08. Esse pormenor fez com que ressurgisse com toda força a polêmica sobre a incidência ou não do imposto municipal.
Com intuito de solver essa questão, primeiramente se definiu que a franquia é um contrato complexo, envolvendo uma série de obrigações recíprocas, diversas e variadas entre os seus contratantes, associativo e normativo, em que o franqueador cede a marca que desenvolveu, bem como o know-how adquirido pela experiência e atuação no mercado ao franqueado, a quem incumbe a distribuição dos produtos ou serviços patrocinados pelo primeiro neste mesmo mercado.
Nessa esteira, fixou-se a regra-matriz de incidência tributária (RMIT) do ISS, que, ao fim e ao cabo, é a que estabelece os critérios pelos quais uma determinada norma incide ou não sobre determinado acontecimento do mundo fático. A franquia, para ser tributada por ISS, haveria de preencher exatamente cada um desses critérios, tendo restado dúvida apenas sobre o enquadramento dessa atividade no critério material da RMIT, cuja solução perpassava pela definição do conceito de serviço.
Assim, entendeu-se que, a partir da interpretação da Constituição Federal, pode-se extrair este conceito, insuscetível de amesquinhamento pelo legislador infraconstitucional, sob pena de inconstitucionalidade. Esse é o conceito obtido: serviço para fins de incidência do ISS é o comportamento humano consistente em uma obrigação de fazer, economicamente apreciável, desenvolvido em favor de outrem de forma individualizada, sem vínculo de subordinação (trabalhista), contratado na forma do direito privado, e não compreendido na esfera de tributação de outro ente federado que não o município.
Da mesma forma, com a finalidade de solucionar a questão inicialmente proposta, impunha-se definir a função e a interpretação a ser dada à lista de serviços anexa à Lei Complementar n.º 116/03. Fixou-se, então, que esta lista de serviços é taxativa, mas de interpretação extensiva dentro de cada item, permitindo a incidência do ISS sobre serviços correlatos (congêneres) àqueles previstos expressamente, desde que estes – serviços expressos e congêneres –enquadrem-se no conceito constitucionalmente pressuposto. Sobre tal interpretação não se vislumbra qualquer afronta ao princípio da autonomia municipal, visto que o art. 156, III, da CRFB/88 consiste em exceção a tal primado, da mesma forma que não importa concluir que a definição do critério material da RMIT do ISS estaria ao dispor do legislador infranconstitucional, já que tal entendimento revela, no máximo, redução no âmbito de atuação do ente tributante pelo não-exercício de sua competência tributária.
Sobre tais premissas, fundaram-se as razões da não-incidência do ISS sobre a atividade de franquia.
A primeira centralizada na autonomia e complexidade deste sistema, que combina uma gama de atividades (cessão do direito de uso de marca ou patente, entrega de mercadoria, transmissão da técnica de uso de tecnologia de implantação e administração de negócio ou sistema e assistência técnica permanente ao franqueado), qualificadas como obrigações de fazer e de dar, inexistindo a preponderância de uma atividade em detrimento da outra. A franquia caracteriza-se justamente pela congregação indissociável de todos esses fatores. Em vista disso, mostra-se impossível enquadrá-la ou como obrigação de dar (contrato de locação) ou como obrigação de fazer (contrato de prestação de serviço), o que evidencia a intributabilidade por meio de ISS.
Também se mostra inviável considerar apenas as obrigações de fazer levadas a efeito no curso da execução do contrato, já que, além de ser impossível a dissociação, são meras atividades-meio desenvolvidas no intuito de alcançar a atividade-fim, que é a franquia.
Além disso, por não qualificar exclusivamente obrigação de fazer, a franquia não preenche o conceito constitucional de serviço tributável pelo ISS. A sua inclusão na lista de serviço anexa à Lei Complementar n.º 116/03 enseja, portanto, inconstitucionalidade por desvirtuar aquele conceito, e ilegalidade ao alterar a definição de serviço tributável constitucionalmente prevista, violando, assim, o art. 110 do CTN.
Pelo exposto, percebe-se que a atividade de franquia, por não se enquadrar no conceito de serviço tributável, nem preencher o critério material da regra-matriz de incidência tributária do ISS, está afastada do campo de incidência do imposto municipal.
Logo, a Lei Complementar n.º 116/03 não tem força suficiente para modificar a jurisprudência pacificada no Superior Tribunal de Justiça, quando a matéria era regulada pelo Decreto-lei n.º 406/68.