3.A Responsabilidade do Estado
3.1.Fundamentos Constitucionais da Responsabilidade Civil da Administração Pública
Não há como diminuir a importância da Responsabilidade do Estado diante do atual tratamento jurídico que recebem os OGMs na legislação infraconstitucional. Desta feita, a análise em torno da Responsabilidade inicia – como não poderia ser diferente – pela Lei Maior.
No escopo de orientar a ação do administrador na prática dos atos administrativos, bem como de garantir aos administrados uma condução eficiente, proba e responsável das decisões políticas, o legislador constituinte inseriu, no rol de diretrizes que deve reger a Administração Pública, a Responsabilidade Civil. Estabelece o art. 37, § 6º, que as pessoas jurídicas de direito público e as de direito privado prestadoras de serviços públicos responderão pelos danos que seus agentes, nesta qualidade, causarem a terceiros, assegurado o direito de regresso contra o responsável nos casos de dolo ou culpa.
Na essência do conceito jurídico, diz-se juridicamente responsável por certa conduta ou arca-se com a responsabilidade jurídica por essa conduta quando se está sujeito à sanção em caso de conduta contrária, isto porque, de acordo com esse ponto de vista, só há sanção decorrente de ato ilícito, consubstanciada, aqui, no dever de indenizar. Responde-se pelo ilícito, portanto (KELSEN, 2003, 2005, p. 134, 93). Todavia, essa perspectiva de se ter o ilícito como condição para a sanção, embora sirva à compreensão das relações intersubjetivas e seja cara ao Direito – especialmente ao campo penal e tributário –, não satisfaz às exigências contemporâneas necessárias ao deslinde da Responsabilidade estatal, segundo a qual há o dever de reparar em decorrência de atos, também, lícitos, dever justificado por meio do escopo de garantir uma equânime repartição dos ônus provenientes de atos ou efeitos lesivos, evitando, por exemplo, que alguns particulares específicos suportem prejuízos ocorridos por ocasião ou por causa de atividades desempenhadas no interesse de todos (BANDEIRA DE MELLO, 2003, p. 866).
Responsabilizar civilmente a Administração significa imputar-lhe a obrigação de reparar danos e prejuízos de natureza patrimonial e moral ocasionados a terceiros por ações que seus agentes desenvolveram (SILVA, J. A., 2003, p. 653). No entanto, nem sempre vigorou a responsabilidade pública. Até a primeira metade do século XIX, vigia o princípio da irresponsabilidade do Estado, segundo o qual era típico daquela noção de soberania impor-se a todos sem compensação. Já na segunda metade desse século, foi admitida a responsabilidade do Estado, que evoluiu de uma responsabilidade subjetiva – baseada na culpa – à responsabilidade objetiva, apoiada na simples relação de causalidade e, excluindo, assim, o elemento subjetivo, de enredada aferição. Recentemente, a responsabilidade do Estado passou a abranger campo maior que a privada, posto que se justifica pelo fato de as ações estatais lidarem com um maior número de indivíduos, possibilitando danos mais intensos que aqueles suscetíveis de serem ocasionados pelos particulares (BANDEIRA DE MELLO, 2003, p. 852ss).
Hoje, a idéia de irresponsabilidade se afigura incompatível com o Estado de Direito. Estabelece-se a responsabilidade objetiva, pois há a necessidade de se garantir a previsibilidade das relações, mormente em uma era em que as situações englobam riscos potenciais, com repercussões importantes no direito do consumidor e no direito ambiental, nos quais, pelo simples risco do empreendimento, já se verifica o dever de reparar (FERRAZ JR., 2001, p. 161).
No Brasil, as constituições anteriores se alternaram quanto à natureza do tratamento acerca da Responsabilidade do Estado. A Constituição de 1891 restringiu, no art. 82, a especificação de responsáveis aos funcionários públicos, pelos abusos e omissões em que incorressem no exercício de seus cargos, assim como pela indulgência ou negligência em não responsabilizarem os subalternos. As constituições seguintes alternaram-se na previsão da responsabilidade solidária entre funcionários públicos e a Fazenda Nacional, Estadual ou Municipal, ou na da responsabilização das pessoas jurídicas de direito público interno, com conseqüente direito de regresso da Administração Pública contra os funcionários causadores do dano, quando tivesse havido culpa destes.
Vale a ressalva de que a primeira menção a responsabilidade civil e pessoas jurídicas de direito público foi observada na Constituição de 1946 (art. 194). Com ela, os interesses do Estado passaram a plano secundário, eliminando-se as possibilidades de litisconsórcio necessário, solidariedade com seus agentes públicos e de extensão ao particular causador. Em comparação às constituições de 1934 e 1937, as possibilidades da Administração Pública responsabilizar o agente público foram, então, reduzidas ao direito de regresso contra quem deu causa ao dano (PONTES DE MIRANDA, 1947, p. 167ss), expondo a crescente tendência já consolidada na Constituição de 88 de incutir a noção de impessoalidade com que deve se portar a Administração Pública. Assim, ela passou a se prostrar na linha de frente da imputação do dever de reparar prejuízos originados pelas ações dos seus agentes e inovou ao incluir no campo da responsabilidade objetiva todas as pessoas jurídicas que operam serviços de natureza pública (SILVA, J. A., 2003, p. 655).
Importante frisar que há divergências quanto à teoria a ser adotada na responsabilidade objetiva. Embora, não raro, a lei mencione a linha escolhida, os juristas tendem a fazer críticas às teorias, apontando-se qual julgam ser mais pertinente. Segundo a teoria do risco administrativo, surge a obrigação de indenizar o dano só do ato lesivo e injusto causado à vítima pela Administração; não se cogita da culpa da Administração ou dos seus agentes, basta que a vítima demonstre o fato danoso causado por ação ou omissão pelo Poder Público. No entanto, ainda que dispense a prova de culpa da Administração, o risco administrativo permite ao Poder Público demonstrar a culpa da vítima para excluir ou atenuar a indenização. Esta é a diferença substancial da teoria do risco integral, para a qual, independentemente de comprovação de culpa da vítima, a Administração assume integralmente a responsabilidade pelo risco ofertado (MEIRELLES, 2004: 626ss). Hely Lopes Meirelles defendia a teoria do risco administrativo. Para ele, a índole extremada da teoria do risco integral poderia conduzir ao abuso e à iniqüidade social. Outros já defendem que não há tanta diferença assim entre as duas teorias, pois até mesmo o risco integral passou a admitir a isenção da Administração em caso de força maior ou culpa da vítima, uma vez que cessaria a existência do nexo de causalidade, ensejador da responsabilização (MEDAUAR, 2004, p. 436).
3.2.Responsabilidade Civil por Dano ao Meio Ambiente
Ressalte-se, mais uma vez, a importância da tutela preventiva, norteada pelo princípio da precaução. É a partir dele que danos causados ao meio ambiente e à saúde humana devem ser evitados. Daí atribuir a esta tutela a qualidade de prioritária. No entanto, não é porque a essência do Direito Ambiental seja preventiva, que se deva esquecer o tratamento da tutela reparatória (MILARÉ, 2004, p. 755).
O dano ambiental tem caráter dúplice. Ele se bifurca na medida em que há o dano ambiental coletivo, que constitui aquele causado ao meio ambiente globalmente considerado, como patrimônio coletivo, de natureza difusa, bem de uso comum do povo (art. 225 CF), cobrado por meio de Ação Civil Pública. E o individual, que atinge pessoas, individualmente consideradas, por meio da integridade moral e/ou de seu patrimônio particular (MILARÉ, 2004, p. 666).
A responsabilidade civil é, via de regra, de cunho subjetivo no sistema brasileiro. É indispensável que se comprove a culpa de um agente. No entanto, em alguns pontos da legislação específica, elidiu-se a necessidade de comprovação de culpa – dolo, negligência, imprudência ou imperícia – do agente de um ato lesivo, a exemplo dos já mencionados direito ambiental e do consumidor (KRELL, 1998).
Em matéria ambiental, a Lei da Política Nacional do Meio Ambiente – nº. 6.938/81 –estabeleceu, no art. 14, § 1º, que é o poluidor obrigado a indenizar ou reparar os danos causados ao meio ambiente e a terceiros afetados por sua atividade, independentemente da existência de culpa. Assim o é devido à tarefa hercúlea de se comprovar a culpa de multinacionais e grandes laboratórios, detentores de um conhecimento técnico-científico, o qual, dado o seu grau de especificidade, não é compartilhado pelo senso comum.
Conforme se depreende do artigo mencionado, o princípio do poluidor-pagador é de fundamental importância à noção de responsabilidade civil em matéria ambiental. Herdado do princípio romano da eqüidade, consiste em atribuir àquele que lucra com determinada atividade a responsabilidade pelo risco ou pelas desvantagens dela resultantes, impedindo a privatização do lucro e a socialização dos prejuízos. Verifica-se, mesmo na tutela reparatória, a vocação eminentemente preventiva da responsabilidade civil ambiental de coibir a prática de condutas lesivas ao meio ambiente (MILARÉ, 2004, p. 756s).
Em perfeito acordo com o princípio do poluidor-pagador está a teoria do risco-proveito ou risco do usuário. Esta teoria, sim, diferentemente do risco integral, admite a possibilidade de que fatores sejam capazes de excluir ou atenuar a responsabilidade como caso fortuito, força maior, culpa da vítima, intervenção de terceiros e, ainda, a licitude da atividade poluidora – naqueles casos em que os particulares operam fontes de poluição dentro dos limites estabelecidos. Em matéria de dano, o campo ambiental opera de forma um pouco diversa do campo administrativo: o sujeito que deve indenizar, na maioria dos casos, não é o erário público, mas o poluidor particular, aquele que tira proveito da atividade (KRELL, 1998). Vale salientar que, muitas vezes, o particular age com a autorização válida concedida pela própria Administração, na qual o empreendedor deve confiar. Assim, onde o Estado falha em preencher esta função e emite licenças que permitem impactos ambientais nocivos, não seria justo repassar a responsabilidade ao particular, especialmente em casos, nos quais ele poderia ser confiante na certidão da autorização e na regularidade e licitude da sua atuação. O primeiro guardião dos interesses da coletividade como do bem difuso meio ambiente ainda é o Estado, não o cidadão (KRELL, 1998).
Frise-se que aí se faz referência aos particulares – empreendedores, pequenos e médios produtores etc. – que não detêm esse conhecimento técnico específico e solicitam aval da Administração Pública para exercer uma atividade ou realizar uma obra de seu interesse. Por esta razão é que se afirma que, na teoria do risco-proveito, deve ser avaliado o poder econômico do poluidor, seu conhecimento técnico e sua estrutura administrativa. No caso dos transgênicos, lida-se com multinacionais especializadas e laboratórios com amplos departamentos de pesquisa, os quais possuem uma gama de recursos para avaliar o quão arriscado é seu empreendimento. Portanto, não há, neste caso, como excluir a responsabilidade do poluidor, uma vez que, em matéria de OGMs, segundo a própria Lei 11.105/05, exerce a atividade o laboratório, a instituição ou a empresa que tenha recebido da CTNBio Certificado de Qualidade em Biossegurança (CQB) e, nos termos do art. 20, a responsabilidade civil entre os responsáveis é solidária e prescinde de culpa – objetiva, portanto.
Necessário à configuração do dano ambiental, o nexo causal decorre da relação de causa e efeito entre a atividade e o dano advindo. A análise é feita em torno da atividade, indagando-se se o dano foi ocasionado em razão dela para se concluir que o risco que lhe é inerente basta para se estabelecer o dever de reparar o prejuízo. Resta demonstrar a existência do dano cujo desenlace o risco da atividade influenciou decisivamente (MILARÉ, 2004, p. 760).
Todavia, a sua demonstração não é tão simples como aparenta ser. Aponta-se para a dicotomia entre o jurídico e o científico. Em matéria ambiental, há uma conjugação de fatores complexos, que dificultariam que se exaurisse toda a apuração. Enquanto os cientistas tendem a exigir um alto grau de prova para admitir uma relação de causa e efeito, o Direito busca, de antemão, a partir de critérios que lhe são próprios, encontrar o sujeito agente e imputar-lhe a responsabilidade que lhe corresponda. Estes critérios são baseados em juízos de probabilidade, e não de certeza (STEIGLEDER, 2003, p. 85).
Daí se sustentar como indispensável à apuração da configuração do dano a inversão do ônus da prova. Ou seja, transfere-se ao agente a necessidade de comprovar que a atividade não foi danosa, que não guarda relação com o dano. Esta postura milita a favor da preservação do meio ambiente, em acordo com a defesa de direitos difusos: deve a empresa provar que os produtos geneticamente modificados que ela lançou no mercado consumidor são seguros, e não a sociedade provar que eles são inseguros. Esta nova visão da ordem econômica, em consonância com o princípio da precaução, exige que a inversão do ônus se dê antes mesmo da inserção do OGM no mercado (SILVA, E. M., 2003, p. 107s).
Por fim, saliente-se que, em situações em que o poluidor mesmo tenha uma estrutura técnica para aferir a potencialidade do dano de sua atividade aos bens ambientais, torna irrelevante considerar se a atividade era lícita. Vislumbra-se, no objeto de consideração, a escala de conseqüências incalculáveis, passíveis de serem desencadeadas. No caso dos OGMs, a questão depende, ainda, de captar se a concessão de autorização do Poder Público para o exercício da atividade de potencial implica a responsabilidade da Administração Pública, uma vez que é ao Estado que cabe, por meio do seu poder de polícia, a tarefa de gerir e impedir atividades potencialmente danosas ao meio ambiente e à saúde, interesses difusos, dos quais o Poder Público é protetor imediato.
3.3.A Eventual Responsabilidade Solidária da Administração Pública por Danos Decorrentes do Consumo de OGMs
A Lei de Biossegurança, nº 11.105/05, prevê no art. 20:
Art. 20. Sem prejuízo da aplicação das penas previstas nesta Lei, os responsáveis pelos danos ao meio ambiente e a terceiros responderão, solidariamente, por sua indenização ou reparação integral, independentemente da existência de culpa. (Sem destaques no original).
Já a Constituição, em capítulo destinado à Administração Pública e, no que se destina ao meio ambiente, estabelece, respectivamente, o seguinte:
Art. 37, § 6º - As pessoas jurídicas de direito público e as de direito privado prestadoras de serviços públicos responderão pelos danos que seus agentes, nessa qualidade, causarem a terceiros, assegurado o direito de regresso contra o responsável nos casos de dolo ou culpa. (Sem destaques no original).
Art. 225, § 3º - As condutas e atividades consideradas lesivas ao meio ambiente sujeitarão os infratores, pessoas físicas ou jurídicas, a sanções penais e administrativas, independentemente da obrigação de reparar os danos causados.
A Constituição quis dizer que a irresponsabilidade penal e administrativa (art. 225, § 3º) não implica a irresponsabilidade civil. Ademais, ainda que o texto constitucional não tenha mencionado a responsabilidade solidária, o fato de se prever a responsabilidade por danos que seus agentes causem a terceiros (art. 37, § 6º) não exclui, necessariamente, a modalidade em questão. Ela é, antes, harmonizada com o texto constitucional, que não lhe impõe vedações neste sentido, visto que não é nada absurdo que o Poder Público, por meio de atos de seus agentes, dê ensejo a condutas propiciatórias de danos.
A intenção de responsabilizar solidariamente o Poder Público com o particular é a de compeli-lo a ser prudente e cuidadoso na fiscalização, orientação e gerência da saúde ambiental nos casos em que haja prejuízos para as pessoas, para a propriedade ou recursos naturais (MACHADO, 2004, p. 332).
Sabe-se, contudo, que fortalecer a idéia do dever de reparação, nos casos onde se verifica um prejuízo, não representa, obviamente, garantia alguma de que danos não virão a ocorrer. A obrigação de indenizar, ainda assim, não deixa de constituir uma ameaça à integridade patrimonial futura da pessoa jurídica de direito privado, causadora do dano, e à Administração Pública, condescendente com ações imprevidentes que exponham terceiros a conseqüências prejudiciais. Em suma, no caso do particular, pouco adiantaria construir um patrimônio para si às custas de danos ocasionados a terceiros – princípio do poluidor-pagador. Este patrimônio deveria ser remanejado para terceiros prejudicados pelas condições de sua constituição. No caso do Estado, seriam adotadas ações mais refletidas que as inconseqüentes hoje testemunhadas. É medida eficaz e indispensável no modelo de sociedade de risco, uma vez que, nela, sempre se busca a tentativa de se suprimir o dever de reparação. Bom exemplo desta atitude foi dado pelo Governo Federal no ano de 2003, quando tentou suprimir, na Medida Provisória 131 – a que estabeleceu normas para o plantio e a comercialização da soja transgênica da safra de 2003/2004 –, a obrigação de responsabilidade, justamente pelo potencial de riscos que apresentam os OGMs para o futuro (CAUBET, 2005, p. 43).
Segundo o que dispõe a Lei 11.105/05, o fato de se conferir à CTNBio parecer de natureza vinculante (art. 14, § 1º) – ao qual os demais órgãos da administração devem se subjugar – se torna assunto delicado acerca da questão da competência comum dos vários entes federativos em matéria de proteção ambiental (art. 23, VI da CF) [12], ferida por diversos dispositivos da lei. Frise-se que as questões constitucionais acerca dos OGMs estão ligadas, especialmente, à compressão dos mecanismos jurídicos-políticos que moldam a Federação Brasileira (ANTUNES, 2007, p. 222).
A Lei estabelece, ainda, a concessão de poderes à CTNBio de decidir, em última e definitiva instância, sobre os casos em que a atividade é potencial ou efetivamente causadora de degradação ambiental, bem como sobre a necessidade de licenciamento ambiental (art. 16, § 3º). Tais poderes, aliados ao histórico de indiligências da CTNBio (LISBOA, 2005, p. 55ss), não levam a outra conclusão, senão a de que se deve amadurecer a proposta de responsabilizar-se o Poder Público, afinal é melhor prevenir – e advertir – que remediar, e a propagação de eventuais danos, no caso em discussão, não ocorreria sem que o Poder Público tivesse licenciado a atividade para a conseqüente inserção dos produtos geneticamente modificados no mercado consumidor.
Ao se analisar a hipótese mencionada, constata-se, nos termos da nova Lei, que qualquer empresa ou laboratório que queira exercer atividade concernente aos OGMs deve submeter a sua liberação à CTNBio, o órgão competente. Assim, a empresa determina, por meio de critérios próprios, se o OGM constitui ou não ameaça potencial ao meio ambiente, podendo, para tanto, requerer do empreendedor estudo de avaliação de risco e EIA/RIMA, se assim julgar necessário. Aos demais órgãos da Administração restaria acatar a decisão da CTNBio. Esta lógica implicaria, necessariamente, afirmar que a nenhum outro órgão caberia a avaliação da necessidade ou não de realizar Estudo de Impacto Ambiental, a não ser à CTNBio e, por tabela, da necessidade de emissão ou não da licença ambiental, quando se tratar de atividade relacionada a OGMs e derivados (MAGALHÃES, 2006, p. 36). Desta forma, quando a Comissão entender determinada atividade desprovida de potencial de dano, poderá, inclusive dispensar EIA/RIMA, fazendo silenciar órgãos que desempenhariam tarefa indispensável ao controle e à fiscalização das atividades com OGMs, como, por exemplo, o Ministério da Saúde e o Ministério do Meio Ambiente. A este fato, some-se o argumento de que a CTNBio não avalia impactos sócio-econômicos da atividade sob análise, limitando-se, por assim dizer, a apontar o seu potencial de dano ou não e a requerer ou não ulterior EIA/RIMA para o licenciamento ambiental, em total descompasso com a exigência constitucional e com a competência comum dos entes federativos em matéria de proteção ambiental.
Ora, tal conceito aberto – decidir sobre os casos em que a atividade é potencial ou efetivamente causadora de degradação ambiental – enseja um amplo nível de juízo discricionário por parte da Administração. É o que se denomina de conceito jurídico indeterminado (unbestimmter Rechtsbegriff) [13], teoria surgida na Áustria do século XIX, que tinha como escopo fazer com que órgãos administrativos especializados preenchessem tais conceitos sem a possibilidade de que fossem revisados pelos tribunais. No entanto, após a experiência do regime totalitário alemão, que erradicou o controle judicial dos órgãos governamentais e administrativos, o poder discricionário foi consideravelmente reduzido com o advento da República Federal da Alemanha. A teoria deixou, então, de ser considerada uma expressão da discricionariedade para se tornar sindicável pelo Judiciário mediante interpretação. Adaptada à realidade brasileira, a teoria dos conceitos jurídicos indeterminados pode ter sua utilidade focada na melhoria da sistematização do controle da discricionariedade administrativa e até para a sua redução (KRELL, 2004, p. 29ss), ao invés de se legar a órgãos do Poder Público, aqui a CTNBio, âmbitos exacerbados de atuação discricionária, por meio dos quais o controle eficaz de atividades – que carecem do aval do Estado para serem exercidas – está seriamente comprometido. Ressalte-se a importância fundamental da apreciação judicial do conteúdo destes conceitos como mais uma barreira à necessidade de se adentrar no campo da tutela reparatória.
A deficiência da Lei, ocasionada pelos amplos poderes conferidos à CTNBio, não se esgota na mera declaração de potencial de dano do OGM ou não. Outro agravante advém da possibilidade de se dispensar EIA/RIMA, aspecto que constitui grave ofensa contra o direito fundamental a um meio ambiente sadio e equilibrado, pois vinculando a decisão e tolhendo de outros órgãos a possibilidade de licenciar, a proteção ambiental fica severamente comprometida. Não cabe tratar e analisar item a item da Lei 11.105/05 que guarde incompatibilidade com a Constituição Federal; relembre-se, no entanto, o art. 5º, § 1º da CF, segundo o qual as normas que definem direitos e garantias fundamentais têm aplicação imediata. Nestes termos, entende-se que os órgãos administrativos se adstringem a estes direitos: é o princípio da constitucionalidade imediata da Administração. Significa dizer que os órgãos administrativos devem executar apenas as leis que sejam conformes aos direitos fundamentais, bem como executar essas leis de forma constitucional. Consoante o entendimento aqui defendido, a não-observância deste postulado poderá levar à invalidação judicial dos atos administrativos contrários aos direitos fundamentais (SARLET, 2005, p. 364ss).
Ainda que, por meio do controle concentrado (STF), os dispositivos da Lei de Biossegurança eivados de inconstitucionalidade sejam fulminados – os quais têm nítida possibilidade de desencadear danos que responsabilizem solidariamente o Estado com o particular – e haja um controle mais rígido do Judiciário sobre as posturas da CTNBio, não se pode garantir um processo de licenciamento de OGMs livre de irregularidades e, tampouco, garantir uma atuação célere do Judiciário. De uma forma ou de outra, é passível de vir a ensejar danos, o que obriga, portanto, a listar as prováveis hipóteses de responsabilidade do Poder Público e as outras em que ele estaria eximido do dever de reparar.
São as hipóteses de responsabilidade solidária:
I-se, apesar de ser necessário, o Poder Público dispensasse EIA/RIMA, entende-se haver responsabilidade, pois não há como negar relação existente entre o dano sofrido ao meio ambiente e à saúde pública e o nexo de causalidade entre o dano e o ato do órgão;
II-se houver EIA/RIMA e for desfavorável no todo ou em parte, não há óbices quanto a enquadrar o Estado como solidariamente responsável, uma vez que foi contra o que determinou o próprio EIA/RIMA. É, portanto, viável a instauração do nexo entre o dano sofrido ao meio ambiente e à saúde dos consumidores e o ato da Administração Pública, sem o qual aquele não ocorreria.
São as hipóteses em que se eliminaria a responsabilidade solidária do Estado:
I-se houver EIA/RIMA e ele for favorável em todos os quesitos – o que é pouquíssimo provável –, estará elidida a responsabilidade do Estado [14]. Neste contexto, Fiorillo e Rodrigues alegam que se o EIA/RIMA foi dado como inteiramente favorável e os danos ao meio ambiente pressupõem um desacerto da equipe multidisciplinar, no sentido de que os resultados técnicos foram comprometedores, a equipe deve responder solidária e objetivamente com o proponente do projeto. Se o dano surgir independente de comportamento comissivo ou omissivo da Administração e de condições alheias de que não se possa deduzir o nexo sobre as situações previstas e qualificadas pela equipe, responsabiliza-se a empresa proponente apenas (1997, p. 222s);
II-se houver EIA/RIMA, este for desfavorável e a licença aos OGMs não for concedida, a menos que se consiga provar que o Estado é responsável pela omissão, ele não deve ser responsabilizado. Entretanto, admitir sempre que o Estado seja omisso e, portanto, associá-lo dentro do eixo com o dano causado ao meio ambiente é criar uma situação onde o Estado seria responsável por tudo, daí se sustentar que, nestes casos, a casuística analise quando uma ação omissa do Estado deva ser encartada como causa do dano ambiental (FIORILLO e RODRIGUES, 1997, p. 222s; BANDEIRA DE MELLO, 2003, p. 874);
III-por fim, ainda há a hipótese de se desconsiderar a responsabilidade solidária da Administração nos casos em que o poluidor cause danos clandestinamente, isto é, sem o consentimento ou concessão de autorização pelo Poder Público (MUKAI, 2004, p. 79), para tanto, é óbvio que não são abrangidas aqui situações a que se deu alguma publicidade e notoriedade, fato em que o Estado seria responsabilizado pela omissão, pois estaria afastado, por inteiro, o caráter de ocultação ilegal da atividade desempenhada pelo particular.
Embora seja, em tese, co-legitimado ativo à propositura de ações civis públicas e coletivas, paradoxalmente, admite-se que o Estado venha a praticar lesões a direitos transindividuais – muitas vezes, é até o primeiro a causá-las –, casos em que será legitimado – ou co-legitimado – passivo para uma ação de mesma natureza. Lembre-se que, nestas situações, é comum que os danos decorram de atividades licenciadas, concedidas, permitidas ou autorizadas pelo Poder Público ou ainda de situações de risco criadas por ele. Na lesão ao consumidor, é comum faltar, pelo menos, uma fiscalização estatal adequada (MAZZILLI, 2006, p. 528ss). A exemplo disto, aponta-se o descaso com as normas de rotulagem dos alimentos transgênicos desde o Decreto 4.680/03. Hoje, apesar de terem passado a ser exigidas pela lei 11.105/05, quase nada foi estabelecido para se efetivar essas normas, ao contrário: um dossiê de ambientalistas do Greenpeace, denunciando o uso por empresas da soja transgênica em alimentos sem qualquer informação no rótulo a respeito, foi entregue à Comissão de Meio Ambiente da Câmara dos Deputados no segundo semestre de 2005, com estudos indicativos da presença do OGM e nenhuma providência foi tomada até então. [15] Tal postura está em completo descompasso com o art. 6º, III, do Código de Defesa do Consumidor – Lei nº. 8.078/90 –, que fixa a informação adequada e clara, com correta especificação de componentes do produto, direito básico dos consumidores. [16]
Não obstante, diante das evidências que atestam a possibilidade da Administração Pública compor solidariamente o pólo passivo na Ação Civil Pública ao lado do particular degradador, há quem sustente a impropriedade desta modalidade de responsabilidade em tais ocorrências. O argumento destes reside em que, na prática, a própria sociedade, vítima da poluição, pagadora de impostos, seria penalizada. O que, além de injusto, consistiria em uma impropriedade lógica. Consideram que, se é possível escolher um dos responsáveis, segundo as regras da solidariedade, deve se valer da opção mais conveniente, chamando-se aquele que lucra com a atividade. Admitir-se-ia, portanto, a responsabilidade do Estado somente quando ele fosse o causador direto do dano ao meio ambiente (MILARÉ, 2004, p. 767). Neste sentido:
Inadmissível a denunciação da União Federal, Estado de São Paulo e Município de Cubatão, sob o fundamento de que essas pessoas de direito público incentivaram e autorizaram a instalação da ora agravante no local, com as conseqüências daí decorrentes, e fiscalizaram suas atividades. Aliás, se a pretensão fosse viável, equivaleria à condenação da própria vítima da poluição, isto é, o povo, ao ressarcimento de danos provocados pelas indústrias. [17] (Sem destaques no original).
Aqui, não se compartilha deste entendimento. Tem se apontado, exaustivamente, que atos comissivos ou omissivos do Poder Público podem ser determinantes para a ocorrência de danos causados à saúde pelo consumo de OGMs. Isto significa dizer que são atos sem os quais tais danos jamais viriam a ocorrer. Assim, em que pese as excludentes já analisadas da responsabilidade solidária, não se hesita em afirmar que a responsabilidade da Administração é tão importante quanto a do particular, já que deve constar do ordenamento jurídico um mecanismo sólido e eficaz que iniba a prática de atos, na maioria das vezes, desprovidos de qualquer cautela em matéria de OGMs. Desta forma, diante de eventuais danos passíveis de se desencadear em larga e irrestrita escala social, é descabido usar o argumento de que é um paradoxo fazer com que a coletividade, verdadeira interessada em responsabilizar, seja também penalizada – por meio da atribuição da responsabilidade ao Estado – por um ato comprovadamente procedente de um poluidor particular. Ora, se assim o fosse, a Ação Civil Pública jamais seria possível, pois, embora não seja titular dos direitos transindividuais que buscam tutela, o Estado é seu defensor imediato contra o próprio Estado.
Além disso, o fato de se fazer com que a sociedade busque punir os responsáveis pelo dano – particular poluidor e Poder Público – e, de certa forma, com que os recursos oriundos da própria coletividade sirvam à reparação nada mais é que a prevalência da eqüidade [18], justiça conquistada por via indutiva e extraída da própria natureza das coisas (RADBRUCH, 1997, p. 91). Os recursos provêm da coletividade e a ela retornam para uma repartição equânime correspondente aos danos causados de forma difusa.
Mazzilli (2006, p. 329), nesta linha, adverte que não se pode sempre assegurar a irresponsabilidade do Estado-Leviatã, sob o argumento de que seria o povo o último a pagar a conta. É preciso bastante equilíbrio, seja para não carrear apenas ao Estado as conseqüências de tudo o que ocorre de forma equivocada no país – e, portanto, ao cidadão, que paga impostos –, seja para não isentar a priori o Estado e, principalmente, seus administradores de toda e qualquer responsabilidade, quando, não raro, são estes que cometem diretamente a ação lesiva.
Por fim, evidencie-se o caráter de interdependência da responsabilidade solidária aqui defendida. Foi dito que o Estado deveria ser responsabilizado pelo aspecto indispensável do seu ato comissivo ou omissivo. Isto é, sem o qual o dano decorrente do consumo de OGMs não ocorreria. Parece óbvio, mas cumpre reforçar que, no assunto examinado, sem a ação originária do particular poluidor, de igual forma, descabe discutir a responsabilidade solidária da Administração, pois inexistiria atividade sujeita à concessão de autorização pelo Poder Público.