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Ensaio sobre o socialismo jurídico na perspectiva de Karl Marx e de Friedrich Engels

Agenda 29/03/2023 às 18:55

Tentamos demonstrar como as mudanças materiais influenciaram a organização socioeconômica humana na perspectiva de Karl Marx e de Friedrich Engels, sobretudo quanto ao direito.

Resumo: O Direito foi reinterpretado pelo socialismo marxista-marxiano há quase 200 anos atrás, porém seu estudo ainda é incipiente no Brasil, mormente nos cursos de graduação pátrios. Com efeito, almejo contribuir e incentivar os leitores a pesquisarem mais sobre o tema, visto que há uma riqueza imensurável, tanto hermenêutica, quanto sociológica e histórica, bem como jurídica nas obras de Karl Marx e Friedrich Engels. O presente trabalho, pois, expõe de forma concisa o posicionamento dos dois pensadores sobre o Direito. 

Palavras-chave: socialismo jurídico; direito socialista; materialismo; Karl Marx; Friedrich Engels. 


Introdução

O capitalismo é um processo histórico, o qual gerou efeitos morais, éticos, econômicos, jurídicos, sociológicos, antropológicos, filosóficos e sociais em geral. Quanto a esse processo histórico, Karl Marx e Friedrich Engels revolucionaram o conhecimento humano a partir de suas análises diametralmente opostas às praticadas até então entre os intelectuais europeus. Ora, quanto ao Estado e ao Direito, não poderia ser diferente: a dupla tece comentários válidos até os dias hodiernos e, outrossim, convida o leitor a repensar toda a pré-compreensão quanto ao tema. Eis, portanto, uma pequena contribuição à Academia em relação à abordagem marxista-marxiana do Direito. 


1. Concepção materialista da história e das instituições segundo Karl Marx

Karl Marx inaugura uma escola metodológica de análise acadêmica que transcende todas as áreas especializadas até então. O ilustríssimo pensador, com efeito, nomeia essa nova e intensa forma de abordar o mundo como “concepção materialista”.

…na produção social da própria existência, os homens entram em relações determinadas, necessárias, independentes de sua vontade; essas relações de produção correspondem a um grau determinado de desenvolvimento de suas forças produtivas materiais. A totalidade dessas relações de produção constitui a estrutura econômica da sociedade, a base real sobre a qual se eleva uma superestrutura jurídica e política e à qual correspondem formas sociais determinadas da consciência. O modo de produção da vida material condiciona o processo de vida social, política e intelectual. Não é a consciência dos homens que determina o seu ser; ao contrário, é o seu ser social que determina sua consciência. Em uma certa etapa de seu desenvolvimento, as forças produtivas materiais da sociedade entram em contradição com relações de produção existentes, ou, o que não é mais sua expressão jurídica, com as relações de propriedade no seio das quais elas se haviam desenvolvido até então. De formas evolutivas das forças produtivas que eram, essas relações convertem-se em entraves. Abre-se, então, uma época de revolução social. A transformação que se produziu na base econômica transforma mais ou menos lenta ou rapidamente toda a colossal superestrutura. Quando se consideram tais transformações, convém distinguir sempre a transformação material das condições econômicas de produção – que podem ser verificadas fielmente com ajuda das ciências físicas e naturais – e as formas jurídicas, políticas, religiosas, artísticas ou filosóficas, em resumo, as formas ideológicas sob as quais os homens adquirem consciência desse conflito e o levam até o fim.[2]

Ora, Marx é objetivo e sintético ao indicar que a estrutura material de uma sociedade suporta e determina a superestrutura consequente, isto é, a realidade fático-econômica gera possibilidades de dinâmicas socioeconômicas, as quais determinariam as possibilidades de desenvolvimento “não-material”, “espiritual” ou, também chamadas de “superestruturais”.

Com efeito, a “superestrutura” social seria formada pelas facetas jurídicas, políticas, morais, éticas, religiosas, artísticas e/ou filosóficas de certa sociedade, em certo contexto material.

O direito privado se desenvolve simultaneamente com a propriedade privada, a partir da dissolução da comunidade natural. (...) No direito privado, as relações de propriedades existentes são declaradas como resultado da vontade geral. O próprio jus utendi et abutendi denota, por um lado, o fato de que a propriedade privada tornou-se plenamente independente da comunidade e, de outro, a ilusão de que a própria propriedade privada descansa na simples vontade privada, na disposição arbitrária das coisas. Na prática, o abuti traz consigo limites econômicos muito bem determinados para o proprietário privado, se este não quiser ver sua propriedade, e com ela seu jus abutendi, passando para outras mãos, já que a coisa, considerada simplesmente em relação com a sua vontade, não é absolutamente uma coisa, mas é apenas no comércio e independentemente do direito que ela se torna uma coisa, uma verdadeira propriedade (uma relação que os filósofos chamam de ideia). Essa ilusão jurídica, que reduz o direito à mera vontade, resulta necessariamente, no desenvolvimento ulterior das relações de propriedade, no fato de que alguém pode ter um título jurídico de uma coisa sem ter a coisa realmente. (...) Sempre que, por meio do desenvolvimento da indústria e do comércio, surgiram novas formas de intercâmbio, por exemplo companhias de seguros, etc., o direito foi, a cada vez, obrigado a admiti-las entre os modos de adquirir propriedade.[3] 

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A partir dessa perspectiva, é possível perceber que, para Karl Marx, o Direito nada mais seria que uma criação social a partir de relações econômicas, as quais determinariam o conteúdo jurídico. Não obstante, o Direito seria uma “ideia”, no sentido de que teria seu fundamento de existência na materialidade.

Outrossim, para Marx, o Direito seria um dos principais instrumentos de dominação utilizado pela classe dominante, claro, sob um contexto histórico determinado. No caso da modernidade, Marx é categórico: o Estado torna-se burguês, isto é, a classe social “burguesia” captura o Estado, utiliza-se o Direito para manter sua hegemonia e, sem embargo, domina todas as outras.

A essa propriedade privada moderna corresponde o Estado moderno, que, comprado progressivamente pelos proprietários privados por meio dos impostos, cai plenamente sob o domínio destes pelo sistema de dívida pública, e cuja existência, tal como se manifesta na alta e na baixa dos papéis estatais na bolsa, tornou-se inteiramente dependente do crédito comercial que lhe é concedido pelo proprietários privados, os burgueses. (...) O Estado é a forma na qual os indivíduos de uma classe dominante fazem valer seus interesses comuns e que sintetiza a sociedade civil inteira de uma época, segue-se que todas as instituições coletivas são mediadas pelo Estado, adquirem por meio dele uma forma política. Daí a ilusão, como se a lei se baseasse na vontade e, mais ainda, na vontade separada de sua base real [realen], na vontade livre. Do mesmo modo, o direito é reduzido novamente à lei.[4] 

Portanto, para Karl Marx, o Direito seria o resultado da dinâmica social fundada na materialidade econômica em um certo período de tempo. Ademais, seria o instrumento de manutenção do status quo da classe social dominante, uma espécie de “chicote” – entendido como uma tipologia de violência – do dominador. 


2. Friedrich Engels e o Socialismo Jurídico

Friedrich Engels é, junto a seu melhor e famigerado amigo Karl Marx, o principal nome do socialismo do século XIX. Por meio de seu intenso trabalho e incessante pesquisa, Engels elucidou as ideias brilhantes de Marx ao público em geral e, não obstante, brindou toda a humanidade com material inédito post mortem do Mouro[5], documentação que auxiliou milhares de pesquisadores pelo mundo afora.

Com efeito, quanto ao Socialismo Jurídico, Engels foi quem sistematizou com maior especificidade e com maior ênfase o tema. Ademais, em sua obra O Socialismo Jurídico, o eminente pensador descreve pedagógica e objetivamente seu ponto de vista sobre a história do Direito europeu ocidental, in literis:

Na Idade Média, a concepção de mundo era essencialmente teológica. A unidade interna europeia, de fato inexistente, foi estabelecida pelo cristianismo diante do inimigo exterior comum representado pelo sarraceno. Essa unidade do mundo europeu ocidental, formada por um amálgama de povos em desenvolvimento, foi coordenada pelo catolicismo. A coordenação teológica não era apenas ideal; consistia, efetivamente, não só no papa, seu centro monárquico, mas sobretudo na Igreja, organizada feudal e hierarquicamente, a qual, proprietária de cerca de um terço das terras, em todos os países, detinha poderosa força no quadro feudal.[6] 

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Ora, já no parágrafo inaugural da obra, Engels define sua perspectiva: o Direito da Europa Ocidental sofreu mutações substanciais pelos milênios. Com efeito, depreende-se que houve uma transição entre Direito Teológico – Canônico – e Direito Laico – Racional e não confessional.

Essas mudanças, numa perspectiva materialista-histórica, teriam ocorrido a partir de mudanças estruturais da sociedade europeia, isto é, devido à transição socioeconômica do feudalismo ao mercantilismo o Direito teria sido transmutado da metafísica teológica à concepção racional laica.

Enquanto o modo de produção feudal se baseava, essencialmente, no autoconsumo de produtos elaborados no interior de uma esfera restrita – em parte pelo produtor, em parte pelo arrecadador de tributos –, os burgueses eram sobretudo e com exclusividade produtores de mercadorias e comerciantes. A concepção católica de mundo, característica do feudalismo, já não podia satisfazer à nova classe e às respectivas condições de produção e troca. Não obstante, ela ainda permaneceu por muito tempo enredada no laço da onipotente teologia. Do século XIII ao século XVII, todas as reformas efetuadas e lutas travadas sob bandeiras religiosas nada mais são, no aspecto teórico, do que repetidas tentativas da burguesia, da plebe urbana e em seguida dos camponeses rebelados de adaptar a antiga concepção teológica de mundo às condições econômicas modificadas e à situação de vida da nova classe. Mas tal adaptação era impossível. A bandeira religiosa tremulou pela última vez na Inglaterra no século XVII, e menos de cinquenta anos mais tarde aparecia na França, sem disfarces, a nova concepção de mundo, fadada a se tornar clássica para a burguesia, a concepção jurídica de mundo.[7] 

Essa análise indica, no incipiente surgimento da “concepção jurídica” stricto sensu, uma espécie de adaptação de discursos, isto é, não teria havido uma ruptura pontual, mas sim uma mudança lenta, gradual e contínua: um processo histórico a partir da mudança material da sociedade.

Tratava-se da secularização da visão teológica. O dogma e o direito divino eram substituídos pelo direito humano, e a Igreja pelo Estado. As relações econômicas e sociais, anteriormente representadas como criações do dogma e da Igreja, porque esta as sancionava, agora se representam fundadas no direito e criadas pelo Estado. Visto que o desenvolvimento pleno do intercâmbio de mercadorias em escala social – isto é, por meio da concessão de incentivos e créditos – engendra complicadas relações contratuais recíprocas e exige regras universalmente válidas, que só poderiam ser estabelecidas pela comunidade – normas jurídicas estabelecidas pelo Estado –, imaginou-se que tais normas não proviessem dos fatos econômicos, mas dos decretos formais do Estado. Além disso, uma vez que a concorrência, forma fundamental das relações entre livres produtores de mercadorias, é a grande niveladora, a igualdade jurídica tornou-se o principal brado de guerra da burguesia. Contribuiu para consolidar a concepção jurídica de mundo o fato de que a luta da nova classe em ascensão contra os senhores feudais e a monarquia absoluta, aliada destes, era uma luta política, a exemplo de toda luta de classes, luta pela posse do Estado, que deveria ser conduzida por meio de reivindicações jurídicas.[8] 

Ora, Engels indica que o Direito nada mais seria que o reflexo de relações materiais entre fatores de produção no seio de uma sociedade, ou seja, que o Direito seria a externalização e a estabilização ideal da dinâmica econômica-laboral entre os membros de um povo.

A concepção materialista da história de Marx ajuda a classe trabalhadora a compreender essa condição de vida, demonstrando que todas as representações dos homens – jurídicas, políticas, filosóficas, religiosas, etc. – derivam, em última instância, de suas condições econômicas de vida, de seu modo de produzir e trocar os produtos. Está posta com ela a concepção de mundo decorrente das condições de vida e luta do proletariado; à privação da propriedade só podia corresponder a ausência de ilusões na mente dos trabalhadores. E essa concepção proletária de mundo percorre agora o planeta.[9] 

Frise-se que tanto Engels quanto Marx entenderam o Direito como uma consequência da vida material dos povos e, outrossim, como o resultado da consciência parcial de mundo dos dominadores econômicos em cada contexto. As elites, pois, utilizariam-se dos aparatos administrativo e coercitivo do Estado para manutenção e estabilização da dinâmica do “opressor-oprimido”.[10]


Conclusão

Espero que este trabalho cause reflexão e, até certo ponto, espanto a quem o ler. Diante ao conformismo da lógica do capital, nada melhor que a crítica e a conscientização quanto ao contrassenso ideológico corriqueiro ainda preponderante nas camadas populares e até na academia. Neste trabalho, pois, tento demonstrar como as mudanças materiais influenciaram a organização socioeconômica humana na perspectiva de Karl Marx e de Friedrich Engels, sobretudo quanto ao Direito. Muito se fala sobre a dupla, porém pouco se lê da obra original dos dois pensadores. Sejamos mais que meros reprodutores de preconceitos e de clichês virtuais: não vale a pena sustentar fetichismo intelectual por algo que não se estudou. Eis, portanto, minha pequena contribuição a quem ler este trabalho.


Referências

 ENGELS, Friedrich. MARX, KARL. Manifesto Comunista. 1ª edição, 7ª reimpressão. São Paulo, SP: Boitempo, 2022; 

ENGELS, Friedrich. O socialismo jurídico. 1ª edição, 5ª reimpressão. São Paulo, SP: Boitempo, 2021; 

MARX, Karl. A ideologia alemã. 1ª edição, 10ª reimpressão. São Paulo, SP: Boitempo, 2022; 

MARX, Karl. Contribuição à crítica da economia política. 2ª edição, 1ª reimpressão. São Paulo, SP: Expressão Popular, 2009;


Notas

 [2] MARX, 2009. Páginas 47 e 48;

[3] MARX, 2022. Páginas 76 e 77;

[4] MARX, 2022. Páginas 75 e 76;

[5] Apelido de Karl Marx;

[6] ENGELS; KAUTSKY, 2021. Página 17;

[7] ENGELS; KAUTSKY, 2021. Página 18;

[8] ENGELS; KAUTSKY, 2021. Página 19;

[9] ENGELS; KAUTSKY, 2021. Página 21;

[10] ENGELS; MARX, 2022;

Sobre o autor
Fernando Luz Sinimbu Portugal

Mestre em Ciências Sociais na Pontifícia Universidade Católica de Minas Gerais (2023-2024). Graduado em Direito na Pontifícia Universidade Católica de Minas Gerais (2015); especialista em Direito Público pela Pontifícia Universidade Católica de Minas Gerais (2017); especialista em Direito Constitucional (2021); Direito Administrativo (2021); Direito Civil e Direito Processual Civil (2021) e em Ciências Criminais (2021); em Direitos Humanos (2023) e em Ensino à Distância (2023) no Centro Universitário União das Américas - Uniamérica; graduado em Teologia (2022), em História (2023) e em Administração (2023) na Universidade Estácio de Sá.

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

PORTUGAL, Fernando Luz Sinimbu. Ensaio sobre o socialismo jurídico na perspectiva de Karl Marx e de Friedrich Engels. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 28, n. 7210, 29 mar. 2023. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/103223. Acesso em: 24 nov. 2024.

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