Símbolo do Jus.com.br Jus.com.br
Artigo Selo Verificado Destaque dos editores

Razoabilidade e proporcionalidade no direito processual administrativo brasileiro

Exibindo página 1 de 3
Agenda 29/09/2007 às 00:00

Na definição das formalidades essenciais, na anulação, revogação e convalidação, na impulsão de ofício do processo, na interpretação das normas administrativas, a razoabilidade e a proporcionalidade devem ser sempre observadas.

RESUMO

Os princípios da razoabilidade e da proporcionalidade estão explicitamente elencados como norteadores do processo administrativo no âmbito federal. Levando-se em conta que, a partir do estudo das normas processuais, existe um verdadeiro e autônomo Direito Processual Administrativo, impende analisar a influência que os princípios em questão irão exercer sobre a práxis processual. Para tanto, é necessário estabelecer-lhes os contornos e estudar de forma pormenorizada a influência normogenética de ambos na Lei de Processo Administrativo Federal (Lei nº 9.784/99), além de prever a conseqüência, no plano da validade, da prática de atos desarrazoados e desproporcionais.

PALAVRAS-CHAVE:Razoabilidade, proporcionalidade, princípios, processo administrativo.


INTRODUÇÃO

Os princípios da razoabilidade e da proporcionalidade estão positivados na Lei nº 9.784/99 (art. 2º, caput) [01]. Além disso, são reconhecidos pela doutrina e pela jurisprudência também como princípios do sistema constitucional brasileiro (CF, art. 5º, §2º) e que, portanto, regem não só o Direito Processual, mas todos os ramos da Ciência Jurídica.

O intuito do presente trabalho é investigar a aplicação desses dois princípios especificamente no âmbito do processo administrativo federal. Assim, serão necessários alguns cortes metodológicos: a) interessa a aplicação (material ou formal) de ambos os princípios no Direito Processual não genericamente, mas sim com relação diretamente ao processo administrativo; b) por questões de ordem prática, a análise empreendida se restringirá ao processo administrativo federal, regulado pela Lei nº 9.784/99 (LPA), embora as normas nela contidas possam ser consideradas standards do processo administrativo nacional.

Imprescindível esclarecer, a priori, o referencial teórico aqui adotado. A análise dos princípios levará em conta a autodenominada Nova Hermenêutica Constitucional, com todas as conseqüências daí advindas – a mais relevante, sem dúvida, é o reconhecimento da força normativa (HESSE) dos princípios, que passam a ser tidos, junto com as regras, como espécies de normas jurídicas (ALEXY, DWORKIN e CANOTILHO).

Por outro lado, a concepção sistêmica (CANARIS) é a explicação utilizada para abordar temas como a natureza das normas processuais e a relação entre princípios e regras dentro do ordenamento jurídico. A adoção dessa teoria trará, como se vê, conseqüências importantes para o desenvolvimento da pesquisa; entre elas, nossa concepção da existência de um processo administrativo propriamente dito, e não apenas de um mero procedimento (CARVALHO FILHO), o que resulta na defesa de um Direito Processual Administrativo autônomo.

Por fim, é de se esclarecer que a metodologia adotada será eminentemente a analítica. Sem embargo de outras técnicas, a maior parte desta investigação se baseará na análise de dados empíricos e normativos: textos da Constituição, da legislação, ensinamentos da doutrina e decisões judiciais.

Será necessário, primeiramente, descrever a idéia de um Direito Processual Administrativo. Ao depois, obviamente, proceder-se-á ao estabelecimento do conteúdo de ambos os princípios para, finalmente, explicar a atuação sistêmica e normogenética da razoabilidade e da proporcionalidade.


1. SISTEMA JURÍDICO, NORMA JURÍDICA E NORMA PROCESSUAL.

De acordo com as modernas concepções da Hermenêutica Constitucional e da Teoria dos Sistemas, pode-se afirmar que o sistema constitucional (e, por conseguinte, o sistema jurídico em geral) é um sistema aberto de regras e princípios (CANOTILHO). Isso, a par da valorização das influências sociais como input sistêmico, significa reconhecer que as normas jurídicas são constituídas por duas espécies: as regras e os princípios.

Grosso modo, pode-se dizer que os princípios são normas mais abstratas do que as regras; não têm, portanto, uma aplicabilidade aos fatos tão direta quanto estas (necessitam de uma mediação concretizadora); ao contrário das regras, podem ser sopesados, entrando em conflito sem perderem a validade, pois não obedecem à regra do tudo ou nada (DWORKIN) [02]. Por outro lado, fundamentam o próprio sistema, dando-lhe sustentação, coerência e legitimidade (função sistêmica), além de servirem de base e ponto de partida para outras normas – as regras (função normogenética).

Esse posicionamento – que diverge fundamentalmente da dicotomia normas/princípios da doutrina clássica – justifica teoricamente a necessidade prática sentida nos dias atuais de conferir juridicidade (leia-se: força normativa e exigibilidade) aos princípios. Com isso, busca-se incrementar a força normativa da Constituição, abandonando-se a idéia de que no sistema constitucional existiriam preceitos não dotados de coercibilidade.

Assim, e é preciso que se esclareça de pronto essa questão, os princípios integram o rol das normas jurídicas, pois possuem os requisitos de exigibilidade, heteronomia e bilateralidade-atributiva (REALE). Assim, podem ser aplicados diretamente aos fatos; servir de base e fundamento para a criação e interpretação de outras normas; ou, ainda, solucionar conflitos ou antinomias dentro do ordenamento jurídico.

Toda essa explanação preliminar incidiu sobre um dos elementos do sistema jurídico: as normas. Acontece que, como todos os sistemas, o ordenamento jurídico é um conjunto, ou seja, um agrupamento ordenado de elementos. Só que esses elementos constitutivos (repertório) se inter-relacionam de uma maneira específica, segundo a estrutura do sistema. Temos, então, que o sistema jurídico é formado de normas jurídicas, fatos e valores (REALE) – que formam o repertório – e de normas especificamente sistêmicas que regulam a inter-relação entre os integrantes do repertório – o que constitui a estrutura desse sistema (FERRAZ JR.).

Porém, o ordenamento jurídico é singular: existem elementos que integram, a um só tempo, o repertório e a estrutura do sistema. Senão, vejamos: a norma insculpida no texto do art. 69 da Constituição ("As leis complementares serão aprovadas por maioria absoluta") é, já por ser norma, parte do repertório do sistema jurídico. Mas, por outro lado, ela se destina a regular a produção de outras normas, isto é, rege a relação entre os elementos do sistema – o que justifica incluí-la também na estrutura do ordenamento.

Essa peculiaridade do sistema jurídico autoriza classificar as normas jurídicas (sejam normas-regras ou normas-princípios) em duas categorias: as normas de primeiro grau, ou meras normas jurídicas, ou normas de conteúdo material, que "apenas" integram o repertório do sistema; e as normas de segundo grau, ou normas de conteúdo formal, ou ainda normas processuais, que, além de fazerem parte do repertório, ainda integram a estrutura do sistema, uma vez que regulam a produção de outras normas jurídicas (normae normarum, normas sobre normas).

Processo é um conjunto de atos ordenados para se atingir um fim [03]; quando o fim é a produção de uma norma jurídica, as normas que regulam o processo são normas de segundo grau. Resta-nos, portanto, concluir que normas processuais são as normas jurídicas que regulam a criação de outras normas e que, por isso, integram tanto a estrutura quanto o repertório do ordenamento jurídico.

Embora as normas processuais possam ser consubstanciadas tanto sob a forma de princípios quanto de regras, convém fazer uma observação: os princípios serão, necessariamente, normas de segundo grau, ou normas processuais. Embora também tenham um caráter de normas materiais – o que também ocorre com as normas processuais em geral –, pois também se aplicam diretamente aos casos concretos, os princípios possuem, como se disse, uma função sistêmica e normogenética.

Assine a nossa newsletter! Seja o primeiro a receber nossas novidades exclusivas e recentes diretamente em sua caixa de entrada.
Publique seus artigos

Assim, essa espécie de norma serve (também) para fundamentar e legitimar o sistema, além de servir de ponto de partida para a criação de outras normas (função normogenética). Ora, se se prestam a regular a criação de normas jurídicas, são também normas processuais. Disso resulta a íntima ligação entre as normas principiológicas e o processo. Princípios não são apenas fundamento para o processo: são, também, parte dele; não apenas fundamentam o Direito Processual: são também normas de Direito Processual.


2. DIREITO PROCESSUAL ADMINISTRATIVO.

Em se adotando a posição acima referida (as normas processuais são normas de segundo grau, pois regulam a produção de outras normas), é possível identificar alguns exemplos de preceitos jurídicos que têm sua gênese e aplicação determinada por outras regras ou princípios. Em outras palavras, é possível descobrir qual a finalidade de cada processo.

Processo é, como dissemos, um conjunto de atos ordenados e inter-relacionados para a realização de um fim (produção de uma norma jurídica de decisão). Não há que se confundir, porém, o conceito de processo com o de procedimento. Na verdade, este último é apenas um dos aspectos do processo: enquanto o processo é um conjunto de atos ordenados e inter-relacionados, pode-se dizer que o procedimento é a ordem (juridicamente predefinida) em que se praticam os atos de um processo.

O processo é, pois, o meio (instrumento) de que se utiliza a ordem jurídica democrática para regular a criação do próprio direito; é um direito da produção do direito, seja a partir da legislação, da decisão concreta ou mesmo da interpretação. De acordo com esse conceito, então, determinadas normas passarão a ser incluídas no rol das normas processuais (o que não lhes retira a eficácia material, por óbvio): a Lei de Introdução ao Código Civil, os princípios do art. 5º da CF, e até mesmo as regras relativas ao número de ocupantes de cada Casa Legislativa, pois são dispositivos que, direta ou indiretamente, regulam a produção de normas jurídicas.

É possível, ainda, estabelecer uma classificação das normas de processo. Se atentarmos para o fato (anteriormente pressuposto) de que elas regulam a produção de normas jurídicas, podemos verificar que as normas produzidas (objeto do processo) podem ser: a) espécies normativas enumeradas no art. 59 da CF (emendas à Constituição, leis complementares, ordinárias, delegadas, decretos legislativos, resoluções e medidas provisórias: leis em sentido amplo, normas (normalmente gerais e abstratas) aprovadas pelo Congresso Nacional ou por órgão com poder (ainda que transitório) de legislar; b) decisões judiciais, dirigidas à resolução de um caso concreto, e que são normas jurídicas concretas (acórdãos, sentenças e decisões interlocutórias); e, por fim, c) decisões administrativas (atos administrativos), normas concretas que visam a realizar o interesse público por meio da aplicação da lei ao caso concreto, com a utilização das prerrogativas conferidas à Administração Pública.

Assim, os processos podem ser classificados segundo a natureza da norma que se destinam a produzir: o processo judicial regula a produção de decisões jurisdicionais; o processo legislativo determina a forma de produção e o conteúdo das leis e demais espécies normativas gerais e abstratas; e o processo administrativo se destina à produção pela Administração de um ato administrativo (norma concreta), que é o fim último do processo [04].

Com isso, pode-se perceber que defendemos que os processos legislativo e administrativo não se resumem a meros procedimentos. Ao contrário, configuram verdadeiros processos, uma vez que regulam a produção de normas jurídicas a partir de um procedimento predefinido e de acordo com determinadas regras e princípios específicos que visem a resguardar a ordem jurídica contra o surgimento de normas ilegítimas ou arbitrárias.

Daí decorre nossa defesa da existência de um Direito Processual Administrativo autônomo, que deve ser estudado como um verdadeiro Direito Processual, um direito instrumental, que permita garantir os interesses dos administrados frente ao poder público. É com base nisso que se realiza o presente estudo, motivo pelo qual essa explanação preliminar – posto que longa – se fazia indispensável.


3. AS NOÇÕES DE RAZOABILIDADE E PROPORCIONALIDADE.

GUERRA FILHO aponta a semelhança da etimologia dos vocábulos razão e proporção. Ambos derivam da matemática (do latim ratio e proportio), o primeiro ligado à qualidade, à natureza de uma fração; o segundo, referindo-se mais à equivalência quantitativa de dois números fracionários (duas razões equivalentes). Obviamente, essa origem tem de ser levada em conta quando da análise dos vocábulos derivados razoabilidade e proporcionalidade.

Dispensaremos, aqui, uma apresentação histórica mais detalhada do surgimento de ambos os conceitos na doutrina jurídica moderna [05], bem como da etimologia de ambos [06]. Alguns pontos relevantes devem, porém, ser preliminarmente esclarecidos.

3.1. Princípio da razoabilidade.

A maioria dos etimólogos concorda que o latim ratio (razão, tanto no sentido de faculdade humana, quanto na acepção matemática já exposta) é a raiz comum dos vocábulos racional e razoável. A diferença reside na carga semântica que cada um deles adquiriu com o passar do tempo: enquanto racional passou a ter uma denotação eminentemente objetiva, razoável guarda ainda um quê de subjetivismo, pois pressupõe uma estimativa, uma valoração que permita classificar algo em aceitável ou inaceitável perante a razão média.

Daqui se depreende que razoável não diz respeito somente à racionalidade de uma atitude; liga-se, também, à adequação de que se reveste (ou não). Basta citar um exemplo brasileiro: a prisão de uma mulher por haver furtado duas cebolas pode até ser considerada racional (o trâmite da prisão seguiu caminhos trilhados com a ajuda da razão, inclusive para verificar a adequação típica da conduta). Entretanto, é totalmente desarrazoado (não-razoável), tendo em vista os valores sociais e a função prática do sistema penal. Está claro que a classificação de algo como racional depende muito menos de circunstâncias subjetivas do que o juízo sobre a razoabilidade do mesmo fato.

A razoabilidade (qualidade daquilo que é razoável) foi utilizada principalmente nos sistemas da common law. Primitivamente oriunda do direito civil, servia como critério para verificar a existência de culpa em determinada conduta: devia-se investigar se o comportamento destoava do que razoavelmente se podia esperar do homem comum, do bom pai de família. Com o tempo, tal princípio se estendeu, também, para a seara do Direito Público, quando passou a servir de critério para a validade dos atos estatais (tanto legislativos quanto administrativos).

Enxerga-se também uma certa influência da razoabilidade no Direito Público de origem latina, como a regra da livre escolha dos meios do Direito francês e a exigência da raggiovelleza italiana [07].

O princípio foi, então, paulatinamente inserido no Direito Brasileiro, sobretudo por obra da doutrina administrativista (e, posteriormente, também da constitucionalista) e da jurisprudência. Passou a ser reconhecido como um princípio implícito na Constituição Federal de 1988 (ingressando no sistema por força da abertura prevista no art. 5º, §2º), ou mesmo como decorrência de outros princípios, como isonomia, devido processo legal, etc. Foi explicitado, no âmbito da legislação federal, pela Lei de Processo Administrativo (LPA: Lei nº 9.784/99), precisamente no já citado art. 2º, caput. [08]

A doutrina vacila em lhe atribuir um conteúdo preciso. Há quem defenda uma definição meramente negativa, segundo a qual apenas se pode saber o que não é razoável, mas não se pode definir o que é razoabilidade. Outra tendência é a que considera esse princípio como um conceito jurídico indeterminado, tal como a moralidade, a boa-fé, a ordem pública e a dignidade humana.

Ambos os posicionamentos se nos afiguram inadequados. Com relação ao primeiro, é por demais intuitivo definir algo apenas por meio da sua ausência. Embora haja casos em que é inegável a facilidade em reconhecer a falta de razoabilidade, uma "definição" negativa deixará grande espaço para uma "zona gris", em que não se saberá, ao certo, se há ou não razoabilidade. E é justamente nesses casos que importa analisar se o fato é ou não razoável. Afinal, quando a ausência de adequação entre meios e fins for evidente, não há necessidade de se envidarem maiores esforços. Em outros termos: seguindo a lição de Parmênides, devemo-nos afastar do caminho do não-ser, pois aí não repousa a verdade.

Já a segunda hipótese também pode gerar conseqüências inaceitáveis para a normatividade do princípio em questão, que corre o risco de perder a operacionalidade (tornar-se tão indefinido que chegue quase a ser juridicamente inútil) ou, talvez pior, de se vulgarizar, como parece acontecer com a dignidade humana [09] (o que não deixa de levar, também, à indefinição e inutilidade). Também desse caminho nos devemos afastar [10].

Resta-nos, portanto, construir uma conceituação do que seja o princípio da razoabilidade. Embora não haja consenso algum na doutrina que trata do tema, pode-se afirmar com relativa segurança que a razoabilidade se relaciona ao aspecto qualitativo da relação meio-fim. Dessa forma, é razoável o ato que, para atingir determinada finalidade, se utiliza de meios adequados e necessários, isto é, meios que são racionalmente aptos para alcançar o fim proposto e que não acarretem sacrifícios exagerados ou desnecessários aos direitos e interesses juridicamente protegidos.

Assim, como dissemos, a razoabilidade estuda a compatibilidade entre determinada conduta e valores tutelados pela ordem jurídica. Estimam-se quais os meios possíveis para se realizar um fim admissível; se o instrumento escolhido for um dos meios selecionados e se for o menos gravoso destes, pode-se afirmar que o ato é razoável.

Existem, então, dois elementos da razoabilidade: a adequação do meio e a necessidade da utilização desse instrumento. O meio utilizado deve ser um dos que são aptos a alcançar o resultado pretendido (meio adequado, elemento da adequação); além disso, deve ser o meio menos gravoso, além de imprescindível (meio necessário, elemento da necessidade ou exigibilidade) [11].

Ressalte-se o caráter qualitativo da análise sobre a razoabilidade, ao contrário do que ocorre com a proporcionalidade – como veremos. Aliás, quem conheça a doutrina alemã sobre o princípio da proporcionalidade verá que dois dos requisitos apontados na formulação desse preceito (adequação, necessidade e proporcionalidade em sentido estrito) foram utilizados em nossa conceituação da razoabilidade: o ponto será esclarecido em breve, quando abordarmos a distinção entre razoabilidade e proporcionalidade.

A título de apêndice, é importante falar, ainda, sobre o topos normativo do princípio da razoabilidade, isto é, sobre a posição ocupada pelo princípio no esquema normativo do sistema constitucional brasileiro. Os seguidores da jurisprudência alemã tendem a fazê-lo decorrência do preceito do Estado de Direito (CF, art. 1º, caput). Já quem se baseie nas decisões da Corte Suprema norte-americana tende a identificar o princípio da razoabilidade dentro do devido processo legal (substantivo): CF, art. 5º, LIV. O STF se aproxima mais da doutrina americana (AI-AgR nº 390.237/RJ, 1ª Turma, Relator Ministro Moreira Alves, DJ de 24.10.2002, p. 45; ADIn-MC nº 1.511, voto do Min. Carlos Velloso, DJ de 06.06.2003). Há, ainda, quem entenda que a razoabilidade como princípio decorrente do sistema constitucional em geral, e não por meio de nenhum preceito constitucional específico. [12]

3.2. Princípio da proporcionalidade.

Conforme já exposto, o vocábulo proporcional deriva do latim proportio, que se refere principalmente à divisão em partes iguais ou correspondentes a uma dada razão. É umbilicalmente ligado à idéia de quantidade, de justa medida, de equilíbrio.

Começou a ser utilizado na Ciência Jurídica moderna por influência do direito germânico, notadamente da jurisprudência do Bundesverfassungsgericht (Tribunal Constitucional Federal Alemão), que, na resolução de casos concretos, formulou uma verdadeira teoria sobre o princípio.

Apesar da falta de clareza tanto da doutrina sobre o tema quanto da própria fonte judicial em que se desenvolveu, podemos enxergar na proporcionalidade uma dupla faceta: a material e a formal. Por meio da aplicação formal desse princípio, é possível sindicar a legitimidade dos atos (principalmente estatais), para verificar se respeitam a justa medida, a proporção entre causa e efeito, entre meio e fim. Por outro lado, uma aplicação formal da proporcionalidade diz respeito ao conflito entre princípios. Sabendo-se que tais espécies de norma podem entrar em conflito sem perderem a validade (não obedecem à "regra do tudo ou nada"), é preciso definir qual vai prevalecer no caso concreto, ponderando a importância tópica de cada um deles naquela situação; para tanto, utiliza-se um critério de proporcionalidade, que leve em conta o "peso" de cada um para a situação sob exame. Em ambos os casos (aplicação formal ou material), percebe-se a idéia de quantidade ínsita à análise da proporcionalidade.

São tradicionalmente apontados como elementos da proporcionalidade, em atenção à teoria formulada no Direito alemão: a adequação, a necessidade (exigibilidade) e a proporcionalidade em sentido estrito. Os dois primeiros, como já explicado, correspondem à idoneidade do meio para atingir o fim (adequação) e à imprescindibilidade de sua utilização (necessidade). O segundo se relaciona mais diretamente à estimação da quantidade da utilização do meio e da mensuração do fim: serve para investigar se o ato não utilizou o meio de forma exagerada ou insuficiente. Aborda, portanto, o equilíbrio quantitativo entre causa e efeito, meio e fim, ato e conseqüência jurídica.

Note-se que, dos três elementos apontados, o único que se vincula propriamente à noção de quantidade é o terceiro, apropriadamente denominado proporcionalidade em sentido estrito, isto é, proporcionalidade propriamente dita.

O princípio da proporcionalidade transcendeu o direito alemão e "contagiou" outros sistema jurídicos, principalmente a partir da ascensão do chamado "pós-Positivismo". Nunca é demais lembrar, porém, que a construção da teoria que lhe é subjacente se deu em um ordenamento jurídico peculiar, que não é (nem poderia ser) idêntico ao brasileiro. Por isso, é preciso proceder com cuidado na "importação" da teoria da proporcionalidade tal como elaborada na Alemanha, sob pena de se adotar uma formulação incompatível com nosso sistema constitucional.

Em suma: o princípio da proporcionalidade diz respeito à compatibilidade quantitativa entre meios e fins, ou seja, permite a análise da equivalência de quantidade entre causa e efeito, meio e fim, ato e conseqüência, vedando atos que, apesar de se utilizarem dos meios corretos, abusam na quantificação destes. Não sem razão, é também chamado de "princípio da proibição do excesso". E, na feliz formulação de Jellinek, corresponde à máxima de que "não se abatem pardais com tiros de canhão".

3.3. Distinções entre razoabilidade e proporcionalidade.

A partir das explicações anteriores é possível perceber a dificuldade que encontrará quem deseje estremar os conceitos de razoabilidade e proporcionalidade. Existem, pelo menos, quatro posições possíveis sobre a questão.

A primeira corrente considera os termos sinônimos ou fungíveis. Razoabilidade e proporcionalidade têm raiz e objetivos comuns, apenas derivaram de sistemas jurídicos diferentes (o primeiro da common law e da jurisprudência administrativa latina, o segundo do ramo teutônico da civil law). Assim, o estabelecimento de uma sinonímia entre ambos não gera maiores problemas de ordem prática, já que, utilizando-se um ou outro, os resultados a que se pode chegar serão os mesmos. É a posição adotada, entre outros, por Luís Roberto Barroso. Também em alguns julgados do Supremo Tribunal Federal se pode notar a utilização indistinta de ambos os termos (AI-AgR-ED-ED nº 265.064/MT, 2ª Turma, Relator Ministro Carlos Velloso, DJ de 23.08.2002, p. 114; HC nº 76.060/SC, 1ª Turma, Relator Ministro Sepúlveda Pertence, DJ de 15.05.1998, p. 44). Em sentido contrário: ADC nº 9/DF, Relatora p/ Acórdão Ministra Ellen Gracie, DJ 23.04.2004, p. 6)

Uma segunda tendência – majoritária no Brasil – defende que a proporcionalidade é apenas um aspecto da razoabilidade. Dessa maneira, um ato seria razoável quando, além de proporcional (uso comedido dos meios), fosse racionalmente aceitável e legítimo (uso dos meios adequados). Um ato proporcional pode não ser razoável, mas a recíproca é impossível. É a posição defendida, entre outros, por Celso Antônio Bandeira de Mello, Maria Sylvia Zanella Di Pietro, José Roberto Pimenta Oliveira e José dos Santos Carvalho Filho.

De acordo com a terceira posição, diametralmente oposta à anterior, é a proporcionalidade que engloba a razoabilidade. Assim, um ato pode ser razoável e não proporcional, mas não o contrário, pois a proporcionalidade pressupõe a razoabilidade. Os defensores dessa posição se baseiam principalmente nos ensinamentos da doutrina alemã, que considera a proporcionalidade composta de três elementos: adequação, necessidade e proporcionalidade em sentido estrito. Com base nisso, enxergam no princípio da proibição do excesso mais que mera correspondência quantitativa, englobando até mesmo o critério de razoabilidade.

Por fim, há uma tendência no sentido de que os dois princípios, apesar de possuírem um tronco comum, são dessemelhantes. Um não engloba o outro: ocupam campos normativos distintos e específicos. É a posição que adotamos.

A primeira posição exposta não se sustenta. Se é certo que há, na prática, uma fungibilidade entre os princípios, isso não implica que os dois sejam conceitualmente idênticos. Aliás, a própria idéia de fungibilidade pressupõe conceitos distintos que, justamente por serem diferentes, podem ser – na prática (e não em termos conceituais) – substituídos um pelo outro.

Segunda e terceira correntes padecem do mesmo equívoco: considerar que um princípio engloba o outro é ignorar o campo singular de significação que cada um deles possui e que, justamente por isso, permite uma análise mais racional dos atos para saber se são razoáveis e proporcionais.

Ademais, é preciso notar que os partidários da segunda corrente não expõem qual o conteúdo específico da razoabilidade além da proporcionalidade. Afinal, salvo referência em contrário, esta se compõe dos três elementos, dois deles ligados a aspectos qualitativos; qual seria, então, o conteúdo próprio da razoabilidade, se a análise dos aspectos qualitativos já é feita mesmo em sede da proporcionalidade?

Já a terceira corrente peca por superdimensionar a proporcionalidade, atribuindo-lhe um conceito idêntico ao dado pela jurisprudência alemã. Ao se "importarem" conceitos estrangeiros, às vezes se relevam aspectos específicos do sistema jurídico brasileiro (KRELL). No exemplo em questão: o Brasil recepciona tanto a proporcionalidade quanto a razoabilidade. Nesse contexto, não se pode esquecer que, quando doutrina e jurisprudência alemãs incluem no conceito de proporcionalidade aspectos qualitativos, é porque não se costuma, lá, recorrer à noção de razoablidade. No Brasil, com ambos os princípios em plena existência, não há porque reduzir um ao outro ou vice-versa.

É por isso que adotamos a idéia de que razoabilidade e proporcionalidade – embora possuam raízes comuns e sejam, realmente, muito próximos um do outro – não se confundem nem se reduzem um ao outro. A razoabilidade diz respeito ao aspecto qualitativo do ato: se o meio escolhido é adequado e necessário; já a proporcionalidade se refere à questão quantitativa: se o meio escolhido não foi usado com excesso.

Nesse esquema, o que a doutrina alemã chama de proporcionalidade (adequação, necessidade e proporcionalidade em sentido estrito) configura um super-princípio que pode ser, no ordenamento brasileiro, dividido em razoabilidade (adequação e necessidade) [13] e proporcionalidade (o que corresponde à proporcionalidade em sentido estrito ou propriamente dita). É essa a terminologia de que nos utilizaremos a partir de agora, ressalvando, porém, que a nomenclatura não pode obscurecer a real natureza de ambos os princípios: assim, mais importante que a classificação é a aplicação prática de ambos.

A propósito, a LPA não define nenhum dos princípios, mas apenas (significativamente) estabelece a observância de determinados critérios. Nesse ponto, trata exatamente de tudo o que analisamos: a adequação, a necessidade e a proporcionalidade. Afinal, a Administração deverá atentar para a "adequação [aspecto qualitativo: razoabilidade] entre meios e fins, vedada a imposição de obrigações, restrições e sanções em medida [quantitativo: proporcionalidade] superior àquelas estritamente necessárias [critério qualitativo: razoabilidade] ao atendimento do interesse público" (art. 2º, VI).

Sobre o autor
João Trindade Cavalcante Filho

Professor de Direito Administrativo e Constitucional do OBCURSOS/Brasília. Técnico Administrativo da Procuradoria Geral da República, lotado no gabinete do Subprocurador-Geral da República Eitel Santiago (área criminal/STJ). Coordenador e Professor de Direito Constitucional e Administrativo do Curso Preparatório para Concursos e de Capacitação para Servidores, Estagiários e Terceirizados da Procuradoria Geral da República. Ex-professor de Direito Penal e Legislação Aplicada ao MPU do Curso Preparatório para Concursos da Escola Superior do Ministério Público da União. Membro do Instituto Brasileiro de Direito Constitucional (IBDC).

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

CAVALCANTE FILHO, João Trindade. Razoabilidade e proporcionalidade no direito processual administrativo brasileiro. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 12, n. 1550, 29 set. 2007. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/10471. Acesso em: 22 nov. 2024.

Publique seus artigos Compartilhe conhecimento e ganhe reconhecimento. É fácil e rápido!