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Casais homoafetivos e a possibilidade de procriação através da reprodução assistida

Agenda 15/07/2023 às 13:51

A regulamentação a respeito da reprodução medicamente assistida ainda é muito escassa.

1 INTRODUÇÃO

A recente modernização da sociedade trouxe consigo uma reestruturação da família e de seus respectivos conceitos. Antes formada por um homem, uma mulher e filhos, a família já não se encontra enrijecida pelo padrão clássico brasileiro. Hoje, existem vários tipos de família, com diferentes características e com novos hábitos, comportamentos, padrões de vida etc., ou seja, famílias onde os pais se encontram divorciados, ou onde a mulher é a figura maior, onde a união é de pais homossexuais, e claro, a família estruturada desde os primórdios, constituída de pai, mãe e filhos.

Como consequências desse período evolutivo surgiram novos fatos e conflitos devido ao interesse de formação de família pelos casais homoafetivos. Não é por acaso que debates acerca da estruturação familiar, tipos de famílias distintas, recomposição familiar, dentre outros estão sendo levantados em forma de discussão.

Sabendo-se que a reprodução e procriação entre pares homoafetivos é algo biologicamente impossível e considerando a vontade dessas pessoas de constituir uma família, tornou-se possível a adoção nestes casos. A partir deste ponto, novas leis começam a ser elaboradas para que essa nova reivindicação seja atendida. No entanto, ainda que a Constituição Federal de 1988 disponha sobre os direitos dessas pessoas, a questão nuclear não se trata apenas de direitos e deveres em discussão, mas da discriminação e das dificuldades sofridas por esses indivíduos, ao tentarem realizar adoção e registro dos seus filhos.

Reconhecidas as conquistas dos direitos de adoção por casais homoafetivos, a ciência veio com a alternativa das técnicas de reprodução assistida, objetivando que casais homoafetivos possam ter reconhecido seu direito fundamental à paternidade ou à maternidade, no entanto essas dificuldades reverberam implicando em lutas na justiça. Dessa forma, o presente Trabalho de Conclusão do Curso, traz à discussão o tema “Casais homoafetivos e a possibilidade de procriação através da reprodução assistida”, realizado a partir de pesquisa em teóricos que abordam o tema, bem como em legislação, jurisprudência e artigos da internet, objetiva defender a possibilidade de reprodução assistida por casais homoafetivos e verificar quais medidas existem para que estes casais possam alcançar a tão almejada família.

2 FAMÍLIA E SEXUALIDADE

O ser humano sempre se inclinou à manifestação dos vínculos afetivos, no entanto esse fator sofreu variações de ordem cultural, histórica e, predominantemente religiosa de acordo com maior aclamação e dominância da época e local. Na civilização ocidental, o Estado e a Igreja buscaram segregar o exercício da sexualidade do casamento e da família, e o fazem até os dias atuais.

Tratar sobre o tema “família” e suas conceituações é um ato de grande importância para que haja um melhor entendimento do atual estado da sociedade mundial e brasileira, no entanto é inviável escolher um só significado para a palavra família, já que esta se encontra continuamente em processo de mudança e adaptações. Pode-se falar em novas configurações familiares e suas formações, bem como Dias (2000, p. 54) que retrata fielmente a condição social cotidiana sob a qual a sociedade vive atualmente:

Comprovada a existência de um relacionamento em que haja vida em comum, coabitação e laços afetivos, está-se à frente de uma entidade familiar, forma de convívio que goza de proteção constitucional, nada justificando que se desqualifique o reconhecimento dela, pois o só fato dos conviventes serem do mesmo sexo não permite que lhes sejam negados os direitos assegurados aos heterossexuais.

De acordo com o pensamento de Coelho (2012), nunca existiu e possivelmente nunca existirá uma única forma de família. Entende ainda o referido autor que é possível haver um estudo generalizado acerca das famílias, mas nunca um estudo fiel à “família”. Assim, torna-se mais vantajoso fazer um breve passeio por alguns modelos de família, os que mais influenciaram e contribuíram com as mudanças e transformações ocorridas às famílias do mundo ocidental de origem europeia, considerando as relações sociais e interpessoais entre todas as gerações.

2.1 Evolução da formação das famílias

Acredita-se que a origem da família se deu na pré-história com o surgimento dos primeiros humanos e adiante, a formação do que se chama de “comunidade primitiva”, que eram grupos de humanos que sobreviviam basicamente da caça e dependiam integralmente da natureza. O laço familiar de um grupo existia a partir de um ancestral comum, o “patriarca”, que geralmente era do sexo masculino. Essas primeiras entidades familiares, onde os laços consanguíneos eram os fatores principais, eram chamadas de “clãs”.

De acordo com o crescimento populacional e territorial, estes grupos familiares começaram a se unir e formar tribos, que eram agrupamentos maiores definidos por possuírem cultura e costumes próprios.

Largos passos históricos adiante, surge no território onde hoje se localiza a Itália, a palavra “família” originada da expressão latina “famulus” que significa escravo doméstico e era utilizada para nomear os grupos de escravos que trabalhavam na agricultura familiar para um determinado senhor.

Os traços essenciais são a incorporação dos escravos e o domínio paterno; por isso a família romana é o tipo perfeito dessa fôrma de família. Em sua origem, a palavra família não significa o ideal - mistura de sentimentalismo e dissensões domésticas do filisteu de nossa época; - a princípio, entre os romanos, não se aplicava sequer ao par de cônjuges e aos seus filhos, mas somente aos escravos. Famulus quer dizer escravo doméstico e família é o conjunto dos escravos pertencentes a um mesmo homem. (ENGELS, 2006,p. 30).

Com o passar do tempo e com o desenvolvimento de sociedades cada vez mais complexas, a consanguinidade já não tinha tanta força e já não delimitava mais as famílias. Foi então que na Roma antiga, surgiu a expressão “família natural” que dava nome à um grupo familiar formado apenas por um casal e filhos, ou seja, já é possível perceber que a família começava a ser constituída a partir da relação jurídica do casamento.

Ainda assim, a existência do afeto exercia sua importância nos matrimônios. No modelo romano, havia o poder da figura do patriarca, "pater famílias", o superior, o mais velho, ao qual deviam respeito todos os membros da família, incluindo a mulher, descendentes e as esposas de seus descendentes.

A família natural foi introduzida pela Igreja Católica através da consumação do casamento como uma instituição consagrada e indissolúvel. Seria esse o modelo de família cristã, formada da união de duas pessoas de sexos distintos por meio de um ato solene, e por seus descendentes diretos. Com esse fortalecimento do Cristianismo, incorporou-se uma moralidade pautada na castidade e no casamento, logo, houve uma rejeição ao prazer sexual, fazendo com que a prática sexual se tornasse sinônimo de procriação, apenas.

Esse modelo perdura até hoje, como pode-se notar pelo Código de Direito Canônico, em seu cânon 1055 §1º, que é baseado na Constituição Gaudium et Spes Do Concílio do Vaticano II, define o matrimônio da seguinte forma:

Cânon 1055, §1º: A aliança matrimonial, pela qual o homem e a mulher constituem entre si uma comunhão da vida toda, é ordenada por sua índole natural ao bem dos cônjuges e à geração e educação da prole, e foi elevada, entre os batizados, à dignidade do sacramento. (Código de Direito Canônico).

Dessa maneira, entendia-se que o objetivo do matrimônio enquanto instituição era a procriação, e esse fim era a justificativa para a prática do ato sexual no casamento. Tais moldes de estrutura familiar persistem, sendo o casamento religioso reconhecido por grande parte das legislações ocidentais vigentes como ato jurídico formal, como por exemplo, no Brasil, já que o país foi construído com base em preceitos da Igreja Católica Apostólica Romana.

Desde então, a consanguinidade e a tradicional instituição do casamento vêm perdendo espaço em doutrinas e jurisprudência mais atuais, até mesmo pela própria legislação que está adotando cada dia mais o afeto como principal fator regente no que diz respeito à família.

Como visto, é inviável escolher um conceito fixo para família, no entanto é importante que se perceba o desenvolvimento através das eras, apontando, por exemplo, o conceito hodierno de família feito por Dias (2000, p. 54) que descreve bem o momento em que a sociedade vive no presente:

Comprovada a existência de um relacionamento em que haja vida em comum, coabitação e laços afetivos, está-se à frente de uma entidade familiar, forma de convívio que goza de proteção constitucional, nada justificando que se desqualifique o reconhecimento dela, pois o só fato dos conviventes serem do mesmo sexo não permite que lhes sejam negados os direitos assegurados aos heterossexuais.

Sendo assim, é importante ressaltar que a família vem passando por intensas mudanças na mesma velocidade em que acontecem as modificações sociais, sendo necessário, para tanto, que haja proteção do Estado para evitar que essas pessoas percam seus direitos e, principalmente, sejam vítimas do preconceito pela sua condição sexual.

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2.2 A família sob a luz da Constituição Federal de 1988

A Primeira Constituição da República de 1891 não possuía capítulo específico tratando de assuntos relacionados à família, apenas em seu artigo 72, o qual dizia que a República Brasileira reconhecia o casamento civil e declarava a gratuidade do mesmo.

Somente em 1934, com a Segunda Constituição da República, que foi criado um capítulo especial à família, determinando regras no que dizia respeito ao casamento e atribuindo a este, caráter indissolúvel.

Desde então, a família foi lembrada nas próximas Constituições (1937, 1946, 1967 e 1969). No entanto, o ideal permanecia o mesmo, sem inovação nem tampouco atualização, onde somente se poderia constituir família por meio de um casamento indissolúvel. Ao passo que, na Constituição da República Federativa do Brasil de 5 de outubro de 1988 (Constituição Federal de 1988), pode-se notar que houve uma preocupação genuína com a família e seus aspectos.

Para Mousnier (2002, p. 244), a nova constituição abrigava dois artigos, aparentemente inofensivos, mas que geraram consequências devastadoras no ordenamento jurídico brasileiro "logrando ampliar o conceito de família, redimensionar a ideia de filiação e preconizar a igualdade de direitos e deveres entre o homem e a mulher na sociedade conjugal". Segundo o art. 226 da atual Constituição Federal de 1988, 

Art. 226 - A família, base da sociedade, tem especial proteção do Estado.

§ 1o - O casamento é civil e gratuita a celebração.

§ 2o - O casamento religioso tem efeito civil, nos termos da lei.

§ 3o - Para efeito da proteção do Estado, é reconhecida a união estável entre o homem e mulher como entidade familiar, devendo a lei facilitar a sua conversão em casamento.

§ 4o - Entende-se, também, como entidade familiar a comunidade formada por qualquer dos pais e seus descendentes. (BRASIL, 1988).

Deve-se atentar para a Constituição Federal de 1988, que, em seu art. 226, trata da igualdade no exercício dos direitos e deveres do homem e da mulher na sociedade conjugal, o que é de suma importância para mostrar que não devem existir funções distintas a cada parte do casal, pois ambos puderam atingir níveis de trabalho e desenvolvimento que ultrapassam uma possível divisão de papéis.

Outorgando a Constituição Federal proteção à família, independentemente da celebração do casamento, inseriu um novo conceito, o de entidade familiar, albergando vínculos de afetivos outros. Tanto a união estável entre um homem e uma mulher como as relações de um dos ascendentes com sua prole passaram a configurar uma família. (DIAS, 2000, p. 6).

Além disso, esse último ordenamento constitucional, ao colocar a união estável como uma forma de constituição de família, ensejou grandes consequências para a jurisdição, como a possibilidade recíproca, entre os companheiros, de pleitear alimentos, e a participação nos bens adquiridos no curso de sua convivência.

A Constituição Federal de 1988 deu uma nova roupagem aos direitos do casamento, ainda que o art. 226 não garanta a união estável por casais homoafetivos, também não há distinção da família pela existência do matrimônio. O referido artigo também não impõe a presença de sexos distintos no casal para que a sua convivência seja digna da proteção do Estado. Não há exclusão de entidades familiares homoafetivas, no entanto ainda poderiam converter sua união estável em casamento. (DIAS, 2000)

Diniz (2009, p. 22) afirma que "com a quebra do patriarcalismo e da hegemonia do poder marital e paterno não há mais, diante do novel Código Civil, qualquer desigualdade de direitos e deveres do marido e da mulher ou dos companheiros" consagrando assim os princípios do respeito à dignidade dos companheiros e das pessoas casadas no art. 1º, inciso III da Constituição Federal de 1988 e o da igualdade jurídica entre conviventes ou entre marido e mulher nos arts. 5º, I e 226, §5º.

Diante das inovações constatadas, é dever do Estado manter atualizada a sua legislação, evitando assim que alguém seja injustiçado quando na verdade deveria ser protegido. Com as mudanças no pensamento e modo de vida da população brasileira atual, pode-se dizer que o momento requer novas reformulações que venham a garantir, de fato, a igualdade de direitos e deveres a todos, independentemente de fatores como a sexualidade.

2.3 União de casais homoafetivos na legislação brasileira

Não há um posicionamento expresso por parte da Constituição Federal de 1988 acerca dos relacionamentos homoafetivos. Do mesmo modo, segue o Código Civil, instituído pela lei nº 10.406 de 10 de janeiro de 2002 (Código Civil), que é incapaz de suprir de forma satisfatória a omissão em questão, e essa falta acaba gerando insegurança à esta parte da população que se encontra desprovida de normas regulamentadoras, pois conforme visto anteriormente, no § 3° do art. 226 da Constituição Federal de 1988, é reconhecida apenas a união estável entre o homem e a mulher como entidade familiar, sendo assim, facilitada a sua conversão posterior em casamento.

Frente aos efeitos causados pela omissão do legislador, o Supremo Tribunal Federal procurou sanar as divergências remanescentes e se posicionar de maneira favorável aos homossexuais, ampliando assim o significado jurídico de família, no julgamento da Ação Direta de Inconstitucionalidade – ADI Nº. 4.277/DF e Arguição de Descumprimento de Preceito Fundamental - ADPF nº 132, tendo como relator o Ministro Ayres Britto.  Segue o entendimento jurisprudencial:

1. ARGUIÇÃO DE DESCUMPRIMENTO DE PRECEITO FUNDAMENTAL (ADPF). PERDA PARCIAL DE OBJETO. RECEBIMENTO, NA PARTE REMANESCENTE, COMO AÇÃO DIRETA DE INCONSTITUCIONALIDADE. UNIÃO HOMOAFETIVA E SEU RECONHECIMENTO COMO INSTITUTO JURÍDICO. CONVERGÊNCIA DE OBJETOS ENTRE AÇÕES DE NATUREZA ABSTRATA. JULGAMENTO CONJUNTO. Encampação dos fundamentos da ADPF nº 132-RJ pela ADI nº 4.277-DF, com a finalidade de conferir “interpretação conforme à Constituição” ao art. 1.723 do Código Civil. Atendimento das condições da ação.2. PROIBIÇÃO DE DISCRIMINAÇÃO DAS PESSOAS EM RAZÃO DO SEXO, SEJA NO PLANO DA DICOTOMIA HOMEM/MULHER (GÊNERO), SEJA NO PLANO DA ORIENTAÇÃO SEXUAL DE CADA QUAL DELES. A PROIBIÇÃO DO PRECONCEITO COMO CAPÍTULO DO CONSTITUCIONALISMO FRATERNAL. HOMENAGEM AO PLURALISMO COMO VALOR SÓCIO-POLÍTICO-CULTURAL. LIBERDADE PARA DISPOR DA PRÓPRIA SEXUALIDADE, INSERIDA NA CATEGORIA DOS DIREITOS FUNDAMENTAIS DO INDIVÍDUO, EXPRESSÃO QUE É DA AUTONOMIA DE VONTADE. DIREITO À INTIMIDADE E À VIDA PRIVADA. CLÁUSULA PÉTREA. O sexo das pessoas, salvo disposição constitucional expressa ou implícita em sentido contrário, não se presta como fator de desigualação jurídica. Proibição de preconceito, à luz do inciso IV do art. 3º da Constituição Federal, por colidir frontalmente com o objetivo constitucional de “promover o bem de todos”. [...] Reconhecimento do direito à preferência sexual como direta emanação do princípio da “dignidade da pessoa humana”: direito à auto-estima no mais elevado ponto da consciência do indivíduo. Direito à busca da felicidade. Salto normativo da proibição do preconceito para a proclamação do direito à liberdade sexual. O concreto uso da sexualidade faz parte da autonomia da vontade das pessoas naturais. Empírico uso da sexualidade nos planos da intimidade e da privacidade constitucionalmente tuteladas. Autonomia da vontade. Cláusula pétrea. [...]

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A argumentação da referida ADI foi baseada nos princípios da dignidade da pessoa humana (art. 1º, inciso III), da vedação à discriminação odiosa (art. 3º, inciso IV), e da igualdade (art. 5º, caput), da liberdade (art. 5º, caput) e da proteção à segurança jurídica, e defendeu que tratava-se do não reconhecimento da igualdade de identidade dos homossexuais em relação ao restante da sociedade por parte do Estado, e que esse fator limitava os determinados casais de adquirir uma infinidade de direitos patrimoniais e extrapatrimoniais.

[...] 3. TRATAMENTO CONSTITUCIONAL DA INSTITUIÇÃO DA FAMÍLIA. RECONHECIMENTO DE QUE A CONSTITUIÇÃO FEDERAL NÃO EMPRESTA AO SUBSTANTIVO “FAMÍLIA” NENHUM SIGNIFICADO ORTODOXO OU DA PRÓPRIA TÉCNICA JURÍDICA. A FAMÍLIA COMO CATEGORIA SÓCIO-CULTURAL E PRINCÍPIO ESPIRITUAL. DIREITO SUBJETIVO DE CONSTITUIR FAMÍLIA. INTERPRETAÇÃO NÃO-REDUCIONISTA. O caput do art. 226 confere à família, base da sociedade, especial proteção do Estado. [...] A Constituição de 1988, ao utilizar-se da expressão “família”, não limita sua formação a casais heteroafetivos nem a formalidade cartorária, celebração civil ou liturgia religiosa. [...] Isonomia entre casais heteroafetivos e pares homoafetivos que somente ganha plenitude de sentido se desembocar no igual direito subjetivo à formação de uma autonomizada família. [...]

Adiante, a citada ação alega que o art. 226 da Constituição Federal de 1988, ao utilizar-se do substantivo “família”, não lhe reconheceu um significado fixo, limitado. Desta forma, pode-se concluir que ao não restringir um modelo de família, o artigo se estendeu a todo grupo que se entende como entidade familiar, inclusive aos casais homoafetivos, buscando assim, aplicar mais uma vez o princípio da igualdade.

[...] 6. INTERPRETAÇÃO DO ART. 1.723 DO CÓDIGO CIVIL EM CONFORMIDADE COM A CONSTITUIÇÃO FEDERAL (TÉCNICA DA “INTERPRETAÇÃO CONFORME”). RECONHECIMENTO DA UNIÃO HOMOAFETIVA COMO FAMÍLIA. PROCEDÊNCIA DAS AÇÕES. Ante a possibilidade de interpretação em sentido preconceituoso ou discriminatório do art. 1.723 do Código Civil, não resolúvel à luz dele próprio, faz-se necessária a utilização da técnica de “interpretação conforme à Constituição”. Isso para excluir do dispositivo em causa qualquer significado que impeça o reconhecimento da união contínua, pública e duradoura entre pessoas do mesmo sexo como família. Reconhecimento que é de ser feito segundo as mesmas regras e com as mesmas consequências da união estável heteroafetiva. (ADI 4277, Relator(a):  Min. AYRES BRITTO, Tribunal Pleno, julgado em 05/05/2011, DJe-198 DIVULG 13-10-2011 PUBLIC 14-10-2011 EMENT VOL-02607-03 PP-00341 RTJ VOL-00219- PP-00212)” (BRASIL; STF, acesso em 10 mai. 2017).

Por fim, a ADI 4277 requer que seja feita a interpretação do artigo 1.723 em conformidade com os princípios constitucionais anteriormente citados, e que frente a falta de uma norma regulamentadora da união estável de pessoas do mesmo sexo, deve-se utilizar da analogia e conceder aos casais em questão, o direito de constituírem união estável assim como os demais casais formados por um homem e uma mulher.

Em seu voto, o Ministro Ayres Britto entende que essa divergência é apenas o reflexo de que “nada incomoda mais as pessoas do que a preferência sexual alheia, quando tal preferência já não corresponde ao padrão social da heterossexualidade” e que esta reação é fruto das raízes conservadoras advindas da história do país. O relator colocou em cheque a pluralidade de interpretações que carrega em seu texto o artigo 1.723 do Código Civil e ressaltou ainda que o art. 3º, inciso IV, da Constituição Federal de 1988, nada mais era que a vedação de toda e qualquer forma de discriminação, logo ninguém pode ser discriminado pela sua preferência/condição sexual.

Ao fim de seu voto, o Ministro, se mostra favorável à possibilidade da união homoafetiva perante a lei, inteirando que sua interpretação do art. 1.723 do Código Civil está em conformidade com a Constituição “para dele excluir qualquer significado que impeça o reconhecimento da união contínua, pública e duradoura entre pessoas do mesmo sexo como “entidade familiar”, entendida esta como sinônimo perfeito de ‘família’”.

O julgamento dessas duas ações (ADI 4277 e ADPF 132) foi um grande avanço na luta dos casais homoafetivos e gerou grande repercussão, pois a partir de então haviam sido reconhecidos como entidade familiar, mas havia ainda um longo caminho a ser percorrido e muitos direitos a serem conquistados.

3 HOMOAFETIVIDADE E A CONCRETIZAÇÃO DOS DIREITOS SEXUAIS E REPRODUTIVOS

A engenharia genética tem trabalhado em busca da diminuição de dificuldades de casais que não têm possibilidades biológicas para a reprodução natural. Um dos resultados mais recentes da medicina foi o desenvolvimento das técnicas de reprodução assistida (RA), que segundo o Conselho Federal de Medicina – CFM, têm a função de auxiliar na resolução dos problemas de reprodução humana, facilitando o processo de procriação.

A reprodução assistida se baseia no ato de colher materiais genéticos reprodutores a fim de aproximar o espermatozóide do óvulo, fazendo com que haja a fecundação através de procedimentos médico/biológicos. Dentre as espécies de RA, existe a inseminação artificial, onde o material genético de um doador anônimo é implantado no útero feminino, geralmente utilizado por mulheres que buscam ter produção independente, quando o companheiro não apresenta fertilidade ou por casais homoafetivos formados por mulheres. Outra espécie de RA é o método da fertilização in vitro que consiste na fecundação do óvulo por um espermatozóide, onde o processo ocorre externamente, este procedimento é utilizado por casais que não possuem fertilidade ou que tenham problemas na reprodução natural, como também por casais homoafetivos do sexo masculino que pretendem ter um filho.

Recentemente, em 3 de maio de 2017 foi aprovado pela Comissão de Constituição, Justiça e Cidadania (CCJ) o Projeto de Lei de nº 612 proposto em 2011, pela senadora Marta Suplicy que tem como objetivo alterar o texto do Código Civil em seus artigos 1.723 e 1.726, retirando a delimitação de formação de união estável por um homem e uma mulher, e, por conseguinte, generalizar e abranger a todos os modelos de casais sem restrições ou discriminações. 

Recusar chamar de “família” esses arranjos e negar a existência de um vínculo intrafamiliar entre os seus membros (ainda que esses vínculos possam ter um aspecto extremamente polimorfo e variado) significa “fixar” a família dentro de um formato único, que não corresponde à diversidade de expressões que ela adotou nas sociedades contemporâneas. (ZAMBRANO, p. 14, 2006).

Sabe-se que já é possível a conversão da união estável homoafetiva em casamento, no entanto, o ato supracitado deve ser autorizado, e ainda existe uma recusa por parte de alguns juízes, sendo que a maioria usa como embasamento a ausência de regulamentação expressa no ordenamento jurídico.

O projeto de lei em questão procura evitar dificuldades fundamentadas somente no texto da lei, porém ele não viabiliza o casamento chamado de “direto” onde o casal não necessita apresentar comprovação de união estável após o processo de habilitação do casamento.

3.1 Igualdade e dignidade da pessoa humana e o direito à livre orientação sexual

Em se tratando de união estável homoafetiva, há quem defenda o ideal de que a união estável, regulamentada pelo art. 226, § 3º da Constituição Federal de 1988, mencionada em “[...] homem e mulher [...]”, refere-se apenas à união entre pessoas heterossexuais. Mas em face dos princípios constitucionais, essa alegação é de caráter frágil, principalmente por conta do princípio da igualdade que determina o tratamento idêntico a todas as formas de família bem como pelos princípios da liberdade e dignidade da pessoa humana. (CUNHA, 2010).

A Constituição Federal de 1988, em seu art. 5º, estabelece o princípio da igualdade, da seguinte forma:

Todos são iguais perante a lei, sem distinção de qualquer natureza, garantindo-se aos brasileiros e aos estrangeiros residentes no País a inviolabilidade do direito à vida, à liberdade, à igualdade, à segurança e à propriedade [...] (BRASIL, 1988).

Na verdade, todas as relações que se entendem por entidades familiares merecem igual tratamento constitucional, portanto tanto a união estável formada por heterossexuais, bem como a união de um casal homossexual ou a família monoparental devem ser protegidas pelo Estado.

Uma vez que a Constituição Federal de 1988 ampara e protege as diferenças e por consequência proibindo a discriminação, não pode o legislador ou os aplicadores das leis distinguirem em prejuízo da minoria configurando assim uma injusta exclusão em razão de sua condição sexual. Sendo assim, o casal que almeja ter filhos, deve ter sua vontade levada em consideração e que esta prevaleça sobre qualquer dificuldade ou limite ao livre planejamento familiar, principalmente com o desenvolvimento biotecnológico de técnicas que possibilitam a reprodução por meios artificiais. (CUNHA, 2010).

A sexualidade é algo biológico, nasce com o ser humano e é impossível negá-la ou afastá-la, então, por isso deve ser assegurado juntamente às vertentes do princípio da liberdade. É o direito do ser humano de ser livre para viver seus instintos e realizar suas próprias escolhas pautadas no seu bem-estar, na sua felicidade.

O princípio da dignidade da pessoa humana, presente no art. 1º, inciso III da Constituição Federal de 1988 garante às pessoas proteção ao aspecto humano mais importante de acordo com o pensamento de DIAS (2000, p. 71),

A regra maior da Constituição Pátria é o respeito à dignidade humana, verdadeira pedra de toque de todo o sistema jurídico nacional. Esse valor implica dotar os princípios da igualdade e da isonomia de potencialidade transformadora na configuração de todas as relações jurídicas.

Portanto, deve-se pensar que todos devem viver da melhor maneira possível, tendo liberdade para exercer suas vontades, decidir sobre suas atitudes e hábitos, resguardando assim sua dignidade. É de imensa importância que esses três princípios sejam carregados pelo homem, e que isso seja passado também em relação aos seus descendentes.

3.2 Direito à parentalidade

O ato de exercer a parentalidade está pautado no cuidar, educar, principalmente amar seu filho. Impossibilitar esse nobre exercício de fraternidade às pessoas que estão dispostas a fazer tudo isso, apenas em razão da sua orientação sexual, fere o princípio da dignidade da pessoa humana, e vai contra todo o conceito presente no preâmbulo da Constituição Federal. (DIAS, 2012).

Segundo Zambrano (2006, p. 11), parentalidade é “o exercício da função parental, implicando cuidados com alimentação, vestuário, educação, saúde etc., que se tecem no cotidiano em torno do parentesco".

Devido a essa variação dos papéis sociais parentais desempenhados nas diferentes culturas e períodos históricos, entende-se que parentalidade difere de parentesco bem como de filiação, pois para o exercício da parentalidade a pessoa no papel não necessita de vínculo legal ou mesmo de consanguinidade com a criança/adolescente. Um exemplo disso são as famílias recompostas onde o cônjuge do pai ou da mãe está presente no cotidiano da criação do filho. (ZAMBRANO, 2006).

Em frente a tantas possibilidades e modelos de formação de família, reverberam questionamentos sobre os papéis de cada um dentro da entidade familiar e de acordo com Dias (2006, p. 7) “a resposta é uma só. Basta mais uma vez invocar o conceito da afetividade. Como o projeto parental teve origem na vontade de ambos, aos dois cabem as responsabilidades parentais, com toda a gama de direitos e deveres para com seus filhos".

3.3 Reprodução assistida por pares homoafetivos

A regulamentação a respeito da reprodução medicamente assistida no Ordenamento jurídico ainda é muito escassa. O assunto é normatizado apenas pelo Conselho Federal de Medicina em sua Resolução nº 1.957/10 (essa Resolução foi revogada pela Resolução 2121 de 24 de setembro de 2015) após o julgamento do STF que assegura a todas as pessoas capazes, o direito de passarem pelo processo de reprodução assistida, sem exclusão por condição sexual, basta que o casal firme um termo onde este consente tais procedimentos.

O Código Civil de 2002 em seu art. 1.597, incisos III e IV admite e pressupõe o intuito de procriação dentro da instituição do casamento, inclusive aos filhos advindos de processos de inseminação artificial homóloga. Esta forma de reprodução assistida utiliza o material genético do casal, que apesar de ser fértil, não concebe a reprodução por meio do ato sexual. (STIMAMIGLIO, 2015).

Com o surgimento de novos métodos de reprodução por meios artificiais, tornou-se possível a reprodução assistida por pares homoafetivos. Como os casais homoafetivos são biologicamente “inférteis” não sendo possível a combinação de seus gametas, a reprodução assistida é heteróloga, ou seja, pressupondo que não há possibilidade de doação dos gametas de ambos os companheiros para a realização da fecundação, é necessária a doação de material genético de terceiro para que o procedimento ocorra.

O procedimento em pares formados por mulheres é o mesmo de inseminação artificial, que consiste na fecundação do óvulo de uma das mulheres a partir do material genético de um doador anônimo. Por ser um procedimento comum e ser legalizado há muito tempo, não há dificuldades na realização da inseminação.

Cabe ao casal feminino, decidir qual das duas dará seguimento ao processo de gestação em seu ventre. Durante a realização do procedimento, uma das companheiras se sujeita à inseminação artificial, inclusive ambas as hipóteses de utilizar o próprio óvulo quanto o da parceira são possíveis. (DIAS, 2011).

Já a reprodução assistida de pares masculinos se dá pela fertilização in vitro, e a técnica utilizada é conhecida como gravidez por substituição, onde o casal pode optar por escolher o gene de um dos dois ou pela utilização dos dois materiais genéticos, geralmente com o objetivo de não saber qual o pai biológico. (CHAVES apud DIAS, 2011).

A reprodução assistida por um casal de homens é bem mais rigorosa, legalmente falando, uma vez que o procedimento da fertilização in vitro, nestes casos foi regulamentado há pouco tempo e existem requisitos bem específicos para a realização do processo, definidos pelo Conselho Federal de Medicina, que em sua Resolução nº 2.121 de 2015 institui que: 

As clínicas, centros ou serviços de reprodução assistida podem usar técnicas de RA para criarem a situação identificada como gestação de substituição, desde que exista um problema médico que impeça ou contraindique a gestação na doadora genética ou em caso de união homoafetiva.

1- As doadoras temporárias do útero devem pertencer à família de um dos parceiros em parentesco consanguíneo até o quarto grau (primeiro grau – mãe; segundo grau – irmã/avó; terceiro grau – tia; quarto grau – prima). Demais casos estão sujeitos à autorização do Conselho Regional de Medicina.

2- A doação temporária do útero não poderá ter caráter lucrativo ou comercial.

3- Nas clínicas de reprodução assistida, os seguintes documentos e observações deverão constar no prontuário do paciente:

3.1 Termo de consentimento livre e esclarecido informado assinado pelos pacientes e pela doadora temporária do útero, contemplando aspectos biopsicossociais e riscos envolvidos no ciclo gravídico-puerperal, bem como aspectos legais da filiação;

3.2 Relatório médico com o perfil psicológico, atestando adequação clínica e emocional de todos os envolvidos;

3.3 Termo de Compromisso entre os pacientes e a doadora temporária do útero (que receberá o embrião em seu útero), estabelecendo claramente a questão da filiação da criança;

3.4 Garantia, por parte dos pacientes contratantes de serviços de RA, de tratamento e acompanhamento médico, inclusive por equipes multidisciplinares, se necessário, à mãe que doará temporariamente o útero, até o puerpério;

3.5 Garantia do registro civil da criança pelos pacientes (pais genéticos), devendo esta documentação ser providenciada durante a gravidez;

3.6 Aprovação do cônjuge ou companheiro, apresentada por escrito, se a doadora temporária do útero for casada ou viver em união estável.(CFM Res. nº 2.121/2015).

Após todas as etapas de gestação propostas pelas técnicas de reprodução assistida, o casal pode realizar o registro do filho, com a presença de ambos os pais na certidão de nascimento adaptada, com os fins de não declarar antecedência paterna e materna. Esse registro também só foi possibilitado há pouco tempo, através do provimento nº 52 de 14 de março de 2016, que regulamenta a emissão de certidão de nascimento de filhos concebidos por métodos de reprodução assistida.

Vale ressaltar que a resolução do Conselho Federal de Medicina, ainda que regulamente a reprodução medicamente assistida, não possui em si, força de lei, pois são normas meramente de cunho ético da categoria. Percebe-se assim, que não há uma preocupação verdadeira do Estado em assegurar os direitos de reprodução à esta parte da população.

4 CONCLUSÃO

A tecnologia foi capaz de realizar grandes conquistas para a humanidade. Conquistas essas que buscam melhorar a qualidade de vida da sociedade como um todo, e a família, como base formadora de qualquer sociedade, não poderia permanecer estática.

Com foco na formação das famílias atuais, se desenvolveram técnicas artificiais de reprodução, a fim de garantir que casais sem possibilidades biológicas para procriarem, como os homoafetivos, pudessem realizar suas vontades (por que não dizer sonhos?) de constituir sua própria família. As técnicas de reprodução assistida envolvem aspectos relacionados aos direitos fundamentais, e principalmente ao planejamento familiar, tendo em vista que o objetivo dessas técnicas é a constituição da família.

No entanto, mesmo com todos os triunfos da história dos casais homossexuais, ainda existe uma lacuna drástica em seu desfavor, a legislação. A jurisdição brasileira, que em tese, deveria amparar e proteger os direitos de todos, ao se omitir, acabou por gerar discriminação e ferir princípios instituídos em sua própria Constituição Federal.

Os casais homoafetivos, como qualquer outra entidade familiar, possuem direito de ser tratados com igualdade, de ter sua dignidade resguardada, de ser livres para optar e de viver a paternidade/maternidade e o legislador, em contrapartida, tem o dever de se manter atualizado, respeitar os princípios que regem a democracia e começar a agir, por fim, em favor das minorias desamparadas.


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Sobre o autor
Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

SANTOS, Gleydson França Silva. Casais homoafetivos e a possibilidade de procriação através da reprodução assistida. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 28, n. 7318, 15 jul. 2023. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/104895. Acesso em: 22 dez. 2024.

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