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ADI nº 3.943: atentado contra a democracia

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Agenda 05/10/2007 às 00:00

VI – DA REALIDADE PROCESSUAL

(Nota sobre a pertinência temática)

Suponhamos que o Supremo Tribunal Federal decidisse restringir a atuação da Defensoria Pública para propositura de ação civil pública, por meio da exigência de comprovação, no caso concreto, de pertinência temática. Em outras palavras, se a legitimidade fosse confirmada, desde que a instituição demonstrasse no ato da propositura que estava litigando em defesa de pessoas carentes.

Sem adentrar na polêmica doutrinária referente à finalidade da pertinência temática (estabelecer no caso concreto legitimatio ad causam ou interesse de agir), o fato é que tal exigência, aceita no que concerne a certos legitimados para propositura da ADI, simplesmente inviabilizaria a atuação da Defensoria Pública para defender os interesses difusos. Um exemplo.

A Defensoria Pública decide ajuizar ação civil pública contra diversas instituições financeiras para que adequem seus contratos de financiamento aos padrões estipulados no Código de Defesa do Consumidor. Óbvio que, num primeiro momento, a instituição estaria protegendo o interesse de seus assistidos, pessoas pobres que sofrem com a súbita expansão de seu débito, bastando curto prazo em situação de mora. Porém, ao analisarmos quem seriam os beneficiados, efetivamente, com uma decisão judicial favorável, veremos que o leque se abre. Ou seja, o acolhimento da pretensão inicial traria vantagem para pobres, ricos e membros da classe média brasileira, indistintamente. A conclusão é óbvia, já que quase todos (independentemente da situação sócio-econômica) contratam com instituições financeiras, sujeitando-se aos mesmos ônus. A diferença é que a pessoa carente dificilmente consegue superar o problema e, na maioria das vezes, tem que recorrer ao Judiciário para rever as condições contratuais.

O exemplo demonstra que eventual tentativa de impor uma limitação desta natureza harmoniza-se com a falsa crença de que é possível prever, numa sentença proferida em ação coletiva, a qualidade dos beneficiados.

E mais: a restrição traria prejuízo para o próprio Poder Judiciário, que seria forçado a criar mecanismos administrativos destinados a conter a enxurrada de ações individuais ajuizadas para resolver o problema. Como é sabido que soluções deste tipo demoram a ser implementadas no Brasil (pois exigem vultosos investimentos com recursos públicos), o ônus recairia sobre os Magistrados e sobre a população carente. A insatisfação com o Judiciário aumentaria dia após dia e a celeuma não teria fim.

Fácil, portanto, demonstrar a inconsistência prática de eventual condicionamento da atuação da Defensoria Pública na defesa dos interesses difusos à demonstração de pertinência temática.


VII – DA AUSÊNCIA DE INTERESSE DE AGIR

Após todo o raciocínio desenvolvido ao longo deste texto, observamos que a pretensão lançada na petição inicial da ADI 3.943, além de representar uma tentativa de afronta à democracia e um óbice à garantia constitucional de acesso à justiça, contém um indisfarçável vício processual. A demanda proposta pela CONAMP é absolutamente inútil. Explicamos.

Conforme outrora ressaltado, a legitimidade da Defensoria Pública para propor ação civil pública não deriva do dispositivo legal impugnado. Decorre de uma interpretação sistemática e teleológica de normas contidas em diversos pontos do ordenamento jurídico, sejam elas constitucionais ou infraconstitucionais, princípios ou regras. Pois bem. Desta premissa passamos à conclusão de que a regra inserida pela Lei Federal nº 11.448/2007 poderia nem mesmo existir em nosso mundo jurídico. Ainda assim a legitimidade da Defensoria teria sustentação lógica e jurídica.

Logo, indagamos: qual a utilidade ou necessidade da tutela jurisdicional na ADI 3.943? Nenhuma. E nosso sistema processual é claro ao aplicar uma sanção àquele que postula sem interesse (CPC, Art. 267. Extingue-se o processo, sem resolução de mérito quando não concorrer qualquer das condições da ação, como a possibilidade jurídica, a legitimidade das partes e o interesse processual). Sobre o interesse de agir, Cândido Rangel Dinamarco pondera que "o Estado anuncia que não se dispõe a dar o provimento jurisdicional, quando em concreto ele não seja capaz de trazer uma utilidade a quem o demanda. A utilidade, conforme investigações bem sucedidas em sede de teoria geral do direito, é que caracteriza o interesse. (...) Pois o provimento jurisdicional também só tem expressão (e, portanto, só aí é oferecido pelo Estado), quando for capaz de trazer alguma utilidade à pessoa." Sobre a necessária demonstração da utilidade da tutela jurisdicional, por parte do postulante, a jurisprudência brasileira já tem posição pacificada. Vejamos algumas decisões do Superior Tribunal de Justiça, a título de ilustração:

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"A existência de interesse de agir por parte do impetrante se sobressai claramente, tendo sido impelido a solicitar a intervenção dos órgãos jurisdicionais para proteger-se do dano sofrido. São absolutamente evidentes a necessidade de o autor vir a juízo para buscar a proteção do direito e a utilidade que o provimento jurisdicional irá lhe proporcionar." [39]

"Furtado o veículo objeto do arrendamento mercantil, o arrendante não tem interesse em propor ação de reintegração de posse contra o arrendatário inadimplente, porque eventual sentença de procedência não terá utilidade prática, até porque será logicamente inexeqüível." [40]

Os arestos colacionados, apesar de não se referirem a controvérsias semelhantes, servem bem para corroborar o que viemos sustentando: a CONAMP ajuizou uma ação direta de inconstitucionalidade desprovida de qualquer utilidade. Na verdade, o provimento pleiteado perante o Supremo será inútil, uma vez que o expurgo de um dispositivo legal do ordenamento não será capaz, por si só, de obstar a atuação da Defensoria Pública na defesa dos interesses difusos.

Curial lembrar que o nosso modelo contemporâneo de jurisdição concede ao Magistrado o poder/dever de observar determinado princípio constitucional, no curso do caso concreto, sempre que as normas infraconstitucionais mostrem-se insuficientes (ou inexistentes) para satisfazer uma garantia fundamental do cidadão. E, conforme ressaltamos, a legitimação da Defensoria Pública para a propositura de ação civil pública é reflexo da cláusula constitucional de acesso à justiça e instrumento de consolidação do Estado Democrático de Direito.

Portanto, se considerarmos de um lado a possibilidade da norma impugnada ser declarada inconstitucional, noutro pórtico veremos que, além do sistema fornecer o substrato necessário para autorizar a legitimação, os Juízes detém a prerrogativa (ou dever) de possibilitar o manejo da ação civil pública, por parte da Defensoria Pública (em atendimento aos princípios constitucionais antes aludidos).


VIII – CONCLUSÕES

Em grau de arremate, trazemos algumas proposições que condensam as idéias básicas desenvolvidas neste texto:

1) a Defensoria Pública, como existe para defender o interesse das pessoas carentes, possui legitimidade para pleitear a tutela de interesses difusos, já que o interesse dos "necessitados", analisado de maneira ampla, é um típico interesse difuso (eis que os mesmos podem ser qualificados como pessoas que vivem sob determinadas condições sócio-econômicas, segundo a lição de Barbosa Moreira);

2) o mesmo raciocínio anterior se aplica, com muito mais facilidade, para o caso da defesa dos interesses individuais homogêneos, já que, neste caso, os titulares são perfeitamente identificáveis e o objeto é divisível e cindível (hipótese de postulação voltada para fornecimento de medicamentos, por exemplo);

3) a legitimidade da Defensoria para ajuizar ação civil pública antecede a criação da norma impugnada pela CONAMP, já que deriva da interpretação sistêmica e teleológica de preceitos constitucionais (tais como Princípio da Solidariedade e Justiça Social (arts. 160 e 176), da Inafastabilidade da Jurisdição/garantia de acesso à justiça (art. 5º, XXXV), da Democracia Participativa (art. 1º, caput)) e infraconstitucionais, como os arts. 82, III e 117 do Código de Defesa do Consumidor;

4) se a razão de ser da Defensoria Pública é a defesa das pessoas carentes, no caso da instituição atuar num conflito meta individual, estará defendendo interesse próprio e não dos indivíduos afetados pelo provimento. Logo, sua legitimação é ordinária e não extraordinária; A Defensoria se adequa ao conceito de parte ideológica referido por Cappelletti porque é órgão criado pela Constituição com finalidade específica, que age para o bem coletivo.

5) o Ministério Público não detém o monopólio das ações coletivas, pois

a) a legitimidade para propositura da ação civil pública é autônoma, concorrente e disjuntiva;

b) tal posição atenta contra a idéia de pluralização do acesso à justiça e redunda em violação da chamada democracia participativa;

c) não possui, conforme reconhecido pela própria instituição, estrutura e mão-de-obra necessárias para resolver todos os problemas que afetam a coletividade;

d) o próprio artigo 127 da Constituição Federal limita a atuação do órgão ao dispor que incumbe-lhe a defesa dos interesses sociais e individuais indisponíveis;

6) eventual exigência de comprovação prática da pertinência temática anularia a atuação da Defensoria Pública para defender os interesses difusos, porque não é possível antecipar, em sede de tutela coletiva, a qualidade sócio-econômica dos beneficiados pelo provimento (pobres, ricos, etc);

7) a CONAMP ajuizou uma ação direta de inconstitucionalidade desprovida de qualquer utilidade, uma vez que o expurgo do dispositivo legal impugnado não será capaz, por si só, de obstar a atuação da Defensoria Pública na defesa dos interesses difusos (já que a legitimidade deflui do sistema jurídico e não de uma regra isolada). O caso é de extinção do processo sem resolução do mérito, por carência de ação, nos moldes do art. 267, VI do Código de Processo Civil;

8) os Magistrados têm o poder/dever de assegurar a legitimidade da Defensoria Pública para defender os interesses difusos, pois esta, independentemente de regramento legal, é reflexo da cláusula constitucional de acesso à justiça e instrumento de consolidação do Estado Democrático de Direito;

9) restringir a legitimação da Defensoria traria prejuízo para o próprio Poder Judiciário, que seria forçado a criar mecanismos administrativos destinados a conter a enxurrada de ações individuais ajuizadas para resolver o problema. Demorada a solução, o ônus recairia sobre os Magistrados e sobre a população carente;

10) aproximadamente 30% da população brasileira é pobre e 8% vive na indigência. [41]Vedar a legitimidade da Defensoria Pública para ajuizar ação civil pública em defesa dos interesses das pessoas carentes é declarar a inocuidade de diversos dispositivos constitucionais, dentre eles o art. 134, que dispõe que a Defensoria Pública é instituição essencial à função jurisdicional do Estado, incumbindo-lhe a orientação jurídica e a defesa, em todos os graus, dos necessitados.


Notas

01 Todos os conceitos são fornecidos pelo legislador da Lei Federal nº 8.078/90, Código de Defesa do Consumidor, artigo 81, Parágrafo Único, I, II e III.

02 BARBOSA MOREIRA, José Carlos. A legitimação para a defesa dos ‘interesses difusos’ no Direito Brasileiro. Revista Forense, vol. 276, p. 82.

03 GRINOVER, Ada Pellegrini Grinover. Novas tendências tutela jurisdicional dos interesses difusos. Revista da Associação dos Juízes do Rio Grande do Sul, vol. 31, p. 81.

04 NERY JUNIOR, Nelson e NERY, Rosa Maria de Andrade. Código Civil Anotado e Legislação Extravagante. 2ª ed. São Paulo: Revista dos Tribunais.

05 Nesse sentido, conferir TJMG, Apelação Cível nº 1.0024.04.388303-2/001, j. 04.08.2005.

06 STJ, REsp. 810.866/RS, j. 02.05.2006.

07 Registra-se que o sentido empregado para o termo "minorias" não é numérico, mas diz respeito àquela classe de pessoas historicamente excluídas e privadas de participação nas decisões político-sociais em razão de discriminações.

08 WATANABE, Kazuo. Tutela jurisdicional dos interesses difusos: a legitimação para agir. Revista de Jurisprudência do Tribunal de Justiça do Estado de São Paulo, vol. 88, p. 15.

09 Idem, ibidem, p. 18.

10 WATANABE, Kazuo. Op. Cit., p. 19.

11 PEIXINHO, Manoel Messias. A interpretação da Constituição e os princípios fundamentais. 2ª ed. Rio de Janeiro: Lúmen Júris, 2000, p. 62/63.

12 STF, HC nº 86.524, Rel. Min. Gilmar Mendes, j. 20.09.2005.

13 MANCUSO, Rodolfo de Camargo. Ação Civil Pública. 9ª ed. Editora Revista dos Tribunais. São Paulo: 2004, p 138/189.

14 Fonte: http://tecnologia.terra.com.br/interna, acesso realizado em 09.08.2007.

15 TJRS, AC 2003.001.04832, 6ª Câmara Cível, Rel. Des. Nagib Slaibi Filho, j. 26.08.2003.

16 TJRJ, AI 3274/96, 2ª Câmara Cível, Rel. Des. Luiz Odilon Bandeira, j. 25.02.1997.

17 GRINOVER, Op. Cit., p. 86.

18 REGO, Hermenegildo de Souza. Interesses difusos e conceitos tradicionais da legitimação ‘ad causam’, interesse de agir, representação, substituição processual e limites objetivos e subjetivos da coisa julgada (reformulação desses institutos processuais). Revista de Processo (RT), vol. 43, p. 265.

19 WATANABE, Op. Cit., p. 20.

20 L. L. JAFFE, The citizen as litigant, in Public Actions: the non-hohfeldian or ideological plaintiff. University of Pennsylvania Law Review, 1968, p. 1.033.

21 CAPPELLETTI, Mauro. Formações sociais e interesses coletivos diante da justiça civil. Revista de Processo (RT), vol. 5, p. 128.

22 O Desembargador do Tribunal de Justiça de Minas Gerais Kildare Gonlçalves Carvalho esclarece que "a Constituição semântica, em lugar de servir de limitação do poder, figura como o instrumento para estabilizar e eternizar a intervenção dos dominadores fáticos do poder político, sendo exemplo desse tipo de constituição a Carta de 1937 (Constituição do Estado Novo)." in Direito Constitucional. Teoria do Estado e da Constituição – Direito Constitucional Positivo. 11ª ed. Belo Horizonte: Del Rey, 2005, p. 204.

23 Conferir GASPARI, Élio. A Ditadura Envergonhada. 4ª reimpressão. São Paulo, Cia das Letras, 2004.

24 WATANABE, Op. Cit., p. 19.

25 Nesse sentido, BARBOSA MOREIRA, Op. Cit., p. 82; GRINOVER, Op. Cit., p. 92 e MANCUSO, Op. Cit., p. 27.

26 CAPPELLETTI, Op. Cit., p. 132.

27 MANCUSO, Op. Cit., p. 27. O Professor ressalta que "Dito de outro modo, o credenciamento outorgado a vários co-legitimados ativos para as ações de finalidade coletiva representa uma projeção, no plano judiciário, da diretriz constitucional da democracia participativa: à semelhança do apelo à integração da coletividade na boa gestão da coisa pública (plebiscito, referendo, audiências públicas, iniciativa popular de projetos de lei, participação em órgãos públicos colegiados de formação paritária) (...)." (Op. Cit., p. 22).

28 CARRION, Eduardo Kroeff Machado, Apontamentos de Direito Constitucional. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 1997, p. 82.

29 CAPPELLETTI, Op. Cit., p. 138.

30 Idem, ibidem, p. 139.

31 REGO, Op. Cit., p. 43.

32 BARBOSA MOREIRA, Op. Cit., p. 91.

33 MANCUSO, Op. Cit., p. 26.

34 MANCUSO, Op. Cit., p. 27

35 FERRAZ, Antônio Augusto Mello de Camargo in Ação civil pública, inquérito civil e Ministério Público. Ação Civil Pública – Lei 7.347/85 – 15 anos. Coord. Edis Milaré. São Paulo: RT, 2001, p. 91.

36 MANCUSO, Op. Cit., p. 34/35.

37 STF, REsp 856269/DF.

38 TJMG, APELAÇÃO CÍVEL N° 1.0701.03.059770-5/001.

39 STJ, RMS 21471 / PR, Rel Min. José Delgado, j. 7.11.2006.

40 STJ, REsp 469063 / RS, Rel. Mins. Humberto Gomes de Barros, j. 20.03.2007.

41 Fonte: http://www.ibge.gov.br.

Sobre o autor
Cirilo Augusto Vargas

Defensor Público do Estado de Minas Gerais. Mestre em Direito Processual Civil pela UFMG. Pós-Graduado em Direito Processual Civil pela PUC-MINAS. Ex-integrante do Projeto das Nações Unidas para Fortalecimento do Sistema de Justiça de Timor-Leste. Exerceu as funções de clerk perante a Suprema Corte do Estado do Alabama/EUA e de Defensor Público visitante perante a Defensoria Pública Federal do Estado do Alabama/EUA.

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

VARGAS, Cirilo Augusto. ADI nº 3.943: atentado contra a democracia. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 12, n. 1556, 5 out. 2007. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/10490. Acesso em: 24 nov. 2024.

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