I – RESUMO DA QUESTÃO
A questão sob análise diz respeito à Ação Direta de Inconstitucionalidade nº 3.943, movida pela Associação Nacional dos Membros do Ministério Público (CONAMP) perante o Supremo Tribunal Federal, em 16 de agosto deste ano. Argüiu-se a inconstitucionalidade de dispositivo da Lei Federal nº 7.347/85, inserido por força da Lei Federal nº 11.448/2007, que introduziu a Defensoria Pública como legitimada para propor ação civil pública.
Sustentou-se, na peça exordial, que "A inclusão da Defensoria Pública no rol dos legitimados impede, pois, o Ministério Público de exercer, plenamente, as suas atividades, pois concede à Defensoria Pública atribuição não permitida pelo ordenamento constitucional, e mais, contrariando os requisitos necessários para a ação civil pública, cuja titularidade pertence ao Ministério Público, consoante disposição constitucional." Alega ainda "vício material de inconstitucionalidade" por suposta afronta aos artigos 5º, LXXIV, e 134 da Constituição Federal, uma vez que a Defensoria Pública teria sua atuação condicionada à individualização precisa de seus assistidos. Consequentemente, estaria a Defensoria Pública impedida de pleitear, por meio da ação civil pública, a defesa de interesses difusos. Requer a juntada de diversos textos produzidos por membros do Ministério Público, endossando a tese aventada. Pede, ao final, declaração de inconstitucionalidade do inciso II do artigo 5º da Lei Federal nº 7.347/85.
Em epítome, é o resumo da questão. Passaremos adiante à apreciação dos argumentos lançados na petição inicial da ADI nº 3.943.
II – DELIMITAÇÃO DE CONCEITOS ESSENCIAIS
Inicialmente, imperioso traçar a distinção (nítida) existente entre os termos interesse difuso, coletivo e individual homogêneo. [01]
Para José Carlos Barbosa Moreira, interesse difuso é aquele que não pertence a uma pessoa isolada, nem a grupo nitidamente delimitado de pessoas, mas a uma série indeterminada ou de difícil ou impossível determinação, cujos membros não se ligam necessariamente por vínculo jurídico definido. Para o Professor, "pode tratar-se, por exemplo, das pessoas que vivem sob tais ou quais condições sócio-econômicas (...)." Refere-se a um bem indivisível, no sentido de insuscetível de divisão em quotas atribuíveis individualmente a cada qual dos interessados. [02]
Interesse coletivo, noutro passo, pode ser entendido como interesse "comum a uma coletividade de pessoas e apenas a elas, mas ainda repousando sobre um vínculo jurídico definido que as congrega". Ele é pertinente aos membros de uma sociedade comercial, de um condomínio ou aos empregados de determinada categoria profissional. [03]
Nelson Nery Júnior e Rosa Maria de Andrade Nery, em nota ao art. 81 da Lei nº 8.078/90, frisam serem direitos individuais homogêneos aqueles "Cujo titular é perfeitamente identificável e cujo objeto é divisível e cindível". Os autores asseveram que "o que caracteriza um direito individual comum como homogêneo é sua origem comum. A grande novidade trazida pelo CDC no particular foi permitir que esses direitos individuais pudessem ser defendidos coletivamente em juízo. Não se trata de pluralidade subjetiva de demandas (litisconsórcio), mas de uma única demanda, coletiva, objetivando a tutela dos titulares dos direitos individuais homogêneos. A ação coletiva para a defesa de direitos individuais homogêneos é, grosso modo, a class action brasileira." [04]
É lícito portanto, supor, como premissa inicial, que o interesse das "pessoas carentes", analisado de maneira ampla, é um interesse difuso, eis que as mesmas podem ser qualificadas como pessoas que vivem sob determinadas condições sócio-econômicas, segundo os dizeres do Professor Barbosa Moreira. Indo além, afirmamos que certos pleitos, tidos como prioritários pelas instituições de defesa da coletividade (como fornecimento de medicamentos, face a urgência que na maioria das vezes envolve a questão) dizem respeito à tutela de interesses individuais homogêneos [05].
III – A LEGITIMIDADE DA DEFENSORIA PÚBLICA ANTECEDE A CRIAÇÃO LEGISLATIVA
Não é novidade que uma norma jurídica somente alcança sua finalidade social quando é interpretada em conjunto com as demais disposições que regem a matéria e, principalmente, conforme a Constituição. Busca-se, a partir daí, sua efetividade, em consonância com os princípios fundamentais. Como bem ressaltou o Ministro do Superior Tribunal de Justiça Francisco Falcão, "atualmente observa-se uma tendência à modernização da técnica processual em benefício do cidadão, para permitir-lhe o amplo acesso a uma Justiça não só célere, como também efetiva, que garanta a realização do direito substantivo. Em outras palavras, o procedimento para a garantia dos direitos deve servir tanto à proteção dos direitos fundamentais quanto à reivindicação dos direitos sociais" [06].
Sabe-se que a interpretação pura e simples do art. 6º do Código de Processo Civil, autorizando o ingresso em juízo somente do titular da res in iudicio deducta há muito perdeu terreno (quando se trata, evidentemente, da defesa dos interesses meta individuais). Não é necessário ser sociólogo de profissão para reconhecer que a massificação das relações sociais (e a busca pela concretização de um Estado Democrático de Direito verdadeiramente participativo) exigiu a elaboração de mecanismos que atendessem à crescente demanda por uma prestação jurisdicional diferenciada, justamente capaz de oferecer meio célere e eficaz de proteção dos grupos sociais em destaque (consumidores, idosos, índios, negros, mulheres, homossessuais, pobres, deficientes físicos, etc. As denominadas minorias [07]). Kazuo Watanabe ensina que "para a realização de todos os objetivos e metas sociais colimados, o Estado não tem condições de agir sozinho e por isso convoca o auxílio de todos os membros da coletividade, procurando estimular a criação espontânea de corpos sociais que possam apoiar seus inúmeros propósitos." [08]
O festejado Professor da Universidade de São Paulo observa também que a Carta Magna, ao estimular expressamente a solidariedade (em seu art. 160 e 176), o fez no escopo de direcionar a atuação estatal no sentido de impor aos entes públicos uma posição firme voltada para a realização da justiça social:
"Não posso deixar de extrair dessas normas uma conseqüência importante: se a Constituição recomenda a solidariedade e estimula a organização de associações, não o faz, por certo, apenas retoricamente e para fins recreativos, mas sim com reais propósitos promocionais, para a realização do bem estar da coletividade (vale ressaltar que os objetivos claramente anunciados no art. 160 são o –desenvolvimento nacional- e a –justiça social-)." [09]
O mesmo autor ainda enumera uma série de dispositivos legais que autorizam a defesa de interesses difusos por entidades despersonalizadas, como o condomínio e o espólio. Em todos esses casos, "o que se tem é a utilização, pelo legislador, de uma técnica de facilitação do acesso ao Judiciário, concedendo a um ente não personificado, que será representado por pessoa indicada por lei, a faculdade de ser parte no processo, ao invés da figuração de todos os membros da comunidade, o que seria, por vezes, pelo número de interessados, extremamente penoso e até mesmo impraticável." [10]
Manoel Messias Peixinho, em sua dissertação intitulada A interpretação da Constituição e os princípios fundamentais, observa que "A indeterminação da norma constitucional, porém, não significa falta de eficácia. Antes, quer dizer que a Constituição é elaborada para orientar os destinos de um País durante um tempo indefinido, enfrentando, muitas vezes, crises institucionais e não previsíveis, no momento de sua feitura. Essa característica da norma constitucional explica a sua linguagem muitas vezes vaga e genérica, permitindo adaptar-se às contingências". [11]
O eminente Ministro Gilmar Ferreira Mendes, ao abordar a importância dos princípios fundamentais, reforça nossa argumentação, no sentido de que tais normas são dotadas de inegável efetividade, vinculando a atuação do Estado, em todas as esferas de poder (Legislativo, Executivo e Judiciário):
"Evidentemente, não só o legislador, mas também os demais órgãos estatais com poderes normativos, judiciais ou administrativos cumprem uma importante tarefa na realização dos direitos fundamentais. A Constituição de 1988 atribuiu significado ímpar aos direitos individuais. Já a colocação do catálogo dos direitos fundamentais no início do texto constitucional denota a intenção do constituinte de emprestar-lhes significado especial. A amplitude conferida ao texto, que se desdobra em setenta e sete incisos e dois parágrafos (art. 5º), reforça a impressão sobre a posição de destaque que o constituinte quis outorgar a esses direitos. A idéia de que os direitos individuais devem ter eficácia imediata ressalta a vinculação direta dos órgãos estatais a esses direitos e o seu dever de guardar-lhes estrita observância. O constituinte reconheceu ainda que os direitos fundamentais são elementos integrantes da identidade e da continuidade da Constituição, considerando, por isso, ilegítima qualquer reforma constitucional tendente a suprimi-los (art. 60, § 4º)." [12]
Ao seu turno, Rodolfo de Camargo Mancuso, analisando normas contidas no Código de Defesa do Consumidor, considerado um microssistema constitucional de proteção integral do consumidor (um dos mais vulneráveis grupos sociais da atualidade) assevera que "diante da determinação contida no art. 117 da Lei n. 8.078/90 de aplicação, no que for cabível, dos dispositivos constantes no Título III do CODECON para a defesa dos direitos e interesses difusos, coletivos e individuais, a doutrina e jurisprudência pátrias, embora de maneira ainda acanhada, vêm firmando o entendimento de que, para fins de publicização da ação civil pública, deve-se utilizar um critério pluralista, de forma a incluir entre os legitimados para a propositura de tal ação até mesmo entidades ou órgãos públicos sem personalidade jurídica." [13] Ora, critério pluralista de legitimação, para fins de publicização da ação civil pública, é instrumento de alcance da justiça social!
Pois bem. Aonde se chega por meio da afirmação anterior? À simples conclusão de que, muito antes da alteração da Lei da Ação Civil Pública (alteração, frisa-se, combatida por meio da aludida ADI 3.943), dispositivos esparsos no ordenamento jurídico brasileiro já autorizavam a Defensoria Pública a figurar como legitimada à propositura da ação civil pública! A norma impugnada veio apenas acompanhar uma profunda evolução social que coloca a instituição no seu devido lugar, ou seja, na condição de Função Essencial à Justiça, com plena autonomia funcional, na defesa das pessoas carentes (CR/88, artigo 134, § 2º).
Reconhecer a importância da Defensoria Pública no acesso da população carente à justiça é verificar que, num País de miseráveis, cuja maioria esmagadora nunca teve sequer acesso à internet (79%, segundo dados do IBGE) [14] é no mínimo pueril sustentar a vigência de um Estado Democrático de Direito. Afastado da democracia, o Brasil é a terra da dicotomia sócio-econômica. E cada vez mais longe do Direito estaremos, enquanto as classes economicamente desfavorecidas continuarem privadas do exercício efetivo do direito de ação.
O argumento ora expendido é acompanhado pelos mais prestigiosos tribunais do País, a saber:
"Direito Constitucional. Ação Civil Pública. Tutela de interesses consumeristas. Legitimidade ad causam do Núcleo de Defesa do Consumidor da Defensoria Pública para a propositura da ação. A legitimidade da Defensoria Pública, como órgão público, para a defesa dos direitos dos hipossuficientes é atribuição legal, tendo o Código de Defesa do Consumidor, no seu art. 82, III, ampliado o rol de legitimados para a propositura da ação civil pública àqueles especificamente destinados à defesa de interesses e direitos protegidos pelo Código. Constituiria intolerável discriminação negar a legitimidade ativa de órgão estatal – como a Defensoria Pública – as ações coletivas se tal legitimidade é tranquilamente reconhecida a órgãos executivos e legislativos (como entidades do Poder Legislativo de defesa do consumidor. Provimento do recurso para reconhecer a legitimidade ativa ad causam da apelante." [15]
"AÇÃO CIVIL PÚBLICA – DEFENSORIA PÚBLICA – LEGITIMIDADE ATIVA – CRÉDITO EDUCATIVO – Agravo de instrumento. Ação Civil Pública. Crédito Educativo. Legitimidade ativa da Defensoria, para propô-la. Como órgão essencial à função jurisdicional do Estado, sendo, pois, integrante da Administração Pública, tem a Assistência Judiciária legitimidade autônoma e concorrente, para propor ação civil Pública, em prol dos estudantes carentes, beneficiados pelo Programa do Crédito Educativo. Assim, a decisão que rejeitou a argüição de ilegitimidade ativa, levantada pelo Parquet, não lhe causou qualquer gravame, ajustando-se, in casu, à restrição acolhida na ADIN 558-8-RJ – Recurso reputado prejudicado em parte e em parte desprovido." [16]
E a questão que mais interessa é a seguinte: ambos os julgados foram proferidos em data bem anterior à publicação da Lei Federal nº 11.448 (questionada pela CONAMP), que se deu em 15 de janeiro de 2007. Tal fato denota o grau de maturidade (e de consciência dos valores constitucionais) que as instituições já haviam atingido naquela época. Os tribunais perceberam, não há dúvida, o alcance social da Defensoria na defesa dos interesses difusos, por meio do manejo da ação civil pública. Por último, destaca Grinover que "quer promane de normas constitucionais expressas, quer deflua do próprio sistema, o reconhecimento de necessidades coletivas a serem satisfeitas e tuteladas deu margem à criação de numerosos órgãos governamentais, altamente especializados, encarregados dessa tutela (...) [17]".
IV – A LEGITIMIDADE DA DEFENSORIA É ORDINÁRIA E NÃO EXTRAORDINÁRIA
(Conceito de ‘parte ideológica’)
A Defensoria Pública existe para prover orientação jurídica e a defesa, em todos os graus, dos necessitados. Se a instituição foi criada com finalidade específica de proteção de certo interesse difuso, referente a pessoas que vivem sob determinadas condições sócio-econômicas (pessoas carentes) e a interpretação literal do artigo 6º do CPC é insuficiente, como antes ressaltamos, a legitimação da Defensoria Pública para defesa de interesses meta individuais é ordinária e não extraordinária.
A legitimação extraordinária decorre da lei (defende-se em nome próprio interesse alheio). A legitimação da Defensoria Pública para o manejo da ação civil pública decorre do sistema! (quando atua, a instituição defende interesse próprio). Para Hermenegildo de Souza Rego, "uma pessoa pode ser idônea e figurar como autor ou réu em virtude de duas situações especiais: ou essa idoneidade resulta de sua própria posição relativamente ao conflito de interesses (legitimação ordinária), ou resulta de expressa autorização legal (legitimação extraordinária). No primeiro caso será preciso que a posição da pessoa, no conflito de interesses, corresponda a uma situação prevista no ordenamento jurídico como legitimadora da posição do autor ou réu no processo." [18]
Watanabe observa, ao tratar da legitimidade das associações, que "a legitimação, conforme já ficou anotado, é ordinária, e não extraordinária. Associação que se constitua com o fim institucional de promover a tutela de interesses difusos (meio ambiente, saúde pública, consumidor, etc.), ao ingressar em Juízo, estará defendendo um interesse próprio, pois os interesses de seus associados e de outras pessoas eventualmente assistidas, são também seus, uma vez que ela se propôs a defendê-los como suas própria razão de ser." [19]
Ora, seguindo a mesma linha de raciocínio, a Defensoria Pública se propõe a defender os interesses das pessoas carentes (interesse difuso, sempre frisamos) como sua própria razão de ser! Logo, não há laivo de dúvida quanto à qualidade de sua legitimação para a propositura da ação civil pública, ou seja, ordinária, eis que decorre de interpretação sistêmica e teleológica da ordem jurídica brasileira.
O conceito de parte ideológica, definido em 1968 por Louis Jaffe [20], trouxe a idéia que justa parte para defender prerrogativa meta individual não é mais somente o titular do direito ou interesse legítimo feito valer em Juízo, ou o sujeito direta e pessoalmente prejudicado, mas, ainda, o sujeito privado, individuo ou grupo espontâneo, que age para o bem coletivo. [21] É lícito supor que num País assolado pela miséria como o Brasil, a Defensoria age em prol do bem coletivo. Caso contrário, não menos correto seria supor que nossa Constituição, numa classificação conforme a concordância com a realidade (ontológica) seria semântica, ou seja, com regras desprovidas de aplicabilidade e normatividade [22].
Despiciendo anotar que a viga mestra de qualquer Estado autoritário está cravada no afastamento do povo das decisões políticas. E tal desiderato é facilitado quando existem mecanismos legais ou ideológicos de redução do acesso ao Poder Judiciário. Basta lembrar que em nosso período de exceção mais sombrio, quando as regras eram ditadas por um simulacro de constituição, o habeas corpus foi restringido e sua utilização para liberar presos políticos vedada [23]. Caso típico de constituição semântica.
Encerramos esse tópico fazendo nova menção a Watanabe quando o mesmo indaga:
"Por quê não entender-se, então, com recurso à técnica de interpretação acima mencionada, que está ínsita no sistema a autorização da mesma técnica de representação de uma comunidade de interessados, determinados ou difusos, não apenas por entes não-personificados, mas por entes dotados de personalidade jurídica, como associações?" [24]
V – DO SUPOSTO MONOPÓLIO PROCESSUAL
(Afronta à ‘democracia participativa’)
O intérprete incauto talvez não se assombre com os seguintes dizeres da CONAMP:
"A inclusão da Defensoria Pública no rol dos legitimados impede, pois, o Ministério Público de exercer, plenamente, as suas atividades, pois concede à Defensoria Pública atribuição não permitida pelo ordenamento constitucional, e mais, contrariando os requisitos necessários para a ação civil pública, cuja titularidade pertence ao Ministério Público, consoante disposição constitucional."
Em primeiro lugar, a doutrina mais séria e respeitada assentou o entendimento que a legitimidade para propositura da ação civil pública é autônoma, concorrente e disjuntiva, significando que cada um dos entes interessados está habilitado a agir em juízo, na defesa dos interesses difusos, quer isoladamente, quer mediante a formação de um litisconsórcio voluntário. [25] Logo, a inclusão legal da Defensoria em nada afeta o panorama já consolidado de repartição da responsabilidade.
Em segundo lugar, a CONAMP parece sustentar a existência de um regime de cartelização processual. Explicamos: a autora defende a idéia que o Ministério Público detém o monopólio das ações coletivas, como se o interesse processual fosse somente daquela instituição. ("Posso afirmar que ignoro a quem pertence o ar que respiro. Mas não tenho dúvida de que sou co-titular do direito de respirá-lo.") [26] A posição exclusiva do MP como paladino da justiça, senhor que move mares e montanhas em defesa dos interesses difusos, atenta contra a própria idéia de pluralização do acesso à justiça e redunda em violação da chamada democracia participativa, referida por Mancuso:
"A opção pelo critério da legitimação concorrente – disjuntiva, a par de consultar a diretriz da democracia participativa – vem ainda justificada pelo propósito de preservação de uma desejável proporcionalidade entre a vasta extensão do objetivo das ações de finalidade coletiva e a relação dos credenciados a portá-las em juízo, pela boa razão de que não se justificaria a concentração do poder de agir em mãos de um só legitimado ativo, numa sorte de cartelização processual de um interesse que a todos concerne." [27]
Como bem salienta Eduardo Kroeff Machado Carrion, "A democracia não se identifica unicamente com um sistema de valores, mas se traduz igualmente em mecanismos e instituições. Quais mecanismos e instituições asseguram finalmente a legitimidade democrática do poder? Não somente quanto à sua origem, mas também quanto ao seu exercício, já que a democracia é não apenas uma forma de chegar ao poder, mas ainda uma forma de exercê-lo". [28]
O terceiro e mais importante ponto a ser analisado, dentro deste tópico, diz respeito à falsa premissa levantada pela CONAMP de que o Ministério Público é um órgão público onipotente e onipresente. Ora, se o MP se coloca, como o fez, na condição de solução para todos os males, uma verdadeira panacéia, significa que a instituição possui estrutura, mão-de-obra e boa vontade necessárias para resolver todos os problemas que afetam a coletividade. O que, na prática, consiste numa descompassada falácia!
Jurista mundialmente respeitado, Mauro Cappelletti questiona veementemente a própria idoneidade do Parquet para promover a defesa judicial dos interesses meta individuais. Sustenta que "não obstante os esforços da Constituição Italiana, que tem tentado, sem pleno sucesso, romper uma tradição multissecular, o Ministério Público está sempre muito ligado ao Executivo, por ser institucionalmente capaz de erigir-se defensor dos interesses, constitucionais ou de outra natureza, que muitas vezes precisam de proteção contra abusos perpetrados pelos próprios órgãos políticos e administrativos." [29]
Cappelletti ainda preleciona que é possível encontrar o jovem juiz que, em suas decisões, se revolta contra a jurisprudência das Cortes Superiores. Todavia, pondera, "tal forma de pluralismo não existe no seio da ‘magistratura em pé’. Qual instituto poderia então, ser menos idôneo que o Ministério Público a fazer-se paladino de idéias, de interesses e necessidades novas e não tradicionais?" [30]
Também de desencanto em relação à atribuição ao Ministério Público da função de defesa dos interesses difusos é a conclusão do processualista italiano Vincenzo Vigoriti. Isso principalmente porque a intervenção desse órgão no processo civil é por ele considerada como expressão de um modelo jurídico e social superado, baseado na contraposição "interesse público-interesse privado", à qual se reduziriam (se se atribuísse a tutela ao Ministério Público), os interesses difusos (matéria que evidencia, precisamente, a superação daquela summa divisio). [31]
Barbosa Moreira, ao seu turno, tece considerações no sentido de que a incapacidade do Ministério Público para solucionar, por conta própria, o problema dos interesses difusos decorre de uma não consolidada independência do órgão, fato que obstaria sua atuação efetiva em confronto com a Administração Pública. [32]
A possível submissão do MP aos interesses do Poder Executivo é (não sem razão) apenas uma das facetas do problema. Há, porém, um outro dado mais relevante, que sublinha a limitação do Parquet e ressalta a artificialidade dos argumentos lançados na petição inicial. Passemos ao problema.
Mancuso esclarece que, quando da idealização legislativa do sistema de solução dos conflitos meta individuais, a perspectiva era de que todos os entes legitimados a atuar em juízo, em defesa deste ou daquele grupo intermediário, efetivamente tomassem parte e agissem com presteza, de forma equânime. A meta era consolidar a democracia participativa, numa crença de que as entidades cumpririam seu ônus constitucional. Em outras palavras, os instrumentos foram disponibilizados, porém a realidade demonstrou que foram sub-utilizados (ou não utilizados, o que é bem pior).
"O fato da existência de expressiva oferta de instrumentos diversos para a resolução dos conflitos metaindividuais no plano da jurisdição coletiva não garante, porém, que na prática eles venham sendo implementados de forma razoavelmente equânime pelos vários co-legitimados, e isso porque, em paralelo a essa oferta, haveria de existir uma efetiva demanda, acompanhada de uma verdadeira mudança de mentalidade de todos os partícipes do ambiente judiciário (...)." [33]
Com o passar do tempo, o prognóstico teórico-normativo não se confirmou. A desídia ou retração dos co-legitimados gerou um inchaço das atribuições do Ministério Público, conjugado com o indesejado (e inevitável) déficit operacional da instituição. "O Projetado equilíbrio nas iniciativas judiciais para tutela dos valores metaindividuais, acabou por não se implementar na prática, em grande parte pela retração dos entes políticos nesse campo, tudo resultando numa sobrecarga para o órgão ministerial, o qual, dada a indisponibilidade dos valores que constituem objeto das ações de finalidade coletiva, não tem outra alternativa senão desdobrar-se para atender a tantas representações, denúncias e solicitações que lhe são encaminhadas por aqueles que, na verdade, também são legitimados ativos e portanto deveriam ser o parceiros no manejo das ações de finalidade coletiva!" [34]
A queda da eficiência logo foi detectada e provocou sobressalto na doutrina. Ciente da gravidade da situação, Antônio Augusto Mello de Camargo Ferraz fez a seguinte advertência:
"A multiplicação de casos a cargo do Ministério Público expõe a meu ver a instituição a graves riscos, como o do indevido inchaço de seus quadros, o da banalização e burocratização da atuação, e, sobretudo, o da perda de eficiência no enfrentamento das questões mais sérias e de maior relevância social." [35]
O parecer de Ferraz, atestando a limitação operacional do Ministério Público, merece credibilidade, pois foi elaborado por próprio membro do Parquet paulista. A situação ganhou contornos tão alarmantes que o Conselho Superior do Ministério Público do Estado de São Paulo publicou, em 19.07.2000, duas súmulas internas, de nºs 28 e 29 [36], destinadas a racionalizar a atuação do órgão com vistas a desafogá-lo, melhorando sua produtividade. Os fundamentos dos enunciados merecem transcrição:
Súmula 28 – Fundamento: "É conhecida a sobrecarga do Ministério Público na área dos interesses difusos, conceito no qual se insere o da probidade administrativa. O ideal seria que nossa estrutura permitisse a apuração de todo e qualquer ato de improbidade administrativa, ainda que cometido por funcionário sem qualquer poder decisório. Contudo, não mais é dado desconhecer que no momento atual a realidade demonstra que isto não possível. Urgente a racionalização do serviço, sendo imperioso que sejam traçados os caminhos prioritários na área. A proposta tem esta finalidade, buscando-se maior eficácia na atividade ministerial."
Sumula 29 – Fundamento: "O Ministério Público, de um tempo a esta parte, vem sendo o destinatário de inúmeros autos de infração lavrados pelos órgãos ambientais compostos, em grande parte, por danos ambientais de pequena monta. Isto vem gerando grande sobrecarga de trabalho, inviabilizando que os promotores de Justiça se dediquem a perseguir maiores infratores. Mostra-se inevitável a racionalização do serviço. A proposta ora apresentada tem esta finalidade. O desejável seria que nossa estrutura permitisse a apuração de todo e qualquer dano ambiental. Todavia, a realidade demonstra não ser isto possível no momento."
Ora, vejamos então: demonstrado de forma cabal que o Ministério Público não tem capacidade estrutural para lidar com todas as demandas relacionadas a interesses difusos, como pode a CONAMP sustentar, em sua petição inicial, que "A inclusão da Defensoria Pública no rol dos legitimados impede, pois, o Ministério Público de exercer, plenamente, as suas atividades (...)."? A argumentação peca pela absoluta falta de bom senso. Com a merecida vênia, o sentimento deveria ser de alívio e não de irresignação. Qualquer ser humano com um mínimo de capacidade intelectual indagaria, diante da situação: se o MP não consegue exercer plenamente suas atividades, como pode manifestar inconformismo com a atuação paralela da Defensoria Pública, que tem mostrado nos últimos tempos interesse e capacidade para enfrentar as questões?
Exemplo: recentemente uma organização não governamental forneceu material para que a Defensoria Pública Mineira movesse ação civil contra o Estado de Minas Gerais, pleiteando medicamento essencial, cujo fornecimento foi subitamente interrompido pelo ente político. A representante da referida entidade relatou que o problema enfrentado pelas centenas de portadores carentes de HIV já havia sido submetido ao Ministério Público que, não obstante a gravidade da situação, quedou-se inerte.
Lamentavelmente, a conclusão que se extrai é que o Ministério Público prefere atuar de maneira deficiente, incompleta, submetendo a população ao risco de não ver defendidas prerrogativas constitucionais da mais alta envergadura, a aliar-se à Defensoria Pública (e aos demais co-legitimados), numa inequívoca situação de prepotência e arbitrariedade (como se a garantia de acesso à justiça fosse optativa e pudesse ficar à mercê dos caprichos desta ou daquela instituição incumbida de defender a sociedade).
De bom alvitre ressaltar, por derradeiro, que o próprio artigo 127 da Constituição Federal limita a atuação do Ministério Público, em dispor que "O Ministério Público é instituição permanente, essencial à função jurisdicional do Estado, incumbindo-lhe a defesa da ordem jurídica, do regime democrático e dos interesses sociais e individuais indisponíveis." E tal limitação, evidentemente, é reconhecida pelos tribunais, que afastam a pretensão ministerial quando esta se revela destoante da finalidade constitucional. Vejamos alguns exemplos:
"AÇÃO CIVIL PÚBLICA – ILEGITIMIDADE DO MINISTÉRIO PÚBLICO – INADEQUAÇÃO DA VIA ELEITA – DEFESA DE INTERESSES DISPONÍVEIS E DIVISÍVEIS. (...) O pressuposto de nulificação do TARE diz respeito à pretensão tributária, o que é vedado ao Ministério Público objetivar por meio da ação civil pública. Interesses de contribuintes não se confunde com o de consumidores." [37]
"AÇÃO CIVIL PÚBLICA - PRESTAÇÃO DE SERVIÇOS EDUCACIONAIS - CDC - DIREITO INDIVIDUAL HOMOGÊNEO DISPONÍVEL - ILEGITIMIDADE DO MINISTÉRIO PÚBLICO. Ao Ministério Público incumbe a defesa de interesses difusos ou coletivos e dos interesses individuais homogêneos disponíveis, não tendo, contudo, legitimidade para defesa dos direitos puramente individuais disponíveis, consoante emerge do art. 127 da Constituição da República." [38]
Ao final, sublinhamos que não é a permanência da Defensoria Pública no rol dos legitimados para propor ação civil pública que impede, pois, o Ministério Público de exercer, "plenamente", as suas atividades. É o Texto Consitucional e a insuficiência logística do MP que cuidam de fornecer balizas para a atuação ministerial.