No Direito Constitucional, especialmente, no estudo sobre a separação dos poderes, torna-se importante diferenciar as formas de Governo e formas de Estado, sobretudo, estas para a compreensão da discussão constitucional que perpassa a Reforma Tributária, aprovada em 06/07/2023, às pressas, na Câmara dos Deputados.
Aristóteles concebeu três formas básicas de Governo: a) a Monarquia, governo de um só; b) a Aristocracia (governo de mais de um); e c) a República (governo em que o povo governa no interesse do povo). Maquiavel, em O Príncipe, declarou que todo Estado, todos os domínios que exerceram e exercem poder sobre os homens, foram e são ou Repúblicas ou Principados.
Assim, como objeto desta discussão, frisa-se na compreensão daquela última, isto é, formas de Estado, as quais afetam diretamente a estrutura da organização política e consequentemente, relaciona-se à discussão sobre a recente aprovação da Reforma Tributária (PEC 49/2019).
Atualmente, quatro são as formas de Estado:
Estado Unitário: os que têm um poder central, que é a cúpula e o centro do poder político;
Estado Federal (Federação): vários centros de poder autônomo convivem;
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Estado Regional: menos centralizado que o Estado Unitário, mas sem chegar ao extremo da descentralização federal (como no caso da Itália);
Estado Autonômico: É o criativo modelo espanhol, decorrente da Constituição de 1978. A Espanha é rica no seu pluralismo cultural, possuindo inclusive quatro idiomas reconhecidos no seu texto constitucional (o castelhano, o galego, o basco e o catalão).
No Brasil, a Federação foi inicialmente estabelecida no século XIX, por meio da Carta Constitucional promulgada em 1891, que além de prever a forma de governo republicano, em oposição ao regime monárquico vigente, substituiu o modelo de Estado unitário, passando a conceder autonomia aos Estados-Membros.
Todas as Constituições posteriores adotaram igualmente o modelo Federativo, no entanto a Constituição de 1988 teve a singularidade de incluir o Município como ente da federação. Dessa forma, o Estado federal brasileiro é constituído pela União, Estados, Distrito Federal e Municípios.
Em virtude de a Constituição Federal de 1988 ter elevado os Municípios à categoria de entidade federativa, o Brasil possui três esferas de governo.
Sabendo disso, o pacto federativo, em terras tupiniquins, está consagrado na distribuição das competências administrativas previstas na Constituição Cidadã, especialmente, no seu art. 18, o qual estabelece que: “A organização político-administrativa da República Federativa do Brasil compreende a União, os Estados, o Distrito Federal e os Municípios, todos autônomos, nos termos desta Constituição.”
Assim, à luz do artigo 1º ao 18 da Constituição Federal de 1988, são considerados entes da Federação: a União, os Estados-Membros, os Municípios e o Distrito Federal, todos autônomos. Essa autonomia pressupõe repartição de competências tomando-se por base o princípio da predominância do interesse, cabendo à União o interesse geral, aos Estados-Membros o interesse regional, aos Municípios o interesse local e ao Distrito Federal os interesses regional e local.
Atualmente, no Brasil, existe um cenário de forte desequilíbrio entre a geração de receitas e as responsabilidades dos Estados e Municípios na esfera administrativa. Tem-se, de um lado, uma excessiva centralização reguladora e arrecadatória, e de outro uma excessiva descentralização político-administrativa.
Assim, observa Reverbel1:
“O modelo de federalismo brasileiro que pretendia ser um misto de federalismo cooperativo e federalismo dual (competitivo), acaba, na prática, engessando tanto os mecanismos de competição, quanto os mecanismos de cooperação entre os Estados. O que se pretendia federalizar com a Constituição de 1988, acabou, em verdade, se unitarizando, ou descentralizando aos municípios: o verdadeiro nome sem a realidade.”
Ademais, no federalismo brasileiro, inspirado no norte-americano, houve sempre uma tentativa de centralizar as atividades governamentais e os recursos tributários no poder central, frustrando a ideia de um federalismo cooperativo.
Segundo Bachur2, no Brasil, a federação mantém-se travada, pois não viabiliza uma dinâmica institucional capaz de conjugar esforços nacionais para superar as disparidades regionais. Isso se deve a um hibridismo institucional, inclusive constitucional, que compromete a dinâmica federativa do país. Há uma prática fiscal competitiva incentivada em um arcabouço constitucionalmente propenso à coordenação, mas ainda institucionalmente indefinido. Fica o Brasil, assim, entre um modelo de “quase-cooperação”, por assim dizer (porque incompleto institucionalmente), e uma prática competitiva permitida pelas lacunas institucionais: em função dos interstícios não regulamentados, não é possível articular a cooperação e prevalece uma competição que, por não contar com balizas constitucionais bem definidas, degenera em predação.
Dentro desse raciocínio, as cláusulas pétreas (cláusulas de eternidade) são aquelas normas constitucionais para as quais não se admite mudança nem mesmo através de emenda constitucional. Na verdade, não será sequer objeto de deliberação a proposta de emenda constitucional tendente a aboli-las. Não há dúvidas de que dentre essas normas protegidas (pétreas) consta “a forma federativa de Estado” (artigo 60, parágrafo 4º, inciso I, CF).
Depois de percorrer essas linhas gerais, nota-se que a Reforma Tributária (PEC 45/2019), nos moldes do texto votado e aprovado junto à Câmara dos Deputados, violaria, sobremaneira, essa ideia de federalismo cooperativo, esvaziando, pois, de certa forma, o pacto federativo, diminuindo a autonomia financeira dos Estados e Municípios, pois sem competência tributária não haverá autonomia, e, portanto, a proposta de emenda constitucional seria inconstitucional desde sua origem, neste específico aspecto, e sequer poderia tramitar no Congresso, pois afetaria a “forma federativa de Estado” (artigo 60, parágrafo 4º, inciso I, CF).
Aqui, nesta breve discussão, não caberia discorrer sobre o “Governo dos mortos sobre os vivos”, em razão da idealização das cláusulas pétreas e sua impossível modificação (restrição), todavia, apenas, apresentar esta possível violação com tal reforma levada a cabo pelo Poder Legislativo Federal.
Sabe-se, ainda, que a Carta Magna elevou à condição de cláusula pétrea a forma federativa de Estado – art. 60, § 4º, inciso I. Ocorre que, sistematicamente, a União vem concentrando mais poderes, particularmente, no âmbito orçamentário-financeiro, comprometendo, pois, na esfera do Poder Executivo, a atuação dos Governadores e Prefeitos.
Além do mais, no que tange ao Poder Legislativo, as Câmaras de Vereadores e as Assembleias Legislativas vêm perdendo espaço no que se refere ao seu poder legiferante, notadamente em matéria tributária.
Nesse contexto, ensina Nagib Staibi Filho3:
“Descentralizando o poder de decisão estatal, em cada função e através de diversos níveis territoriais, o que é rigidamente previsto na Constituição, o sistema federativo tem a vantagem de permitir que as forças políticas, econômicas e sociais, em determinada região, não sejam asfixiadas.”
Dessa maneira, a asfixia dos entes federativos, pode dar-se nas três esferas de poder, centralizando mais poderes, do que os necessários, no Executivo Federal, em detrimento dos Estaduais e Municipais, bem como no próprio Congresso Nacional, em desfavor das Assembleias Legislativas e Câmaras de Vereadores, contrariando a vontade excelsa acolhia pelos legisladores constituintes.
O principal ponto da proposta de reforma tributária em análise no Congresso trata da unificação dos impostos, com a criação de um único imposto sobre bens e serviços, dividido em um tributo federal e um de Estados e Municípios, prevendo a substituição de 5 (cinco) impostos: a) PIS, Cofins e IPI (tributos federais), por uma Contribuição Sobre Bens e Serviços (CBS), gerida pela União; b) ICMS (tributo estadual), e ISS (tributo municipal), por um Imposto Sore Bens e Serviço (IBS), que será administrado pelos Estados e Municípios.
Outrossim, a proposta aprovada também prevê 3 (três) alíquotas para o futuro Imposto Sobre Valor Adicionado: a) Alíquota geral; b) Alíquota 50% menor para atividades como transporte público, medicamentos, produtos agropecuários in natura, serviços médicos e de educação; c) Alíquota zero para alguns medicamentos e setores como saúde etc.
Ao final, como a judicialização do tema será inevitável, tendo como palco o Supremo Tribunal Federal, após apresentada a PEC da Reforma Tributária, qualquer dos órgãos políticos legitimados pelo artigo 103 da Constituição Federal deveria propor uma ADI para discutir este específico tema central ao texto. O STF desde logo decidiria, porque a Constituição determina que não pode sequer ser debatida a proposta de emenda constitucional tendente a abolir uma cláusula pétrea, o que torna incabível o uso da jurisprudência de que não cabe a um Poder se imiscuir nas atividades do outro.
O STF poderia decidir com agilidade, objetivando destravar a pauta do Poder Legislativo, que, assim, poderá (ou não) apreciar a matéria sob esse aspecto. E desbloquearia a pauta do Poder Executivo, uma vez que, vedada esta alternativa, outros projetos possam ser gestados e apresentados ao Legislativo, sem esse viés de infringência às cláusulas pétreas, especialmente, sobre o federalismo.
De outra forma, caso a Reforma Tributária seja aprovada seguindo o rito estabelecido na Constituição Federal de 1988 pelo exercício do Poder Constituinte Derivado, mesmo ao arrepio do pacto federativo, à luz do Princípio da Unidade da Constituição, caberá ao seu intérprete o dever de harmonizar as tensões e conflitos existentes entre as normas constitucionais (originárias e derivadas), haja vista não existir hierarquia entre os dispositivos constitucionais (jurisprudência do STF).
Notas
REVERBEL, C. E. D. O federalismo numa visão tridimensional do direito. Editora Livraria do Advogado, 2011, p. 133)
BACHUR, J. P. Federalismo fiscal, atribuições fiscais constitucionais e equalização regional: EUA, Alemanha e Brasil em perspectiva comparada. Revista do Serviço Público, Brasília, v. 56, n. 4, p. 377-401, out./dez., 2005.
FILHO, N. S. Direito Constitucional. Editora Forense, 2004, p. 804)