O Tribunal de Justiça do Estado de Goiás proferiu decisão no sentido de que o despacho do juiz que recebe como representação e remete a denúncia, com os atos produzidos pelo Promotor de Justiça, à Delegacia, para instauração de inquérito, equivale à rejeição da exordial acusatória. É irregular a formalização da notitia criminis quando o representante do Ministério Público substitui-se à polícia judiciária e forma um processado, no qual toma por termo a declaração de testemunhas, designa e compromissa peritos, colhe as respostas aos quesitos e procede à juntada de documentos, oferecendo em seguida a denúncia. É que "as funções do Delegado de Polícia e as do Ministério Público só podem ser exercidas por integrantes das respectivas carreiras, conforme postulados constitucionais".
É esse o entendimento da Segunda Câmara Criminal do Tribunal de Justiça do Estado de Goiás, conforme noticia o acórdão publicado recentemente.
O caso em questão ocorreu quando o promotor, depois de coligir uma série de informações e entendê-las suficientes para embasar uma ação penal, ingressou em juízo e ofereceu a denúncia. O juiz, ao invés de receber a exordial, encaminhou os autos à delegacia de polícia para que se efetivassem as investigações. Entendida a atitude do juiz como uma rejeição à denúncia ofertada, o Ministério Público recorreu ao Tribunal de Justiça de Goiás e a Segunda Câmara Criminal manteve a decisão do juiz singelo. A decisão isolada do Tribunal goiano foi atacada através de recurso.
Na verdade, a Primeira Turma da Segunda Câmara Criminal do Tribunal de Justiça do Estado de Goiás, ao acompanhar o raciocínio do juiz singelo, julgou a causa contrariando a doutrina e a jurisprudência predominante. É importante ressaltar que a decisão da segunda Câmara Criminal do Tribunal de Justiça do Estado de Goiás confronta com outra emanada pelo mesmo Tribunal, pela Primeira Câmara Criminal em acórdão lavrado pelo Desembargador Joaquim Henrique de Sá (HC 11651-5/217 de Padre Bernardo. DJ 16.08.93). Daí podermos concluir que, para o Judiciário de Goiás, é controvertido o entendimento de que o Promotor pode presidir investigações preparatórias ao oferecimento da denúncia.
A doutrina e a jurisprudência dominantes no resto do país, contudo, seguem uma orientação uniforme. Isso porque inexiste a necessidade de estar a denúncia sempre acompanhada de inquérito. Dispondo de elementos para o oferecimento da denúncia, o promotor pode prescindir do inquérito policial. Esse é o entendimento do STJ em acórdão publicado no Diário da Justiça da União em 20.09.93. Antes disso, o Superior Tribunal de Justiça já havia assim se manifestado: "Como procedimento meramente informativo que é, o inquérito policial pode ser dispensado se o titular da ação penal dispuser de elementos suficientes para o oferecimento da denúncia" (DJU 08.06.92 p. 8594).
Na verdade, percebe-se que não deve prevalecer o entendimento de que o promotor de justiça deva escorar a sua opinio delictis apenas no inquérito policial. Outros elementos de convicção podem ser utilizados para que possa o titular da ação penal exercer seu mister. Prender a opinio delictis ao inquérito policial é cercear as prerrogativas de que dispomos para seguirmos apenas as informações colhidas pelo Executivo através da Polícia Judiciária.
Por outro lado, a Constituição Federal, no artigo 129, VII fixou como atribuição do Promotor de Justiça o poder de "expedir notificações nos procedimentos administrativos de sua competência". Quais são os procedimentos administrativos da competência do Ministério Público? São todos aqueles que possui para ingressar em juízo em defesa dos direitos individuais indisponíveis ou difusos e coletivos. Assim, o inquérito civil é procedimento que visa preparar a ação civil pública. Se os elementos contidos no inquérito civil apontarem para questões penais, nada impede ao promotor o oferecimento da denúncia, caso existam elementos para tanto. Assim, um conjunto de informações que indiquem a autoria, circunstâncias e materialidade de uma infração penal são elementos hábeis para que possa o Ministério Público exercer o direito (dever) da ação penal pública. Tais informações podem estar envelopadas em um conjunto de peças produzidas pela polícia judiciária ou podem estar contidas em outros tipos de cadernos informativos produzidos por outras pessoas que não pertencem aos quadros da polícia. Se a ação penal pública é dos misteres do Ministério Público, nada mais justo, mais lógico, mais adequado do que poder o Promotor de Justiça colher elementos informativos independentemente do inquérito policial. No dizer de Márcio Luís Chila Freyesleben, "a investigação criminal presidida pelo promotor é absolutamente normal e amparada em lei". O autor acima citado invoca a Constituição Federal (art. 129, VI e VII) e no Código de Processo Penal (art. 46, parágrafo 1º). Também reforça tal tese o fato de que a Lei Orgânica Nacional do Ministério Público (Lei 8625, de 12 de fevereiro de 1993) estabelece em seu artigo 26 que "no exercício de suas funções, o Ministério Público poderá expedir notificações para colher depoimento ou esclarecimentos, e requisitar exames periciais, dentre outras atribuições".
Freyesleben é incisivo ao afirmar que "para que o promotor possa formar sua convicção íntima, diante de certos fatos, é preciso que viva esses fatos, que os conheça todos a fundo. E que os conheça não através de alguns papéis, mas através de uma investigação pessoal, na qual ele próprio tenha tido a iniciativa na direção e desenvolvimento".
Na França, a apuração das infrações penais cabe à polícia judiciária que age sob a direção do Ministério Público. Tão logo tomam conhecimento de uma infração penal, os policiais procuram o Ministério Público a fim de obterem um "visto" para iniciarem as investigações. `A medida em que as diligências vão avançando, o Oficial ou o Agente de Polícia devem ter o cuidado de prestar contas das investigações ao titular da ação penal. Na Itália, a polícia trabalha sob a orientação e dependência dos Magistrados do Ministério Público. Igual posição ocorre na Alemanha.
Na Espanha, as investigações preliminares estão a cargo do Ministério Público que tem como auxiliares subordinados à polícia judiciária. Em Portugal, a "instrução preparatória" é secreta e fica a cargo do Promotor, estando a polícia judiciária na posição de órgão auxiliar do Ministério Público. Nos países da América Latina, a posição do Ministério Público é sempre a de orientador da Polícia na apuração das infrações Penais.
Entre nós, a posição do Ministério Público é a de controlar externamente a atividade policial. A iniciativa de principiar a investigação criminal cabe ao Delegado de Polícia, de ofício, mediante requisição do Ministério Público, ou a requerimento da parte ofendida. Aqui não existe uma relação direta de subordinação entre o Ministério Público e a polícia judiciária. Contudo, a lei maior impôs ao titular da ação penal a obrigação de efetuar uma supervisão direta do trabalho da polícia.
O controle externo faculta ao Promotor requisitar e fiscalizar o cumprimento de diligências junto à autoridade policial. Pode também "instaurar, sob sua presidência, procedimentos administrativos para apuração de infrações penais, desde que entenda tal prática necessária, diante da complexidade de cada caso, sem prejuízo da investigação concomitante da autoridade policial". (Carlos Henrique Fleming Ceccon, O Controle Externo da Atividade Policial. JUS, nº 13).
A tendência do legislador em ampliar os horizontes da atuação ministerial se revela mais patente se observarmos o conteúdo do artigo 201 do Estatuto da Criança e do Adolescente. Nele, se estabelece no inciso VII que é atribuição do Ministério Público instaurar sindicâncias, requisitar diligências e determinar a instauração de inquérito policial, para apuração de ilícitos ou infrações às normas de proteção da infância e juventude. José Luiz Mônaco da Silva em sua obra Estatuto da Criança e do Adolescente - Comentários (RT, 1994) comenta que na atribuição de instaurar procedimentos administrativos e sindicâncias, o Ministério Público pode "expedir notificações e requisitar informações, exames, perícias, diligências investigatórias" e em continuidade, o autor diz: "já as sindicâncias, cuja instauração, como vimos há pouco, é da atribuição do Promotor de Justiça, estão preponderantemente afetas à esfera criminal, no descobrimento de crimes e contravenções, sem prejuízo da investigação tendente a descobrir transgressão às infrações administrativas capituladas nos arts. 245 a 248 do Estatuto." Idêntica é a posição de Hugo Nigro Mazzilli ao discorrer sobre o assunto em O Ministério Público e o Estatuto da Criança e do Adolescente (Edições APMP, Cadernos Informativos, p. 55).
O acórdão goiano diz que o promotor de justiça não tem atribuição para confeccionar o inquérito policial, porque as funções de Delegado de Polícia e as do Ministério Público só podem ser exercidas por integrantes das respectivas carreiras, conforme postulados constitucionais. Ocorre que o promotor de justiça, ao conduzir procedimento administrativo com finalidade de colher elementos para a formação da opinio delicti, não está usurpando a função de Delegado de Polícia. A Constituição Federal não confere exclusividade à Polícia Civil na apuração de ilícitos penais. Se assim o fosse, estaria tolhendo, por exemplo, a faculdade do Poder Legislativo de apurar ilícitos penais através das Comissões Parlamentares de Inquérito. É bom lembrar também que, quando um Juiz de Direito se envolve em algum crime, cabe à Corregedoria da Justiça e não à Polícia Judiciária a tarefa de promover a apuração dos fatos. Nesse caso, estaria o Judiciário usurpando a função de Delegado de Polícia? A resposta é negativa. O Desembargador paulista Álvaro Lazzarini, em artigo publicado na Revista de Direito Administrativo (184:25-85 abr./jun. 1991) aponta que a Lei Orgânica da Magistratura (Lei Complementar nº 35, de 14 de março de 1979) reza que quando houver indício de prática de crime por parte de magistrado, o próprio Poder Judiciário é que se encarrega, através do Tribunal ou de órgão especial, das investigações, sendo vedado à autoridade policial, civil ou militar fazê-lo. Não deve ser esquecido que a nossa legislação eleitoral prevê caso de investigação para apuração de ilícitos penais sob a presidência do juiz eleitoral.
Igual poder tem o Legislativo, incumbido de fazer o papel de polícia judiciária de seus membros, sem contar ainda a polícia judiciária militar, tanto estadual, quanto federal, com atribuições específicas. Lazzarini conclui: "tudo isso demonstra a impossibilidade de prever-se em norma legal a exclusividade nas funções de polícia judiciária destinadas constitucionalmente a cargo das Polícias Civis, embora, como afirmei, elas devam ser entendidas de forma ampla, mas não exclusiva".
Não é diferente a posição de Tourinho Filho que, depois de invocar o parágrafo único do artigo 4º do Código de Processo Penal, diz claramente que "observa-se, desse modo, que o dispositivo invocado deixa antever a existência de inquéritos extrapoliciais, isto é, elaborados por autoridades outras que não as policiais, inquéritos esses que têm a mesma finalidade dos inquéritos policiais." O citado autor aponta que a regra é que a investigação deve ser presidida pela autoridade policial, mas que outras modalidades de investigação existem com a mesma finalidade. Tourinho também cita os inquéritos policiais militares, presididos por militares, o inquérito judicial nos crimes falimentares, presididos pelo juiz, as comissões parlamentares de inquérito, presididas por membros do legislativo e, finalmente, o inquérito civil, presidido pelo membro do Ministério Público.
A Constituição, ao estabelecer a atribuição da polícia civil não disse que a investigação de ilícitos penais lhe cabe de maneira privativa. Daí concluirmos, sem maior esforço intelectual, que as investigações criminais podem ser presididas por outros órgãos sem que a Constituição seja ferida. A nossa Carta Magna diz que as funções de Delegado de Polícia devem ser exercidas por integrantes da carreira, mas isso não significa que só ao Delegado cabe a tarefa de investigar crimes. Diz, sim, que para ser Delegado de Polícia é necessário o ingresso na respectiva carreira, fato que veda a possibilidade do cargo ser exercido pelos "delegados calça curta", ou seja, por pessoas estranhas à carreira. Os "delegados calça-curta" acabam por diminuir a imagem já tão desgastada do Delegado de Polícia e representam uma desvalorização da categoria que deve ser combatida.
O Ministério Público, titular privativo da ação penal tem legitimidade para promover investigações pois, conforme disse Hugo Nigro Mazzilli, "seria um contra-senso negar-lhe a possibilidade de investigação direta de infrações penais, quando isto se faça necessário, seja nos casos em que a polícia tenha dificuldades seja até mesmo quando os próprios policiais, porque envolvidos em crime, tenham desinteresse na apuração dos fatos".
O promotor de justiça ao presidir uma investigação criminal não está de forma alguma usurpando as funções do delegado de polícia, pelo contrário, ele está exercendo plenamente suas prerrogativas contribuindo para que as infrações penais sejam melhor apuradas em favor de uma sociedade tão ansiosa por Justiça. Nós, do Ministério Público, não somos produtores de inquéritos policiais. Podemos produzir, sim, peças de informação de caráter administrativo, semelhantes àquelas produzidas pela Polícia, que podem servir de base para o início da ação penal. É essa a opinião da doutrina e dos tribunais superiores. O Desembargador capixaba Antonio José Miguel Feu Rosa em seu Processo Penal (Vol. 1 , Rio de Janeiro: Ed. Didat. e Cient. 1993) captou bem a nova posição do Ministério Público em relação à persecução penal. Segundo ele, o inquérito policial deixou de ser monopólio da autoridade policial. O Ministério Público tornou-se parceiro em sua elaboração e fiscal permanente de sua legalidade.
Essa relevante novidade constitucional lamentavelmente vem sendo assimilada e digerida de maneira muito lenta. A máquina estatal - administrativa e judiciária - costuma resistir às novidades mostrando-se muitas vezes impermeável a elas, ou digerindo-as aos poucos - ou aos pouquinhos.
O Ministério Público não pretende afrontar e nem tomar a posição dos delegados de polícia. Contudo, a apuração de ilícitos penais feita exclusivamente pela polícia judiciária é retrocesso inadmissível e deve ser repudiado para que possamos ver garantido o pleno exercício da titularidade à ação penal pública.