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Ainda e sempre a investigação criminal direta pelo Ministério Público

Os últimos acontecimentos envolvendo os Bancos Marka e FonteCindam, prováveis beneficiários de informações privilegiadas a respeito da desvalorização do real implementada pelo Banco Central do Brasil – fato revelador da urgente necessidade de se criminalizar especificamente a figura do "insider trading" -, que culminaram com a expedição, pela Justiça Federal do Rio de Janeiro, de mandados de busca e apreensão nas sedes daquelas instituições bancárias e nas residências dos srs. Salvatore Cacciola e Francisco Lopes, reacenderam a discussão sobre os poderes investigatórios do Ministério Público em sede penal. Alardeou o Ministro da Justiça, nos meios de comunicação, que as medidas executadas a requerimento do parquet federal eram inconstitucionais, porquanto já decidira a 2ª Turma do Supremo Tribunal Federal que o Ministério Público não pode efetuar investigação criminal diretamente, por ser esta uma atribuição exclusiva da Polícia Judiciária, somente sendo lícito ao órgão ministerial a condução de inquéritos civis.

A decisão foi tomada no julgamento do RE nº 205473-9-AL (Rel. Min. Carlos Velloso, julg. em 15.12.98, v.u., DJU de 19.03.99), mas não é definitiva, posto que o Ministério Público Federal opôs Embargos de Divergência – a 1ª Turma posicionou-se em sentido contrário no HC nº 75.769-3-MG, 1ª T., Rel. Min. Octavio Gallotti, v.u., julg. em 30.09.97, DJU de 28.11.97 -, que brevemente serão julgados pelo Pleno do Pretório Excelso, quando, decerto, não prevalecerá a orientação momentaneamente sufragada pela 2ª Turma, por estar alicerçada em inconsistentes bases jurídicas.

O primeiro sinal nesse sentido já foi dado no seio da própria 2ª Turma. De fato, ao iniciar o julgamento do RE nº 233.072-RJ (Rel. Min. Néri da Silveira), onde a questão da constitucionalidade ou não do Ministério Público oferecer denúncia com base em procedimento administrativo instaurado internamente constitui objeto principal do apelo extremo - e não tema estranho ao recurso, como ocorrido no RE 205473-9-AL, em cujos autos sustentava-se a legalidade da requisição de inquérito policial determinada por membro do Ministério Público Federal contra Delegado da Receita Federal, por crime de desobediência e/ou prevaricação – o Min. Relator reconheceu a constitucionalidade da investigação criminal autônoma do Ministério Público. Em seguida, após o voto do Min. Nelson Jobim não conhecendo do recurso, o julgamento foi suspenso em virtude de pedido de vista do Min. Maurício Corrêa (Informativo STF nº 143).

A tese consagrada no RE nº 205473-9-AL vai de encontro a dispositivos constitucionais expressos (art. 129, I, VI e VIII), bem como ao texto da Lei Complementar nº 75/93 (art. 8º, V e VII) - que disciplina especificamente os poderes e prerrogativas institucionais conferidos ao Ministério Público da União -, de aplicação supletiva aos Ministérios Públicos Estaduais (art. 80 da Lei nº 8.625/93), eis que tanto a Lex Mater como a Lei Complementar nº 75/93 são de uma clareza solar em caracterizar a legalidade da atuação do Ministério Público, em se tratando de condução de investigação criminal no bojo de procedimentos administrativos instaurados em seu âmbito interno.

Decorre, via de conseqüência, que é incorreto afirmar que ao Ministério Público somente é dado conduzir investigações que se refiram a inquéritos civis. Tal ressalva, que em momento algum é feita pelos aludidos dispositivos, só pode ter como objetivo obstaculizar a atuação do órgão ministerial, manietando a Instituição que tem, por destinação constitucional, o poder-dever de zelar pela correta e fiel aplicação das leis em geral. Destarte, incide, à espécie, o vetusto princípio de hermenêutica jurídica, consistente na vedação de o intérprete fazer distinção onde o texto legal não fez, e nem foi sua intenção fazê-lo.

Dentro dessa linha de pensamento, com inteira razão Hugo Nigro Mazzilli, ao pontificar que "No inciso VI do art. 129, cuida-se de procedimentos administrativos de atribuição do Ministério Público - e aqui também se incluem investigações destinadas à coleta direta de elementos de convicção para a opinio delicti: se os procedimentos administrativos de que cuida este inciso fossem apenas em matéria cível, teria bastado o inquérito civil de que cuida o inc. III... Mas o poder de requisitar informações e diligências não se exaure na esfera cível, atingindo também a área destinada a investigações criminais" (apud Marcellus Polastri Lima, "Ministério Público e Persecução Criminal", ed. Lumem Juris, 1997, p. 89).

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Outro argumento que vem corroborar o equívoco interpretativo levado a efeito no RE nº 205473-9-AL, exsurge da análise da dicção constitucional constante do inciso VIII do art. 129: quisesse o legislador constituinte limitar a atuação ministerial, no campo investigatório, tão-somente às suas intervenções em sede de inquérito policial, não teria, nesse dispositivo, empregado a conjunção aditiva "e", e sim formulado expressão que condicionasse a requisição de diligências no momento da instauração ou no curso do inquérito, motivo por que podemos obtemperar, com o beneplácito do Tribunal de Alçada Criminal do Rio Grande do Sul, que "a CF, ao conferir ao MP a faculdade de requisitar e de notificar, defere-lhe o poder de investigar, no qual aquelas funções se subsumem" (HC nº 291071702, CCrim. de Férias, Rel. Juiz Vladimir Giacomuzzi, julg. 25.7.91, Julgados do TARS nº 79/129).

Resulta evidente, portanto, que se é facultado ao Ministério Público oferecer denúncia prescindindo do inquérito policial, lastreado em peças de informação contendo provas coletadas diretamente pela pessoa (física ou jurídica) representante, nada mais natural que se lhe conceda, igualmente, a oportunidade de investigar, em procedimento interno, a suficiência daquele acervo informativo para subsidiar, eventualmente, uma acusação penal, assegurando, a um só tempo, o não oferecimento de peça acusatória açodada e temerária, assim como a inocorrência de provável "eternização" da apuração dos fatos pela Polícia Judiciária.

Cabe refutar, ainda, o frágil fundamento de que a condução da investigação policial seria monopólio das Polícias Civis, Estaduais e Federal, visto que a Constituição, em seu art. 144, na única alusão que faz ao termo "exclusividade" (inciso IV do § 1º), visa afastar a superposição de atribuições entre a Polícia Federal e as Polícias Rodoviária e Ferroviária - também vinculadas à União, mas que têm funções de simples patrulhamento ostensivo das rodovias e ferrovias federais, respectivamente -, bem como entre a Polícia Federal (propriamente dita) e as Polícias Civis dos Estados, impedindo que haja a invasão das respectivas esferas de atuação.

Essa distinção foi feita pelo Pleno do Supremo Tribunal Federal, ao denegar liminar requerida pela ADEPOL (Associação Nacional dos Delegados de Polícia) na ADIn nº 1517-UF (Rel. Min. Maurício Corrêa, julg. em 30.4.97, Informativo STF nº 69) - era questionada a constitucionalidade do art. 3º da Lei nº 9.034/95 (Lei de Combate ao Crime Organizado), conferidor de poderes instrutórios ao juiz na fase investigatória -, tendo prevalecido o entendimento naquela oportunidade, vencido o Min. Sepúlveda Pertence, de que a investigação criminal não é monopólio da Polícia Judiciária, pois, como ressaltado pelo relator, "a Constituição não veda o deferimento por lei de funções de investigações criminais a outros entes do Poder Público, sejam agentes administrativos ou magistrados", o que, aliás, vem confirmar a indiscutível recepção da previsão contida no parágrafo único do art. 4º do Código de Processo Penal.

A conclusão inafastável que deflui da análise dessa decisão do Pretório Excelso é a de que, restando legitimada a atuação do juiz em sede investigatória de coleta de provas - a qual poder-se-ia objetar que comprometeria sua imparcialidade no ato de julgar (fundamento do voto vencido do Min. Sepúlveda Pertence) -, com muito mais razão dever-se-á admitir a atuação do Ministério Público, órgão detentor da titularidade privativa do exercício da ação penal pública e, portanto, destinatário imediato de qualquer investigação criminal, cuja intervenção pré-processual autônoma terá por objetivo garantir a apuração, isenta e rigorosa, de quaisquer violações às leis penais, evitando-se a ocorrência de um prejuízo potencial ao interesse público.

Importa consignar, outrossim, que a esse mesmo resultado se chegaria, ainda que não se considerasse explícita a autorização constitucional para a condução de investigações criminais diretamente pelo órgão do Ministério Público, invocando-se a Teoria dos Poderes Implícitos, cunhada pela Suprema Corte norte-americana no julgamento do caso MacCulloch vs. Maryland, de aplicação corrente no direito constitucional pátrio (cf. Pinto Ferreira, "Comentários à Constituição Brasileira", vol. 2, ed. Saraiva, 1989, p. 132 ), segundo a qual quando o constituinte concede a determinado órgão ou instituição uma função (atividade-fim), implicitamente estará concedendo-lhe os meios necessários ao atingimento do seu objetivo, sob pena de ser frustrado o exercício do munus constitucional que lhe foi cometido.

Por conseguinte, se incumbe ao Ministério Público, privativamente, o exercício da ação penal de iniciativa pública, é forçoso concluir que estarão compreendidos entre seus poderes e prerrogativas institucionais o de produzir provas e investigar a ocorrência de indícios que justifiquem sua atuação na persecução penal preliminar, instaurando o procedimento administrativo pertinente (art. 129, VI, da Carta Política), devendo assim proceder sempre que a atuação da Polícia Judiciária possa revelar-se insuficiente à satisfação do interesse público consubstanciado na apuração da verdade real (p. ex., quando ocorrer falta de isenção para apurar determinada infração penal, haja vista o envolvimento de outros policiais), ou, como assevera Hugo Nigro Mazzili ("Introdução ao Ministério Público", ed. Saraiva, 1997, p. 131), a "iniciativa investigatória do Ministério Público é de todo necessária, sobretudo nas hipóteses em que a polícia tenha dificuldades ou desinteresse em conduzir as investigações".

Falta rechaçar, por fim, a metajurídica alegação de que as investigações do Ministério Público poderiam violar direitos individuais ante a suposta ausência de controle sobre os indigitados atos ilegais perpetrados por seus membros. Essa assertiva improcede em sua inteireza, na medida em que, caso alguém venha a sofrer alguma espécie de constrangimento advindo de uma investigação criminal realizada pelo Ministério Público, poderá, evidentemente, manejar os diversos remédios jurídicos postos à sua disposição pela legislação processual, como faria normalmente com um ato ilegal atribuído ao agente da Polícia Judiciária, de sorte que não há falar em ausência de controle judicial sobre a investigação conduzida pelo Ministério Público. Além disso, qualquer procedimento investigatório porventura instaurado pelo órgão ministerial será, necessariamente, submetido ao crivo judicial, especialmente nos casos de arquivamento, que efetuará o controle do princípio da obrigatoriedade da ação penal, consoante já previsto, desde 1941, no art. 28 do CPP.

Espera-se que o Supremo Tribunal Federal, em sua composição plenária, não cale o Ministério Público negando-se-lhe necessários e indispensáveis poderes de investigação na esfera penal, sob pena dos seus integrantes, de agentes políticos, transformarem-se em meros espectadores da atuação, nem sempre eficiente e isenta, dos órgãos policiais, permitindo-se, dessa forma, que a prática de atos lesivos ao interesse público possam ser obstaculizados por interesses subalternos. O reconhecimento da legitimidade de o Ministério Público instaurar procedimentos criminais próprios não representará a criação de "Polícia Judiciária paralela", nem também a usurpação das atribuições constitucionais da Polícia, dado que a investigação ministerial possuirá a nota da excepcionalidade, continuando o organismo policial com a função precípua de investigar fatos delituosos, conquanto não a tenha em caráter exclusivo. (*)


NOTA

(*) Eis alguns jugados representativos desse entendimento: STJ, HC nº 7.445-RJ, 5ª T., Rel. Min. Gilson Dipp, julg. em 01.112.98, v.u., DJU de 01.02.99, p. 218, RHC 7.063-PR, 6ª T., Rel. Min. Vicente Leal, julg. em 26.08.98, v.u., DJU de 14.12.98, p. 302; TRF/4ª Região, HC nº 97.04.26750-9-PR, 1ª T., Rel. Juiz Fábio B. da Rosa, 1ª T., v.u., julg. em 24.06.97, DJU de 16.07.97; TJDFT, HC nº 1998.00.2.035-8, 1ª T., Rel. Des. Otavio Augusto, julg. em 12.03.98, v.u., DJ de 03.06.98, p. 38.

Sobre os autores
Aloísio Firmo Guimarães da Silva

procurador da República no Rio de Janeiro

Maria Emilia Moraes de Araujo

procuradora da República no Rio de Janeiro

Paulo Fernando Corrêa

procurador da República no Rio de Janeiro

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

SILVA, Aloísio Firmo Guimarães; ARAUJO, Maria Emilia Moraes et al. Ainda e sempre a investigação criminal direta pelo Ministério Público. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 4, n. 31, 1 mai. 1999. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/1054. Acesso em: 22 dez. 2024.

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