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Fundamentos das transferências intergovernamentais

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Agenda 29/10/2007 às 00:00

3. OBJETIVOS E JUSTIFICATIVAS DAS TRANSFERÊNCIAS

São vários os objetivos das transferências intergovernamentais, os quais podem vir combinados entre si. Entretanto, é possível afirmar que o objetivo geral das transferências é permitir a própria sobrevivência do Sistema Federativo de Estado.

3.1Idéias Preliminares

Previamente à discussão dos objetivos das transferências intergovernamentais, é importante discutir os fatores econômicos que influenciam na distribuição das competências materiais e tributárias ou arrecadatórias num Estado Federativo.

De início, cumpre esclarecer que tais distribuições originaram-se, no mais das vezes, de fatores históricos ou culturais e não da aplicação da racionalidade econômica. Acerca do tema, Mendes (2004, p. 423) salienta que: "Quando os economistas passaram a olhar o federalismo sob o prisma da racionalidade econômica, o que ocorreu por volta de 1950, as federações já existiam. Mudar tradições políticas e alterar pactos constitucionais é um processo lento e difícil. Assim, pode-se dizer que o federalismo fiscal procura estabelecer parâmetros de racionalidade e eficiência econômica que orientem os ajustes na organização das federações, à medida que o processo político permita tais alterações".

3.1.1Distribuição de Competências Materiais no Estado Federado

No que tange à distribuição de responsabilidades de gastos, Mendes (2004, p. 432) aponta que a orientação geral (consoante a proposta de Wallace Oates) é a de que "cada bem público deve ser provido pelo nível de governo que represente de forma mais próxima a área geográfica que se beneficia do bem".

Desta forma, existiriam os serviços de caráter local (tais como iluminação, pavimentação, zoneamento urbano, transportes públicos, regulamentação de atividades comerciais locais, etc.), que devem ficar a cargo das municipalidades, e os de caráter nacional (defesa, estabilidade monetária, relações internacionais, etc), que devem ser providos pelo Governo Central (Mendes, 2004, p.432).

Em defesa da descentralização administrativa, Oates (1999, p. 1123) aponta a assimetria de informação e a eficiência econômica na prestação local de determinadores serviços públicos. Argumenta que: "(...) governos locais estão presumidamente mais próximos das pessoas e da geografia das suas jurisdições; eles possuem o conhecimento das preferências locais e das condições de custo que o governo central provavelmente não tem. Em segundo lugar, existem tipicamente pressões políticas (ou talvez, até mesmo, restrições constitucionais) que limitam a capacidade do governo central de prover níveis mais elevados de serviços públicos em algumas jurisdições que em outras. Estas restrições tendem a requerer um certo grau de uniformidade nas diretrizes centrais. Existem, portanto, importantes restrições políticas e de informação que evitam que os programas centralizados produzam um padrão ótimo de saídas" (tradução livre).

A despeito desta orientação geral, Mendes (2004, p. 432) aponta diversos fatores que devem ser levados em conta na atribuição de responsabilidades de gasto entre os entes federados:

a) economias de escala;

b) heterogeneidade das preferências locais;

c) externalidades envolvidas e sua amplitude geográfica;

d) capacidade financeira de cada nível de governo.

Fala-se, também, no princípio da subsidiariedade, segundo o qual as funções públicas devem ser exercidas pelo nível de governo mais descentralizado possível, a menos que haja demonstrações concretas de que tais serviços podem ser exercidos de forma mais eficaz por níveis mais altos de governo (Mendes, 2004, p. 432).

Para exemplificar, utilizamos a área da educação.

Em se tratando de educação primária, existem vários fatores favoráveis à descentralização dos serviços para os governos locais: a grande dispersão geográfica do serviço, a possibilidade de ganhos significativos de qualidade quando a gerência descentralizada permite o envolvimento dos pais na administração das escolas e a possibilidade de diferenciação de currículo segundo as diferenças culturais locais (Mendes, 2004, p. 433).

No que tange aos ensinos superior e médio, é recomendável a sua prestação pelos governos central ou regional, em face de outros fatores. Um primeiro fator é a economia de escala, uma vez que tal ensino envolve maiores custos, tais como, laboratórios, bibliotecas e professores mais qualificados (Mendes, 2004, p. 433). Outro fator é a extensão dos benefícios para além da jurisdição local (externalidades), visto que estudantes habitantes de outras jurisdições podem se deslocar àquela com vistas a obter os serviços educacionais.

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3.1.2Distribuição de Competências Tributárias no Estado Federado

No tocante à distribuição das competências tributárias, a literatura econômica aponta diversos critérios para se avaliar se um tributo é adequado ou não à cobrança local.

O primeiro é a mobilidade da base tributária. Nos tributos sejam incidentes sobre bases móveis (tais como renda, consumo e patrimônio móvel), se a cobrança ficar a cargo das municipalidades, os contribuintes tendem a se deslocar para outras localidades de modo a obter uma menor tributação.

Mendes (2004, p. 431) cita o exemplo da tributação sobre a renda: "Se dois municípios impõem impostos sobre a renda de seus residentes, e um cobra uma alíquota mais alta que o outro, haverá uma indução à migração das pessoas para a cidade que cobra menos imposto. O raciocínio para o imposto de renda também vale para tributos sobre o lucro das empresas ou a sua folha de pagamento. Delegar a cobrança desse tipo de imposto a governos municipais e estaduais seria um estímulo à guerra fiscal, na qual cada governo procuraria cobrar o mínimo possível com vistas a atrair investimentos para seu território".

Desta forma, só os tributos incidentes sobre o patrimônio imobiliário são adequados para a cobrança pela administração tributária municipal.

Um pouco diferente é o entendimento de Oates (1999, p. 1125): "A diferença de mobilidade das unidades tributadas nos níveis central e descentralizado tem importantes implicações para o desenho da estrutura vertical de tributação. Os Tributos, como sabemos, podem ser fontes de distorções na alocação de recursos, visto que os compradores afastam suas compras dos bens tributados. Sob o aspecto espacial, tais distorções tomam a forma de ineficiências locais, visto que as unidades tributadas (ou os proprietários destas) buscam jurisdições onde eles podem obter um tratamento tributário relativamente favorável. Elevadas ''excise taxes'' em uma jurisdição, por exemplo, podem levar os compradores a assumir os custos improdutivos de deslocamento com vistas a comprar os itens tributados em jurisdições com alíquotas menores. Tais exemplos podem sugerir a conclusão de que os níveis descentralizados de governo devem evitar a tributação de unidades com elevada mobilidade (sejam famílias, capital ou bens finais). Mas isto não está exatamente correto. A implicação real é que os níveis descentralizados de governo devem evitar a incidência de tributos não sujeitos ao princípio do benefício sobre unidades móveis. Ou, mais precisamente, as análises econômicas demonstram que, segundo o princípio da eficiência, os governos locais devem tributar unidades econômicas móveis com tributos sujeitos ao princípio do benefício". (grifo nosso -tradução livre)

O segundo fator é a distribuição das bases tributárias pelo território nacional. Se houver uma distribuição desigual, os tributos devem ser de competência nacional. Caso contrário, a tributação servirá como forma de acentuar as disparidades regionais (Ter-Minassian, 1997, p. 9).

Neste contexto, a Tributação estadual sobre o Petróleo, seus derivados e sobre Energia Elétrica, no Brasil, recebeu tratamento especial no art. 155, §2°, X, "b" e o art. 155, §2°, XII, "h", da Constituição Federal. Segundo estes dispositivos não há incidência do ICMS sobre as "operações que destinem a outros Estados petróleo, inclusive lubrificantes, combustíveis líquidos e gasosos dele derivados, e energia elétrica" e a lei complementar deverá "definir os combustíveis e lubrificantes sobre os quais o imposto incidirá uma única vez, qualquer que seja a sua finalidade, hipótese em que não se aplicará o disposto no inciso X, b". Desta forma, ainda que a CF/88 não tenha atribuído competência tributária à União, buscou-se minimizar os efeitos da distribuição irregular das fontes de energia no território nacional.

O terceiro fator refere-se à possibilidade de "exportação de tributos". Para que os tributos permaneçam no âmbito local, é recomendável que não exista a possibilidade de exportação de tributos para não residentes. Tal ocorre, no Brasil, com o ICMS cobrado na origem e não no destino, conforme revela Mendes (2004, p 430): "Se for cobrado ''na origem'' (onde o bem é produzido), o indivíduo que consumir o bem no estado B estará financiando o governo do estado A, onde a mercadoria foi produzida, uma vez que o valor do imposto é embutido no preço da mercadoria. Se o IVA fosse arrecadado ''no destino'', o consumo só poderia ser taxado pela comunidade onde reside o consumidor, o que evitaria a exportação de tributos".

O quarto fator refere-se à facilidade de administração ou economia de escala na cobrança do tributo. Quanto maior a economia de escala envolvida na cobrança de um determinado tributo, maior o argumento para que este seja mantido no nível nacional.

O quinto fator refere-se à sensibilidade às alterações no nível de crescimento da economia. Segundo Ter-Minassian (1997, p.9), devem ser atribuídos ao governo central tributos que tenham uma elevada elasticidade-renda. Esta atribuição provê o governo central de instrumentos de estabilização e, além disso, protege os orçamentos locais das variações cíclicas da economia.

Ter-Minassian (1997, p. 9) aponta, por fim, que há um consenso geral de que os Tributos sobre o Comércio Exterior devem ser atribuídos ao governo central.

3.2Redução do Desequilíbrio Fiscal Vertical

O principal objetivo das transferências intergovernamentais compreende a redução do desequilíbrio fiscal vertical. As transferências buscam compatibilizar as receitas e as despesas atribuídas aos governos subnacionais. Isto porque a atribuição constitucional de competências materiais e tributárias aos entes descentralizados deve seguir critérios de eficiência e racionalidade econômica (conforme foi exposto anteriormente), de modo que, no mais das vezes, o nível de governo no qual está concentrada a prestação bens e serviços públicos não é contemplado com receitas próprias suficientes para o atendimento destas tarefas.

De uma forma geral, as economias reais são caracterizadas por algum grau de centralização das competências e da arrecadação tributária em relação à distribuição de encargos e, conseqüentemente, exigem algum sistema de transferências inter-governamentais (Prado ; Quadros ; Cavalcanti, 2003, p. 17).

Bahl (1999) salienta que, nos primeiros estágios do desenvolvimento de um Estado, as prioridades das responsabilidades do setor público são o desenvolvimento da infra-estrutura, a provisão de necessidades básicas de vida e a estabilidade econômica, o que tende para a centralização fiscal. Entretanto, com o desenvolvimento econômico e a urbanização, as necessidades de gastos públicos é deslocada para os serviços providos pelos governos locais, tais como, serviços sociais e saneamento básico. Sem receitas próprias em montante suficiente, os governos locais tornam-se inaptos para proverem níveis adequados de serviços públicos.

Bahl (1999) conclui que esta diferença ("gap") entre as responsabilidades de gastos e a arrecadação própria deve ser suprimida de duas formas: atribuindo-se uma maior competência tributária para os governos locais ou mediante transferências intergovernamentais.

A primeira alternativa foi discutida anteriormente (item 3.1.2), sendo fácil perceber que existem restrições à atribuição de competência tributária e arrecadatória aos governos locais.

Quanto às transferências intergovernamentais, Bahl (1999) levanta a questão da dificuldade de se determinar este "gap" para cálculo do montante das transferências. Segundo o autor, trata-se de uma medida essencialmente subjetiva. Nada obstante, alguns Estados estabelecem este montante com base em padrões mínimos de prestação de serviços públicos.

3.3Equalização inter-regional (Horizontal Imbalance)

A equalização inter-regional é outro importante objetivo a ser alcançado pelas transferências intergovernamentais. Torna-se especialmente relevante em Estados com grande extensão territorial e com acentuadas disparidades regionais, tais como, o Brasil.

Do ponto de vista jurídico, a eqüidade inter-regional é conseqüência da aplicação dos princípios da igualdade e da justiça social. Conti (2000, p. 30) menciona que: "Nada mais razoável, na busca do caminho que leve à Justiça Social, do que reconhecer ser aplicável esta noção da igualdade não apenas aos indivíduos como tais, considerados isoladamente, mas também às comunidades na qual vivem (...) O princípio da igualdade deve, por conseguinte, ser aplicado à organização do Estado na forma federativa, o que nos leva à conclusão de que deve ser estendido aos componentes da Federação, a fim de que possa vir a atingir sua meta final, que é o cidadão. Logo, é fundamental que o Estado se organize da forma a manter a eqüidade entre seus membros, o que importa na adoção de uma série de medidas redistributivas".

Prado, Quadros e Cavalcanti (2003, p. 21) informam que: "A distribuição excessivamente irregular das bases tributárias e as diferenças na eficiência de arrecadação entre regiões geopolíticas levam, em geral, a que os níveis superiores de governo redistribuam a receita arrecadada. Esse tipo de transferência, em termos de tipo ideal, teria predominantemente o caráter de suplementação orçamentária, orientada por parâmetros como população, receita per capita e renda per capita".

No Brasil, são apontados como exemplos de transferências redistributivas os fundos de complementação orçamentária (Fundos de Participação e Sistema Cota-Parte) e os fundos redistributivos setoriais (tais como o SUS e o Fundef) (Prado; Quadros; Cavalcanti, 2003, p. 48).

Do mesmo modo que na redução dos desequilíbrios verticais, não há consenso quanto à forma de se determinar o montante a ser transferido para promover a equidade horizontal.

Bird e Smart (2001) criticam a equalização das despesas em termos per capita, (elevando-se para o padrão do governo local). Para os autores, tal equalização ignora as preferências, as necessidades e os custos locais, bem como a própria capacidade de levantamento de receitas pelo governo. Tais medidas desencorajam os esforços fiscais e as restrições aos gastos locais, haja vista que, neste sistema, aqueles com maiores níveis de gasto e menores níveis de tributação deverão receber maiores transferências.

Alguns governos adotam a equalização de capacidade fiscal para promover determinado nível de serviço público pelos governos locais. Tal equalização visa prover cada governo local com recursos suficientes (receitas próprias acrescidas de transferências) para prestar um determinado nível centralmente determinado de serviços. As diferenças dos custos de prestação de serviços podem ou não ser levadas em conta neste sistema de transferências (Bird e Smart, 2001).

Nesta hipótese, as transferências estão baseadas nas medidas de capacidade fiscal (potencial) de cada uma das jurisdições (e não nas receitas reais).

Entretanto, não é fácil a tarefa determinar esta capacidade fiscal. Mas, caso seja possível tal medida, o sistema de transferências não desincentivará os governos locais a elevar o seu nível de arrecadação tributária (Bird e Smart, 2001).

3.4Externalidades (interstate spillovers)

Outra justificativa para as transferências intergovernamentais é a mitigação ou internalização das externalidades positivas.

Mendes (2004) aponta que: "A preservação ambiental ou a preservação de doenças em uma jurisdição, por exemplo, também geram benefícios às comunidades vizinhas. Decidindo isoladamente a alocação de recursos públicos, um governo local deixa de computar os benefícios a não residentes. A conseqüência seria uma oferta insuficiente daqueles bens".

Estes benefícios externos incentivam o comportamento carona ou "free-rider", conforme ilustra Mendes (2004): "um governo local pode deixar de prover (ou prover em menor quantidade) um serviço público uma vez que já goza dos benefícios proporcionados pela jurisdição vizinha. Também nesse caso o Brasil apresenta um caso típico. Municípios situados próximos a grandes cidades, em vez de construir seus próprios hospitais públicos, preferem oferecer ambulâncias para levar seus doentes para o hospital do município vizinho. Com isso economizam seus recursos à custa da sobrecarga do sistema que é pago pelos contribuintes de outro município".

Nesta situação, a literatura recomenda que os governos estaduais ou federais (dependendo da extensão territorial dos benefícios) realizem transferências condicionais com contrapartidas (matching grants) permitindo, assim, que a própria comunidade beneficiada pelos serviços públicos seja responsável pelo financiamento destes.

3.5 Razões Administrativas

As transferências voluntárias podem ser usadas para a implementação de ações do governo central, cuja competência material é concorrente, em locais onde o ente central não dispõe de estrutura administrativa para gerenciá-las. Por exemplo, para efetuar a construção de moradias e outros programas habitacionais (atividade de competência comum dos entes federados - art. 23, IX, CF/88) em municípios do interior, é possível transferir os recursos para a prefeitura que, de forma geral e naquela localidade, está melhor aparelhada para a gerenciar as obras envolvidas.

Sobre o autor
Emerson Cesar da Silva Gomes

analista de controle externo do Tribunal de Contas da União

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

GOMES, Emerson Cesar Silva. Fundamentos das transferências intergovernamentais. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 12, n. 1580, 29 out. 2007. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/10589. Acesso em: 25 nov. 2024.

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