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A construção do patrimônio informativo do indivíduo no “direito de não saber”.

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Agenda 16/10/2023 às 20:10

8. Propostas de Parâmetros de Ponderacão em Matéria de Direito de Não Saber

Para o direito que ora se tem sob análise, tem-se de um lado o direito de não saber, como decorrência da interpretação extensiva do direito à intimidade, resultante da proteção constitucional conferida à dignidade da pessoa humana, e, de outro, o interesse da coletividade, o direito à vida e o direito à informação (reflexo do direito de saber de que assiste um terceiro) – sendo esses os mais presentes nas diversas hipóteses em que se vislumbra o direito de não saber –, todos tutelados da mesma forma pela Carta Magna.

Para solucionar tais hipóteses, em que duas normas constitucionais, se isoladamente consideradas, conduzem a resultados contraditórios entre si – denominadas hard cases –, Robert Alexy44 propõe seja adotado o método ponderativo.45 Diante da ausência de hierarquia axiológica entre os princípios em colisão, a solução necessariamente seria obtida por meio do sopesamento dos valores em jogo, aferindo-se, assim, o grau de realização de cada direito.

Ana Paula de Barcellos46 descreve a técnica ponderativa por meio de três etapas sucessivas. Segundo a autora, a primeira etapa será aquela em que ao intérprete será dado identificar no sistema os enunciados normativos relevantes que se apresentam como conflitantes no caso concreto.

Caberá à segunda etapa, em seguida, a apuração dos aspectos de fato relevantes, assim como a sua interação com os elementos normativos. Essa fase possui certa importância, pois é no momento em que entram em contato com as situações concretas que os princípios têm o seu conteúdo preenchido de real sentido. “Assim, o exame dos fatos e os reflexos sobre eles das normas identificadas na primeira fase poderão apontar com maior clareza o papel de cada uma delas e a extensão de sua influência” (Luís Roberto Barroso).47

Por fim, será na terceira etapa, dedicada à decisão, que o intérprete avaliará o grupo de normas que deverá preponderar naquele caso, a partir do exame em conjunto das normas aplicáveis e da repercussão das circunstâncias do caso concreto, mensurando os pesos que devem ser atribuídos aos diversos elementos em conflito.

Todo este percurso deverá conduzir, assim, a uma harmonização recíproca dos direitos fundamentais conflitantes, os quais, diante de sua centralidade na Constituição Federal, não poderão restar completamente esvaziados, a ponto de tornarem-se “invólucros vazios de conteúdo”.48

Uma vez estabelecida a técnica ponderativa como mecanismo apto a produzir uma solução dotada de racionalidade e de controlabilidade diante da colisão entre direitos fundamentais, importa sejam analisados os parâmetros que conduzirão à ponderação em sentido estrito, determinando, ao final, qual direito será tutelado, e, ainda, em que medida.

Para tanto, é necessária a identificação dos fatos relevantes à solução da controvérsia, ora apresentados em parâmetros – ou seja, as circunstâncias fáticas que estabelecem atribuição de peso distinta às soluções possíveis, revelando, também, o grau de restrição que a realização de um direito imporá sobre os demais.

Desse modo, propõem-se os seguintes parâmetros para a aferição dos casos em que haja legítimo exercício da intimidade do indivíduo, manifestada no seu direito de não saber: (i) a existência de declaração do indivíduo nesse sentido; (ii) o alcance da informação, ou seja, se ela repercurte no interesse de terceiro identificável.

Válido, no entanto, o registro de que os parâmetros sugeridos não possuem caráter absoluto. Servem, então, ao auxílio do intérprete, que deverá sempre ter por orientação as características do caso concreto. Sendo assim, ainda que se identifique num caso específico a existência dos fatos relevantes então apresentados como parâmetros, uma vez considerada a complexidade de arranjos possíveis em uma sociedade marcada pela multiplicidade de interesses, não é possível se afirmar, sem a completa análise de todos as suas características, que o direito de não saber deverá prevalecer sobre os direitos fundamentais então colidentes.

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i) Declaração de vontade

Relevante discussão comumente levantada nos casos práticos em que se discute a validade do direito de não saber do indivíduo refere-se à forma como deve ser presumida a sua vontade. Diante da ausência de manifestação expressa do indivíduo, questiona-se qual desejo deve ser presumido (o de ser informado ou o de não ser informado).

Assim, por exemplo, Graeme Laurie advoga que não existe necessidade de explícito requerimento do indivíduo de não saber. Considera o autor que, ainda que nenhum desejo haja sido manifestado, o interesse em não saber pode ser também extraído do fato de o indivíduo não ter requerido a investigação da informação (caso, ao contrário, tivesse interesse em seu conhecimento, teria então realizado sua apuração). Desse modo, o autor defende um respeito prima facie pelo interesse do indivíduo em não saber, ainda que este não tenha se manifestado explicitamente.49

Na prática, tal pensamento significaria a “inversão do ônus da prova” (inversion of the burden of proof), uma vez que não seria do indivíduo que não quer saber o ônus de expressar seu desejo. Na realidade, caberia ao indivíduo que pretende divulgar as informações, antes de fazê-lo, se certificar de algumas condições – a exemplo da possibilidade de cura, para o caso de enfermidade, ou ainda da forma como indivíduo poderá reagir diantes de tais informações).50

Para o autor, portanto, diante da ausência de manifestação do indivíduo, a presunção a se adotar, em regra, é de que não há interesse no conhecimento da informação. Em sentido semelhante, considera Caitlin Mullolhand que “não existe uma presunção, nem relativa, de que é de seu interesse ter esse conhecimento”.51

Essa forma de compreender, entretanto, não é unânime entre os juristas. Há quem defenda, em posição contrária, que não é possível se presumir que o indivíduo não deseja ser informado acerca de um dado sensível que diz respeito a ele próprio.52 Partilhando desse posicionamento, em crítica à análise de Graeme Laurie, Roberto Andorno compreende ser de difícil aceitação a visão de que, para aqueles que não explicitaram seu desejo de saber ou não acerca de seus dados genéticos – o que representaria praticamente a integralidade dos indivíduos –, deve ser considerado que não há interesse na informação. Entende Andorno, ao contrário, que o direito de não saber deveria ser visto, na realidade, como exceção, e não como regra, sendo “acionado” pelo desejo explicitado do indivíduo. Confira-se:

Both competing rights — to know and not to know — cannot be the rule. Surely, to determine which right should prevail will depend on the circumstances of each case, but law and ethics need rules to operate in a coherent manner; and the rule in this field is that patients have a right to know their health status. This is why it seems that the right not to know may only be accepted as an exception, at least with regard to competent persons (…) In brief, therefore, the argument of this paper is that the right not to know cannot be presumed, but should be ‘‘activated’’ by the explicit will of the person”.53

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Pontua o autor, ademais, que uma das particularidades do direito de não saber consiste no fato de este depender das próprias percepções subjetivas do indivíduo. Assim sendo, sua autonomia informativa afigura-se essencial ao perfeito exercício do direito que o socorre, razão pela qual caberia a ele determinar seu real desejo.

A partir da controvérsia, é possível se inferir que o tema não é de fácil solução. Em verdade, conforme destaca Andorno, para uma completa manifestação da autodeterminação informativa de um indivíduo, sabedor de suas preferências, não há ninguém melhor que o próprio para decidir acerca do impacto que determinada informação lhe causará. Por isso, compreensível quando o autor considera que o direito de não saber não deve ser presumido, consistindo não em regra, e sim em exceção, sendo concebido a partir de sua sinalização pelo titular da informação.

Nada obstante, parece convergir a doutrina para o fato de que, uma vez existente declaração de vontade expressa do titular da informação, no sentido de não desejar ser informado, fortalece-se a defesa de seu direito. Por essa razão é que se concebe, como um dos parâmetros aptos a se identificar a validade do direito no caso concreto, a explicitação do desejo do indivíduo. Nesse sentido:

“o paciente também tem o direito de não saber, isto é, o direito de não ser informado, caso manifeste expressamente esta sua vontade. O profissional da saúde tem que reconhecer claramente quando esta situação ocorre e buscar esclarecer com o paciente as suas consequências”.54

É dizer, uma vez diante de declaração expressa do desejo de não saber, expoente mais elevado da preservação da intimidade do indivíduo – manifestado na possibilidade de proteção do conhecimento de dados sensíveis do seu próprio titular – em princípio, se poderia sobrepujar os direitos fundamentais então colidentes. Nada obstante, é de registrar que todo o caso concreto demandará a análise minuciosa das circunstâncias e das normas jurídicas ora aplicáveis, podendo, ainda que presente manifesta declaração do indivíduo, prevalecer um outro direito fundamental na hipótese colidente.

Não se refuta, porém, que ainda nas hipóteses em que ausente manifestação explícita do indivíduo de não querer saber, poderá o direito de não saber preponderar, consideradas as circunstâncias do caso concreto. É o caso, por exemplo, do indivíduo que ingressa em hospital para a realização de exames específicos, sendo diagnosticado com doença da qual não requereu investigação.

Nessa hipótese, deve-se ter em mente que o fato de não ter sido um exame requisitado por seu médico gera ao paciente uma expectativa de que não haveria questionamentos quanto à contaminação por este tipo de vírus.55 Portanto, a divulgação da informação não requerida poderá efetivamente lhe causar um abalo psicológico, uma angústia extremada, superior àquela em que o indivíduo, preparando-se psicologicamente para tanto, requereu a sua investigação. Recorda-se que a divulgação de uma enfermidade não representa para toda e qualquer pessoa um dado cujo conhecimento seja benéfico, especialmente enfermidade para a qual não há cura ou tratamento conhecido. Tem-se nessa questão, assim, mais uma importante circunstância a ser considerada na análise do caso concreto.

ii) Possibilidade de reversão do fato objeto da divulgação

Em matéria de saúde e genética, afigura-se crucial a análise da possibilidade de reversão da enfermidade ou condição que se tem por divulgar.56 Decerto não se quer ter por exame a viabilidade de se voltar no tempo e se desfazer o ato ou o fato que ensejou a contaminação ou desenvolvimento da doença naquele dado indivíduo. Fala-se, em verdade, na existência ou não de tratamentos e curas conhecidas para a enfermidade e que estejam ao alcance do indivíduo portador.

Como é cediço, a despeito da evidente evolução por que passou a ciência nos últimos anos, com conceituados profissionais, médicos e cientistas, além dos elevados investimentos das indústrias farmacêuticas, ainda não se descobriu tratamento eficaz e a cura para todas as doenças conhecidas. Esse é o caso, por exemplo, da Aids, da doença de Huntington e do Alzheimer, enfermidades para as quais os avanços da medicina se limitam à possibilidade de que os pacientes tenham uma sobrevida maior.

É fácil de imaginar que o conhecimento de que se é portador de doenças para as quais não se tem ainda tratamento eficaz será capaz de acarretar sofrimentos superiores àqueles casos em que o indivíduo descobre-se portador de doença para a qual há cura. Diante disso é que, nas hipóteses em que se descobre que o indivíduo é portador de doença da qual não requereu investigação, relevante parâmetro a ser considerado diz respeito às características da enfermidade que o acomete. Em outras palavras, a possibilidade de superação da situação sob a qual se encontra o indivíduo deve ser importante fator à solução das controvérsias no caso concreto.

Registre-se, ainda, que deve-se ter por atenção não somente a existência da possibilidade de reversão daquela doença num plano teórico, carecendo a análise da viabilidade de que aquele tratamento, seja ele farmacológico ou cirúrgico, esteja ao alcance do indíviduo. Assim, um tratamento de alto custo financeiro, para o qual não há subsídios do Estado, não estará acessível a um indivíduo de baixa renda. O mesmo pode-se dizer de uma cura recentemente descoberta, que se encontra em fase de testes, ainda não disponibilizada comercialmente. Ambas as hipóteses se aproximam àquelas nas quais a enfermidade descoberta ainda não possui cura, uma vez que o paciente não poderá se submeter, efetivamente, ao tratamento. É, desse modo, primordial que se analise o contexto em que o indivíduo está inserido.

iii) Alcance da medida: interesse exclusivo do titular da informação

Diante de um estado democrático de direito, o direito à privacidade, garantido constitucionalmente, poderá sofrer restrições quando presente o interesse social ou o interesse de um terceiro específico. É, assim, na proteção dos anseios sociais que se tem o mais comum argumento empregado como forma de se limitar a liberdade de autodeterminação informativa do indivíduo, manifestada através de seu direito de não saber.57 Nas palavras de Maria Celina Bodin de Moraes:

“Ao direito de liberdade da pessoa, porém, será contraposto – ou com ele sopesado – o dever de solidariedade social, no sentido de que se exporá a seguir, mas já definitivamente marcado pela consciência de que, se por um lado, já não se pode conceber o indivíduo como um homo clausus – concepção mítica e ilusória –, por outro lado, tampouco devem existir direitos que se reconduzam a esta figura ficcional. Os direitos só existem para que sejam exercidos em contextos sociais, contextos nos quais ocorrem as relaçãoes entre as pessoas, seres humanos “fundamentalmente organizados” para viverem uns em meio a outros”.58

Dessa forma, em situações em que potencialmente presente o interesse da coletividade – o qual, normalmente, representará o direito à saúde – deverá se recorrer à técnica da ponderação, por meio da qual será capaz de se verificar se é justificável o sacrifício do direito fundamental à intimidade diante da tutela do interesse coletivo. Nesse sentido, como bem destaca Gustavo Tepedino, Stefano Rodotà considera que o reconhecimento do direito à privacidade deve ser situado no amplo contexto em que sobressaem os interesses do Estado e outros interesses individuais e coletivos – tradicionamente representados no direito à saúde e à informação.59

Assim é que ocorre, por exemplo, diante do diagnóstico de doença infectocontagiosa da qual, entretanto, seu portador não quer ser informado.60 Em situações como essa, há parcela considerável da doutrina que defende o discurso de que a preservação da intimidade do enfermo consistiria em abuso do direito, já que, sem seu conhecimento, o indivíduo não poderá tomar as precauções necessáriass para evitar a disseminação de sua doença.61

Situação ainda mais delicada, porém, se refere aos casos em que o risco de contaminação é de um terceiro conhecido, a exemplo do parceiro sexual de um indivíduo contaminado com o vírus do HIV que não deseja ser informado da doença. Trata-se já não mais de um risco em abstrato, considerada a generalidade de indivíduos, mas um risco que transcende a coletividade e se concentra em um terceiro identificável. Como deve proceder o médico nessa hipótese? A defesa da preservação da saúde do terceiro será capaz de suplantar o direito de não saber do paciente?62 A resposta para tal questão não é simples, dividida a doutrina em posicionamentos opostos.

Ocorre, porém, que, para muitos casos, não haverá interesse de terceiros na informação. São diversas as hipóteses em que a informação sobre a qual o indivíduo não deseja ter conhecimento se relacionará exclusivamente a ele. Exemplo simples, nesse sentido, é o da doença não contagiosa. Nesse caso, não há que se falar em risco para terceiros, cabendo, portanto, a avaliação da validade de seu conhecimento unicamente ao seu portador.

Por essa razão é que se propõe o exame do alcance da informação para se determinar a validade do direito de não saber no caso contreto. Assim, quando a informação não imputar limitação do direito de terceiro, seja à saúde, à liberdade de conhecimento, etc., consistindo em interesse exclusivo do titular da informação, diz-se que, a princípio, a tutela do direito de autodeterminação informativa do indivíduo – que optar por não tomar conhecimento daquela informação – será válida.

Novamente, é oportuno destacar que não se rejeita a possibilidade de se advogar o direito de não saber nas hipóteses em que existe interesse de terceiro, e não apenas do titular da informação. Em casos como esse, é necessário se ter por análise em que medida os direitos colidentes deverão prevalecer, investigando-se a que título se fundamentam suas vontades, bem como o impacto que o conhecimento e o desconhecimento de tal informação será capaz de causar nesses sujeitos. Assim, por exemplo, na hipótese de conflito entre o direito de não saber de um indivíduo e o direito de saber de outro, deverá se privilegiar o direito fundamental à intimidade caso o interesse do terceiro, que argui seu direito de saber, esteja fundamentado em mera curiosidade, sendo incapaz de lhe acrescentar relevante significado.

O exame das características do caso concreto será, portanto, sempre imprescindível à perfeita avaliação do aplicador da lei.

Sobre o autor
Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

SAMPAIO, Rodrigo Silva Moreira. A construção do patrimônio informativo do indivíduo no “direito de não saber”.: Propostas de parâmetros de ponderação. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 28, n. 7411, 16 out. 2023. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/105898. Acesso em: 26 dez. 2024.

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