2. A BUSCA DO RECONHECIMENTO DO VALOR INERENTE DA NATUREZA, HOLISTICAMENTE CONSIDERADA: OS ECOCENTRISMOS.
Enquanto as visões biocêntricas se fundamentam no individualismo moral, as teorias ecocêntricas são holísticas, pois reconhecem considerabilidade moral não aos indivíduos, mas aos entes naturais coletivos, a exemplo dos ecossistemas e mesmo da própria “Terra” ou do “Universo”, perante os quais os indivíduos possuem valor instrumental.
2.1. A ÉTICA DA TERRA, DE ALDO LEOPOLD.
O econcentrismo nasceu com a obra “Pensar como uma montanha” (A Sand County Almanac”), do ambientalista norte-americano Aldo Leopold, publicada em 1949, um ano após a sua morte, na qual lançou as bases para a chamada “ética da terra” (land ethic).41 Leopold propôs nessa obra uma expansão ética, com vistas a alcançar plantas, animais, ecossistemas e a própria terra como um todo. Para ele, a terra “não seria, portanto, um objeto, mas sim um autêntico organismo vivo (...) que, nesse sentido, pode ser prejudicado, lesionado ou mesmo morto. A terra pode também ser mais ou menos saudável “saudável” (land health)”.42
Em um artigo que intitulou “Wherefor Wildlife Ecologya” (O Motivo da Ecologia da Vida Selvagem), de 1947, Leopold já sinalizou ao viés holístico que caracterizaria sua obra: “(...) A terra é o conjunto de solo, água, plantas e animais. Cada um desses “órgãos” não possui sentido isoladamente, tal como os dedos e dentes em relação a uma pessoa. (...) Ninguém pode entender a realidade de um animal somente por meio das suas partes (...)”. Para Lourenço, “Leopold deixa clara sua adesão à noção de que o todo deve ser alvo da atenção moral. Essa concepção orgânica da natureza pressupõe que as espécies animais e vegetais funcionam como partes de algo maior, ou, como metaforicamente prefere o próprio ecólogo, da mesma maneira que componentes de um motor”.43
Leopold influenciou a legislação exsurgente nas décadas seguintes. Destacam-se a “Lei da Política Ambiental Nacional” (National Environmental Policy Act – NEPA), de 1969, e a “Lei das Espécies Ameaçadas” (Endangered Species Act – ESA), de 1973. Essas leis positivaram as seguintes diretrizes:
(a) responsabilidade estatal pela manutenção da vida animal e vegetal; (b) reconhecimento de que as espécies ameaçadas de extinção possuem valoração estética, ecológica, educacional, histórica, científica e recreativa para o país e para toda população; (c) determinação de que todas as agências governamentais colaborem para exercer o poder de polícia para atender aos propósitos explicitados pela legislação; (d) preservação dos ecossistemas dos quais os animais e plantas dependem para sobreviver; (e) utilização de todos os meios e métodos possíveis para aumentar a população e remover as espécies da lista de extinção.44
A ética da terra tem recebido inúmeras críticas precisamente em função de sua visão instrumental de cada indivíduo, cujo valor está relacionado à sua colaboração para o bom funcionamento do sistema ao qual pertence. Nesse sentido é que a “consideração moral deixa o indivíduo para rumar em direção ao sistema, ou seja, o bem-estar individual pode ser sacrificado em nome da integridade, da estabilidade ou da beleza do todo”45, contexto no qual o bem da comunidade biótica tende a suplantar o valor dos indivíduos.
Não por outra razão Tom Regan, defensor dos animais, denominou as posições ecocêntricas de fascistas: “É difícil imaginar que a noção de direitos individuais pode encontrar amparo numa visão que, conotações emotivas à parte, pode ser descrita como ‘fascismo ambiental’”.46 Para Katz, o holismo seria mesmo incompatível com os direitos dos animais: “se o bem-estar da comunidade biótica ou do ecossistema é o bem primário do julgamento moral, então a dor e a morte que contribuam para o atingimento desse bem global não podem ser julgadas como imorais, tal como uma ética animalista em princípio determinaria”.47 Por tais razões, concluiu Lourenço que “parecem equivocadas as posições que pretendem conferir à ética da terra um status diferenciado, superior, aprofundado, em relação às éticas de cunho individualista, como é o caso da posição proveniente dos direitos dos animais”.48
2.2. O MOVIMENTO DA ECOLOGIA PROFUNDA (DEEP ECOLOGY).
O termo “ecologia profunda” ocorreu originalmente no artigo “O Raso e o Profundo Movimento Ecológico de Longo Prazo: Um Resumo” (The Shallow ande the Deep Long-Range Ecology Moviment: A Summary), de Arne Dekke Eide Naess, publicado em 1973. O autor aduziu tratar-se de “uma nova forma de pensar o mundo natural, em contraposição à posição ambientalista tradicional, denominada por ele de ecologia rasa (shallow ecology)”.49
Para o filósofo norueguês, o ambientalismo tradicional, de cunho conservacionista, estaria concentrado apenas em parte dos problemas ecológicos, tais como a degradação do meio ambiente e da poluição. Para a superação desse viés limitado, postulou “uma nova ética baseada no valor intrínseco do mundo natural (aspecto axiológico)”,50 com fulcro na qual elaborou sete pressupostos fundamentais, posteriormente sintetizados por ele e George Sessions:
(1) O bem-estar e o florescimento da vida humana e não humana na Terra possuem valor em si mesmos (...). (2) A riqueza e a diversidade das formas de vida contribuem para a realização desses valores e são valores em si mesmos. (3) Os seres humanos não possuem o direito de reduzir esta riqueza e diversidade, exceto para satisfazer suas necessidades vitais. (4) O florescimento da vida e da cultura humana é compatível com uma diminuição substancial da população humana. O florescimento da vida não humana requer essa diminuição. (5) A atual interferência humana no mundo natural é excessiva e a situação está piorando rapidamente. (6) Políticas públicas devem ser modificadas. Essas políticas devem afetar a estrutura da economia, da tecnologia e da ideologia. O estado de coisas resultante desta modificação será profundamente diferente do atual. (7) A mudança ideológica consiste fundamentalmente na apreciação da qualidade da vida (...) e não na adesão a um padrão de vida cada vez mais exigente (...). (8) Aqueles que subscrevem esses pontos possuem uma obrigação de tentar implementar, de modo direto ou indireto, as mudanças necessárias.51
O núcleo da ecologia profunda consiste de três pressupostos fundamentais. O primeiro deles é o holismo, pelo qual a natureza é concebida como um grande sistema, um todo orgânico, e não como a soma de indivíduos ou entes. O segundo é o igualitarismo biosférico, segundo o qual não haveria divisões ontológicas entre as espécies e o centro não seria ocupado pelos seres humanos, que são apenas partes incindíveis daquela unidade. O terceiro fundamento é a autorrealização, a ensinar que, conquanto cada indivíduo seja apenas parte do todo, o objetivo dessa unidade é que o desenvolvimento pleno ocorra individualmente.52
Os autores acreditaram terem construído princípios suficientemente “neutros” para conquistar a aderência de pessoas das mais variadas posições filosóficas, culturais e religiosas. Naess, no artigo “O Diagrama do Avental” (The Apron Diagram), afirmou mesmo que a ecologia profunda está baseada na religião ou na filosofia e que seus apoiadores podem aceitar os postulados do movimento a partir de suas próprias convicções, havendo pluralidade e unidade.53 A relação entre a ecologia profunda e a “filosofia perene”54, segundo Lourenço, reside “no reconhecimento de que a divindade, seja qual ela for, seria um traço comum, um elo de ligação no âmbito de uma realidade interdependente de sistemas unificados”.55
Nada obstante, Alan Drengson, um dos expoentes do movimento, afirmou que os adeptos da ecologia profunda “têm articulado suas premissas filosóficas baseadas em concepções religiosas provenientes do budismo, do confucionismo, do shinto, do hinduísmo, do islã, do neopaganismo e do xamanismo”.56 Pelo que se verifica evidente preferência dos ecologistas profundos pelas crenças orientais (a exceção de teólogos que desejam fundamentar a ética ambiental na ética judaico-cristã) em virtude de seu panteísmo e da sua “suposta rejeição do dualismo homem/natureza e, em alguma medida, do próprio antropocentrismo, por parte desses sistemas”57, considerando que os “mandamentos judaico-cristãos, por sua vez, estão voltados unicamente às relações da humanidade com a divindade e às relações entre os próprios seres humanos”.58
Lourenço destaca que, embora os pressupostos fundamentais da ecologia profunda não sejam os mesmos da ética da terra, contra o movimento da deep ecology se pode sustentar as mesmas objeções que costumam ser dirigidas àquela. Isso decorre de uma tese comum a ambas, pela qual se prioriza o todo, sem o qual nenhum indivíduo pode sobreviver e do qual o indivíduo é apenas parte.59
3. O DIREITO INTERNACIONAL
Ainda no século XIX, a possibilidade de animais exercerem direitos próprios já havia sido sustentada, especialmente na obra “Animal Rights: Considered in Relation to Social Progress”, de Henry Salt, publicada em 1992. Salt, apud Lourenço, com efeito, protestou:
Nosso argumento principal torna-se agora claro. Se ‘direitos’ de fato existem – e tanto a intuição como os costumes apontam para essa conclusão – não podem ser conferidos aos homens e negados aos animais, já que o mesmo senso de justiça e compaixão se aplica indiscriminadamente em ambas as situações. ‘Dor é dor’, já afirmava um antigo e honesto escritor [Humphry Primatt], seja ela infligida ao homem ou a um animal; e a criatura que sofre, seja ela homem ou não-homem, sendo sensível à permanência do sofrimento, sofre o mal’.60
Na mesma senda, André Géraurd, em 1924, com a obra “Déclaration des Droits de I’Animal”, traçou um paralelo dos direitos dos animais com a “Declaração dos Direitos do Homem e do Cidadão”, de 1789, apontando “ao fato de que a equivalência no sofrimento e no prazer torna todas as criaturas sencientes livres e iguais no acesso a direitos fundamentais”. O pensador francês formulou uma declaração de direitos e sugeriu que a Liga das Nações a proclamasse e instituísse normas protetivas no âmbito internacional. Dois anos após a obra de Géraurd, em 1926, Florence Barkers fez nascer a primeira declaração de direitos dos animais (Declaração Internacional dos Animais), revisada em 1954 pelo reverendo W. J. Piggott.61
Mais recentemente, como antes mencionado, o filósofo australiano Peter Singer, com a obra “Libertação Animal” (Animal Liberation), e o psicólogo britânico Richard Ryder contribuíram para a defesa de teses integradoras dos “animais não humanos” na considerabilidade moral, com base na “igual consideração de interesses”. Tom Regan, por sua vez, contribuiu para o uso da linguagem de direitos subjetivos propriamente ditos a serem titularizados por animais62. É nesse ambiente de debates que se insere a Declaração Universal dos Direitos dos Animais (DUDA), cujo percurso revisitaremos suscintamente.
O mentor da DUDA foi Georges Heuse que, em 1972, submeteu o texto original ao Diretor da UNESCO. Após várias modificações realizadas pela organização não governamental “Conseil National de la Protection Animale”, a Declaração foi por esta adotada em 1973 com o título “Les Droits de l’Animal, Douz Principes à Respecter”.63
Em 1978, na Universidade de Bruxelas, Heuse, Presidente da recém-criada “Liga Internacional dos Direitos dos Animais”, apresentou a versão final da DUDA, com quatorze artigos64. Os artigos 1 a 6 declaram o direito à existência e à própria vida65, o direito ao respeito66, o direito a não receber tratamento degradante ou cruel67, o direito à liberdade e à vida no seu ambiente natural68 e o direito a não ser abandonado.69 Os artigos 7 a 9 se relacionam com o bem-estar dos animais em seu uso instrumental pelos humanos no trabalho, experimentação e alimentação.70 O artigo 10 proíbe o uso dos animais para a diversão.71 Os artigos 11 e 12 definem, respectivamente, os crimes de biocídio e genocídio72. O artigo 13 estabelece o direito ao respeito aos animais mortos73. A Declaração é encerrada com o artigo 14, onde reza que “1. Os organismos de proteção e de salvaguarda dos animais devem estar presentados a nível governamental”, e que “2. Os direitos do animal devem ser defendidos pela lei como os direitos do homem”.
A DUDA foi proclamada em 15 de outubro de 1978, no plenário da UNESCO, perante uma audiência de duas mil pessoas. Sobre o evento, Neumann, apud Lourenço, aviva: “O evento foi amplamente divulgado pela mídia internacional. O Times, por exemplo, exibiu a manchete ‘All Animals Are Equal, Unesco Has Decided’ (Unesco decidiu que todos os animais são iguais)”. Registrou ainda que o jornal norte-americano International Herald Tribune anunciou que “Animais Ganharam Declaração de Direitos”.74
A DUDA, porém, enfrenta duas dificuldades. A primeira é de ordem teórica e a segunda, de cunho jurídico-formal. O aspecto teórico é contraditório, visto albergar tanto a afirmação de direitos subjetivos propriamente ditos dos animais como admitir a exploração humana de animais com base no bem-estarismo com o fim em si mesmo75. Lourenço pontua que haveria “um evidente paradoxo: a Declaração concede direitos com uma mão e tira ou restringe parte desses mesmos direitos com a outra (...). Os animais seriam sujeitos para determinados fins e continuariam atrelados ao estatuto de coisas para outros”.76
Algumas das Ligas de Proteção dos Animais propuseram revisões da DUDA para superar o paradoxo evidente da Declaração, movimento que conduziu à sua modificação posterior, em 1989. O novo texto proposto pela Liga Internacional dos Direitos dos Animais, bem menos conhecido que o original, é mais sucinto: “Contém 10 artigos, retirou-se a redação do tormentoso anterior artigo 9, mas o artigo 3, de forma implícita ainda permite o abate de animais, desde que supostamente imprescindível”.77
O problema de ordem jurídico-formal se deve ao fato de a DUDA não ter sido adotada por nenhum organismo internacional, mas meramente fruto de um ente privado, a Liga Internacional dos Direitos dos Animais. O texto foi simplesmente lido na sede da UNESCO, em Paris, em 15 de outubro de 1978, não se caracterizando como norma internacional formal ou como parte do jus cogens internacional. Gordilho e Brito, apud Lourenço, relatam que receberam do Centro de Informação das Nações Unidas no Brasil (UnicRio) o seguinte esclarecimento sobre a DUDA: “A UNESCO informa que não é de sua autoria a referida Declaração, e isso está correto, evidentemente (...). A ONU desconhece um documento supostamente chamado ‘Declaração Universal dos Direitos dos Animais’, que não é de autoria dessa organização (...)”.78
Essa dificuldade se revela em termos de perda de força jurídica do documento, sendo a DUDA tão somente integrante da soft law internacional, ato normativo de caráter não vinculante, sem status de norma jurídica. Nada obstante, “a DUDA”, conclui Lourenço, “embora não possua caráter vinculante, desempenha um papel importante na interpretação e na consolidação dos princípios e normas internacionais aplicáveis à tutela dos animais”.79
Apesar das contradições éticas da DUDA e de ser a Declaração apenas uma carta de princípios, de natureza moral, ela inspirou muitas leis de proteção animal no Brasil e em diversos outros países, tais como Alemanha, Suíça, França, Nova Zelândia e Portugal, em geral para alterar “sua legislação civil para considerar os animais como seres sensíveis, dotados de uma natureza jurídica singular que os difere da condição de coisas semoventes, objetos ou mercadorias”.80 É o que se verá no tópico seguinte.