4. LEGISLAÇÕES BIOCÊNTRICAS NO DIREITO COMPARADO
Dentre as primeiras leis no mundo ocidental em defesa dos animais, destaca-se a da Colônia de Massachussets Bay, de 1641, que previu que ninguém poderia exercer tirania ou crueldade contra qualquer animal. Tais leis, entretanto, visaram proteger a moralidade humana e não propriamente apregoar a existência de direitos subjetivos titularizados por animais.81
Contudo, mormente o biocentrismo mitigado, ou animalismo, tem recebido gradativamente guarida no direito comparado, destacando-se, a propósito, importante acréscimo de 2002 ao artigo 20-A da Constituição alemã. O artigo referido trata do dever de o Estado respeitar e proteger a dignidade dos seres humanos, no bojo do qual foi incluída a expressão “e animais”, “revelando que os animais também têm direito ao respeito, tal qual preconizado na Carta dos Animais”, observou Laerte Levai.82 A Alemanha tornou-se, como bem observaram João Francisco Amaral Neto e Douglas do Nascimento, “o primeiro país-membro da União Europeia a garantir dignidade aos animais em sua Lei Fundamental, de 1949”.83 Igualmente notável o parágrafo 1º da Lei alemã de Proteção Animal, que estabelece “como responsabilidade humana proteger a vida e o bem-estar do animal, vendo-o como criatura semelhante. Ninguém deve infligir dor, sofrimento ou dano a qualquer animal por qualquer motivo”.84
Desde 1988, o parágrafo 285a do Código Civil austríaco se notabilizou pelo pioneirismo, com a seguinte redação: “Os animais não são coisas; eles são protegidos por leis especiais. As normas aplicáveis às coisas só se aplicam aos animais quando não houver regras específicas”. No mesmo sentido, em 1990 foi inserido o § 90a no BGB alemão85, e o Código Civil Tcheco, Lei 89/2012, que, em seu § 494, afirma que “Os animais vivos têm uma significância e são valorados como seres vivos com emoções”, ou seja, como seres sencientes, embora os mantenha na condição de propriedades de uma pessoa, nos termos do seu § 1.046. O Código Húngaro reproduz a mesma noção na seção 5:14, item 386, o que também fazem o Código Civil da Suíça (art. 641a), em 2003, Holanda, desde 201187, e da França, a partir de 201588, que dispôs em seu art. 515-14 que “os animais são seres vivos dotados de sensibilidade”.89
Recente reconhecimento de certos animais como seres sencientes ocorreu na Cidade do México90 e em Portugal, que, por meio de modificações encetadas pela Lei 8/2017 ao Código Civil Português, estabeleceu que “os animais são seres vivos dotados de sensibilidade e objeto de proteção jurídica em virtude de sua natureza” (art. 201º-B). Na senda das legislações antes citadas, o Código Português manteve os seres sencientes submetidos ao direito de propriedade (art. 1.305º, 2) e dispôs que na ausência de lei especial são-lhes aplicáveis subsidiariamente as disposições relativas às coisas, desde que não sejam incompatíveis com a sua natureza. As seguintes especificidades da legislação portuguesa merecem transcrição:
a) (...) podem ser objeto do achado, mas o achador de animal pode retê-lo em caso de fundado receio de que o animal achado seja vítima de maus-tratos por parte do seu proprietário; b) o estabelecimento de um conjunto de deveres para com o animal (art. 1.305º-A, 2, a e b) sem que se afirmem serem os animais titulares de tais direitos – daí se afirmar que os animais são um tertium genus, nem objetos, nem sujeitos de direitos; c) reconhecimento da guarda, unilateral ou compartilhada, para os animais de companhia, evitando-se que sejam aplicados dispositivos oriundos da proteção às crianças e adolescentes em relação aos animais (art. 1.793º-A): os animais de companhia são confiados a um ou a ambos os cônjuges, considerando, nomeadamente, os interesses de cada um dos cônjuges e dos filhos do casal e também o bem-estar do animal; d) o estabelecimento de indenização por dano moral para casos de morte, privação de importante órgão ou membro ou a afetação grave e permanente da sua (do animal) capacidade de locomoção – tendo como titular de tais direitos o proprietário do animal (...).91
Também foi modificado o Código Civil espanhol para classificar os animais como “seres vivos dotados de sensibilidade”, esclarecendo que o “regime jurídico dos bens e coisas só lhes será aplicável na medida em que seja compatível com a sua natureza ou com as disposições destinadas à sua proteção” (art. 333 bis, 1).92
Vicente de Paula Ataíde Júnior tece críticas à tendência europeia de se afastar da coisificação como da personificação dos animais, aduzindo o que segue: “A experiência europeia serve de parâmetro para constatar não ser bastante dizer que “animais não são coisas” ou que “animais são seres vivos dotados de sensibilidade”, sem atribuir a necessária subjetividade jurídica aos animais”. O jurista denuncia essas alterações legais como “cosméticas” ou “simbólicas”, na esteira de Monique Mosca Gonçalves e Andreas Wacke, por não terem promovido “sensível mudança no estatuto civil dos animais, mantendo-os submetidos ao regime jurídico da propriedade (...)”.93
5. LEGISLAÇÕES ECOCÊNTRICAS NO DIREITO COMPARADO
As teses ecocêntricas, de cunho holístico, compreendem os sistemas naturais como entidades autônomas. “As espécies, os ecossistemas e a própria Terra possuiriam formas de autorrealização próprias, seriam entidades globais com interesses próprios, distintos dos seus componentes”, conforme observa Lourenço.94 Essa noção se aproxima do organicismo animista e panteísta de diversas culturas, dentre as quais as dos povos nativos do continente americano.
Esse legado cultural tem influenciado, no bojo do denominado novo constitucionalismo latino-americano, o constitucionalismo equatoriano e boliviano. A nova Constituição do Equador tratou dos “direitos da natureza” (derechos de la naturaliza), prevendo já em seu preâmbulo que “a natureza, a Pachamama, da qual somos parte” é “vital para nossa existência”. No art. 10, reconheceu “a natureza” como “sujeito daqueles direitos que a Constituição reconheça”. O capítulo 7, intitulado “Direitos da Natureza”, traz em seu art. 71, in verbis: “A natureza ou Pacha Mama, onde se reproduz e realiza a vida, tem o direito de ter sua existência respeitada integralmente e a manutenção e regeneração de seus ciclos vitais, estrutura, funções e processos evolutivos. Toda pessoa, comunidade, cidade ou nacionalidade pode exigir da autoridade pública o cumprimento dos direitos da natureza (...)”.95
Sobre a nova Constituição do Equador, Fábio Corrêa Souza de Oliveira pontua, com acerto:
A leitura do texto constitucional equatoriano não deixa dúvida quanto à filiação ao ecocentrismo. Em nenhuma passagem assenta que indivíduos não humanos são sujeitos de direito. Tão somente a natureza é titular de direitos. O que se busca proteger são os ciclos vitais, estrutura, função e processos evolutivos (...). Assim, garante-se a natureza, são direitos da natureza. Reitere-se: não é o indivíduo que compõe a espécie – ele, singularmente, não é titular de direitos (seria, então, direitos do animal) -, é a espécie enquanto totalidade”.96
O Equador foi seguido pela Bolívia que, por sua vez, na Constituição de 2009, fez menção no preâmbulo à Pachamama e, no art. 33, previu expressamente o direito de outros seres vivos, além da humanidade, ao pleno e normal desenvolvimento. Publicou em 2010 a Lei dos Direitos da Mãe Terra (Ley de Derechos de la Madre Tierra), definida no art. 3º como “o sistema vivente dinâmico formado pela comunidade indivisível de todos os sistemas de vida e dos seres vivos, interrelacionados, interdependentes e complementares, que compartem um destino comum”, com direitos assegurados à vida, ao equilíbrio e à recuperação. Em 2012, aprovou também a Lei Marco da Mãe Terra e Desenvolvimento Integral para Viver Bem (Ley de la Madre Tierra e Desarollo Integral para Vivir Bien).97
Digna de nota foi a contribuição de Christopher D. Stone para a construção da tese que buscou fundamentar a possibilidade, já defendida por ele em suas aulas de direitos reais, de judicialização de demandas relacionadas aos direitos da natureza. Stone escreveu o artigo “Should Trees Have Standing? Toward Legal Rights for Natural Objects”, em 1972, como meio de sensibilizar os julgadores do Nono Circuito da Corte de Apelações, nos Estados Unidos, no caso Sierra Club vs. Hieckel (posteriormente Club vs. Morton), para conferirem legitimidade ativa aos próprios entes naturais. O artigo foi citado pelo juiz William O. Douglas em seu voto de dissenso, embora o resultado final tenha sido de quatro votos a três para o não acatamento da tese.98
Stone argumentou pela legitimidade dos entes naturais sustentando, grosso modo que: (1) cada nova expansão de direitos subjetivos a novas entidades foi antecedida por grandes debates e tida como impensável, a exemplo da cessão de direitos a escravizados, mulheres, crianças e estrangeiros; (2) o sistema jurídico já reconhece direitos a entidades não humanas e a indivíduos que não podem expressar sua vontade de modo inteligível, tais como a pessoas jurídicas, estados, crianças, enfermos e incapazes; (3) para estes casos referidos em (2), tutores, representantes legais, advogados ou órgãos suprem a deficiência, como poderiam fazê-lo no âmbito da legitimidade da natureza.99
6. LEGISLAÇÕES NÃO ANTROPOCÊNTRICAS NO DIREITO BRASILEIRO.
O aporte teórico, a Declaração Universal dos Direitos dos Animais (DUDA) e a legislação estrangeira, juntos, influenciaram o atual perfil do direito ambiental doméstico, quiçá propugnando o Direito Animal como ramo autônomo da dogmática jurídica.
A Constituição Federal de 1988 tanto elevou o meio ambiente equilibrado a direito fundamental como previu a incumbência do Poder Público para “preservar e restaurar os processos ecológicos essenciais e prover o manejo ecológico das espécies e ecossistemas” e para “proteger a fauna e a flora, vedadas, na forma da lei, as práticas que coloquem em risco sua função ecológica, provoquem a extinção de espécies ou submetam os animais a crueldade”.100
Conquanto tais dispositivos sejam tradicionalmente interpretados como estando vinculados ao fundamento da dignidade humana, com viés antropocêntrico, há autores a defender sua ressignificação para reconhecer os “animais não humanos” e mesmo a “natureza” como titulares dos direitos enunciados. Sarlet e Fensterseifer denominaram a possibilidade de “novo paradigma jurídico-constitucional biocêntrico ou ecocêntrico”.101 Também nesse sentido, o percuciente comentário de Vicente de Paula Ataíde Júnior:
Talvez o Brasil seja o único país do globo a proteger constitucionalmente os animais contra a crueldade, o que significa, em primeiro lugar, reconhecer a consciência animal e, com isso, a capacidade dos animais de sentir e de sofrer. Além disso, ao protegê-los, constitucionalmente, contra a crueldades humana, proclama que os animais importam por si só, independentemente da sua relevância ecológica, econômica ou científica. Essa valoração constitucional – os animais são importantes pelo que são – permite afirmar que a Constituição brasileira reconhece a dignidade animal – dignidade para além da pessoa humana -, permitindo essa virada pós-humanista do Direito brasileiro pela eclosão do Direito Animal (grifos do autor).102
Nesse sentido, a Lei de Crimes Ambientais (Lei 9.605/98) tipifica na Seção I do Capítulo V (artigos 29 a 37) os crimes contra a fauna, prevendo o crime de “Praticar ato de abuso, maus-tratos, ferir ou mutilar animais silvestres, domésticos ou domesticados, nativos ou exóticos” e punindo-o com detenção, de 3 meses a 1 ano e multa. A Lei 14.064/2020 acrescentou ao referido artigo o parágrafo 1º-A, estabelecendo que “Quando se tratar de cão ou gato, a pena para as condutas descritas no caput deste artigo será de reclusão, de 2 (dois) a 5 (cinco) anos, multa e proibição da guarda”.103 A Lei 11.794/2008, igualmente notável, fixou procedimentos para o uso científico de animais das espécies classificadas como filo Chordata104, subfilo Vertebrata (artigos 2 e 3), prevendo que o uso de tais espécies para os fins delimitados na lei deve ocorrer, dentre outras medidas, “sob sedação, analgesia ou anestesia adequadas” (art. 14, §5º).105
A par da legislação federal e de diversas unidades da federação106 já em vigor - ora de viés ecocêntrico107, ora biocêntrico108 -, tramita no Congresso Nacional o Projeto de Lei 6.799/13, de autoria dos Deputados Federais Ricardo Izar e Weliton Prado, que se propõe a alterar o Código Civil para o fim de “dispor sobre a natureza jurídica dos animais domésticos e silvestres”109. A justificativa do projeto esclarece que seu desiderato é tutelar os direitos dos animais, domésticos e silvestres, conferindo-lhe novo regime jurídico, sui generis, “que afasta o juízo legal de ‘coisificação’ dos animais - que os classificam como meros bens móveis”, prevendo nova natureza jurídica que reconheça seu direitos.110
O projeto tem cinco artigos. O 1º antecipa o propósito: “Esta Lei estabelece regime jurídico especial para os animais domésticos e silvestres”. O artigo 2º consagra os objetivos fundamentais da lei em tramitação: “I. Afirmação dos direitos dos animais e sua respectiva proteção; II. Construção de uma sociedade mais consciente e solidária; III. Reconhecimento de que os animais possuem personalidade própria oriunda de sua natureza biológica e emocional, sendo seres sensíveis e capazes de sofrimento”. O artigo 3º define a natureza jurídica dos animais domésticos e silvestres como “sui generis, sendo sujeitos de direitos despersonificados111, dos quais podem gozar e obter a tutela jurisdicional em caso de violação, sendo vedado o seu tratamento como coisa”. O artigo 4º acrescenta o parágrafo único ao artigo 82 do Código Civil com o seguinte teor: “O disposto no caput não se aplica aos animais domésticos e silvestres”. Desse modo, o projeto pretende excluir os animais domésticos e silvestres da classificação civilista de bens móveis. O artigo 5º prevê vacatio legis de 60 dias.112
Em 2015, o Deputado Arnaldo Jordy, em relatório exarado na Comissão de Meio Ambiente e Desenvolvimento Sustentável, propôs a substituição da expressão “animais domésticos e silvestres” por “animais não humanos”, opinando pela pertinência do projeto da seguinte forma:
Atualmente, o Código Civil estabelece apenas duas categorias jurídicas: pessoas e coisas. Assim, na esfera do Direito dos Animais, estes são classificados como meras coisas, sendo fato notório que não podem ter o mesmo tratamento dedicado às coisas, que são inanimadas e não possuem vida. A ciência comprova que os animais não humanos, assim como nós, possuem sentimentos, memória, níveis de inteligência, capacidade de organização, entre outras características que os aproximam mais a nós do que às coisas, tornando o nosso marco jurídico inadequado e obsoleto.
Países como Suíça, Alemanha, Áustria, França e, mais recentemente a Nova Zelândia, já alteraram seus códigos no sentido de reconhecer que os animais não humanos necessitam de uma classificação sui generis, que possibilite torná-los detentores de direitos despersonificados.
A Casa Revisora, todavia, acrescentou o parágrafo único ao artigo 3º do projeto excepcionando a implicação por ele pretendida da produção agropecuária, da pesquisa científica e das manifestações culturais, in verbis: “Parágrafo único - A tutela jurisdicional referida no caput não se aplica ao uso e disposição dos animais empregados na produção agropecuária, pesquisa científica e aos que participam de manifestações culturais registradas como bem de natureza imaterial integrante do patrimônio cultural brasileiro, resguardada a sua dignidade”.113
De volta à Casa Iniciadora, o projeto recebeu parecer favorável à emenda proposta pelo Senado Federal do Deputado Bosco Costa, da Comissão de Agricultura, Pecuária, Abastecimento e Desenvolvimento Rural, refletindo que parte das polêmicas suscitadas pelo projeto “foi amenizada pela emenda do Senado Federal ao texto aprovado nesta Casa”.114
Malgrado referido parecer, o acréscimo sugerido pelo Senado Federal não agradou os biocentristas. Lourenço, v.g., lamenta a “timidez” da proposta em não atribuir personalidade aos animais, do modo como atribui às pessoas jurídicas, bem como denuncia o acréscimo da Casa Revisora como expressão de “uma ideologia especista e utilitarista”, arrematando, por fim: “Em termos práticos, os animais continuarão a ser comercializados (inclusive, os cães e gatos), utilizados e tratados como coisas (objetos, bens) ambientais e, além disso, reafirma-se a categoria de “coisas” às espécies não contempladas por este projeto de lei”.115