5 CIBERNÉTICA.
Colocados os elementos essenciais da privatividade, imagem e segurança pública, passa-se a compreender o fenômeno de afunilamento desses direitos alcançando a colisão entre os mesmos – foco da problemática.
No mundo ocidental contemporâneo as principais ameaças à privatividade e à imagem têm sido: o individualismo exacerbado, a cultura de massas, o totalitarismo estatal e a revolução tecnológica (SOUZA, 2003, p. 56).
Dentre todas essas temáticas afins, a que mais se coaduna com o caso do Rio é a revolução tecnológica, pelo que se tece o conteúdo infra.
A palavra cibernética é vulgarmente empregada para designar informática ou computação, todavia lhe é imanente um significado próprio e distinto. Originada da palavra grega kubernetes (timoneiro), o termo foi utilizado pioneiramente por Nobert Wiener em seu livro Cibernética e Sociedade: o uso humano de seres humanos. O objetivo da cibernética é a sistematização de uma teoria geral do controle, para tanto, estuda as diversas formas de controle e as leis que regem o comportamento da natureza e da sociedade (VIANNA, 2001, p. 04).
A era tecnológica é notoriamente ambivalente. Por um lado, conquistas destinadas a enriquecer a personalidade, aumentando nosso domínio sobre a natureza, dinamizando e enriquecendo nosso conhecimento, conforto, riqueza, rumos. Contudo, nesta mesma moeda, temos a face cega e desordenada, aguda e inquietante, amoral, acrítica e não humanística (VIANNA, 2001, p. 04). É inegável que o desenvolvimento tecnológico criou meios diversos de violação da privatividade e da imagem, daí a preocupação constitucional e infra em tutelar esses bens da personalidade.
Certos engenhos, como os microfones parabólicos, são capazes de interceptar diálogos ocorrendo a 150 metros; máquinas podem captar com nitidez, a partir de uma fresta de janela (!), imagens a enormes distâncias; aparatos a laser; dispositivos miniaturizados de fotografia e gravação; a tecnologia possibilitará em breve a implantação de minúsculos chips no corpo humano capazes de transmitirem para um computador central a exata localização do indivíduo no qual foram implantados, assim como (daqui a alguns anos) conterá número vinculado a cadastro nacional informador dos demais dados sobre o indivíduo (forte afetação no direito à privatividade); monitoramento via satélite; e muitos outros inventos estarrecedores, que, inclusive, já são alvo de supermercados, como na Itália ("Supermercado para Espiões") - COSTA JUNIOR, 1995, p. 26.
Essas previsões, e outros exemplos já correntes, acima citados, insurgem-se como ameaças, não podendo ser legitimadas por um Estado Democrático de Direito, mas sim, por regimes autoritários. Trocaríamos, até certo ponto, as penas privativas de liberdade por penas restritivas de privatividade. O que não aparenta ser de todo ruim, se devidamente administrado. Mas, deve-se ter em mente que o indivíduo, geralmente, detém o poder de escolher entre realizar uma conduta ilícita e se submeter às sanções estatais, ou então não cometer o ato reprovável.
Um diagnóstico desse nosso tempo identifica o homem como peça insignificante do complexo maquinismo empresarial. O homem é esmagado pelo anonimato, tem sua individualidade diluída nas grandes concentrações urbanas, de sorte que, frente à corrente de desvalorização emocional, ser espionado é, de algum modo, ser importante; voltar-se à vida privada é rotulada e estigmatizada como excentricidade e mediocridade (COSTA JUNIOR, 1995, p. 24).
A privatividade como solidão autêntica (diferente de passividade vegetativa) é a única ocasião que possibilita a reflexão crítica dos laços sociais. Sem ela, nossa comunicabilidade social é inerte, árida e estéril. Por conseguinte, In interiore hominis habitat veritas (no interior do homem habita a verdade); nosso processo de envolvimento social se faz fecundo a partir da incidência reflexiva de nossa esfera privativa sobre aquele.
Cumpre recordar que a crescente veiculação de imagens possui estreito nexo com o progresso tecnológico, uma vez que desse brotou a televisão, o computador, a rede mundial de computadores etc. Nesse processo simbiótico crescente, a imagem também merece desvelo e tutela especiais.
Esta era tecnológica pode anular direitos e garantias conquistados ao longo do tempo por revoluções que envolveram as aspirações e o empenho de muitos. Poderemos extenuar a privatividade, o próprio eu, deixaremos de ser pessoas para sermos membros numérico-abstratos de grupos. A saga pela liberdade é a história da própria civilização. A liberdade é fundamental ao homem, a tecnologia é para o homem, e não o contrário (VIANNA, 2001, p. 06).
6 GEORGE ORWELL, STANLEY KUBRICK, MICHEL FOUCAULT E A CRÍTICA À MODERNIDADE.
Toda essa discussão sobre os reflexos da cibernética sobre os atributos da personalidade humana já vem sendo travada há bastante tempo e em diversas literaturas. Senão vejamos.
O futuro imaginado pelo escritor britânico George Orwell em sua obra 1984 representa os significativos e marcantes traços da nossa presente realidade, que aos poucos revela seus contornos.
Uma excelente obra que retrata um mundo dominado pelo socialismo stalinista no ano de 1984. O Estado (Partido Socialista: "Grande Irmão") cerceia o livre arbítrio e a crítica da realidade, domina a propriedade, busca controlar as idéias, os pensamentos e a verdade; quem quiser individualizar-se, distinguir-se é punido com a morte dolorosa. Não há história pessoal. Eis alguns trechos relevantes em que qualquer semelhança com o que estejamos a analisar não será mera coincidência:
A realidade não é externa. A realidade só existe no espírito, e em nenhuma outra parte.
Enxergar o que temos diante de nossos narizes exige uma luta constante.
Quem controla o passado, controla o futuro. Quem controla o presente, controla o passado. [...] Todas as confissões feitas aqui são verdadeiras. Nós as tornamos verdadeiras. E, acima de tudo, não permitimos que os mortos se levantem contra nós.
Obediência não é o suficiente. A não ser que uma pessoa esteja sofrendo, como você pode ter certeza que ela está obedecendo à sua vontade e não à dela? O poder está em infligir dor e humilhação. O poder está em rasgar mentes humanas em pedaços e colocá-las juntas de volta em novas formas escolhidas por você mesmo. Você começa a enxergar agora o tipo de mundo que estamos criando? (grifei).
Sempre, a cada momento, haverá o tremor da vitória, a sensação de pisar num inimigo que já está sem esperença. Se você quer uma imagem do futuro, imagine uma bota pisando num rosto humano – para sempre.
O infortúnio em 1984 não é tanto a coação física, mas a coerção psíquica que é interiorizada pela população como imperativo do próprio Eu. O longus oculus do Big Brother (o de Orwell e o nosso também) paulatinamente ocasiona esse efeito: reprimir-se, em nome de leis sistêmicas descabidas, infundadas e/ou desumanas.
Outro exemplo é o filme Laranja Mecânica, de Stanley Kubrick (1971), que nos traz uma satisfatória noção do que seria um controle cibernético de seres humanos e de como sua utilização, sob argumento de ressocialização, poderia se tornar sedutor. O protagonista do filme é forçado a um processo de ressocialização que visava à compatibilização de sua personalidade a padrões socialmente estabelecidos. Algo similar à trama Orwelliana, ferindo o direito de manifestação do pensamento, remodelando a esfera da privatividade e extirpando a essência do livre arbítrio humano.
Por fim, num terceiro exemplo, eis que, em sua obra Vigiar e Punir, Michel Foucault (1987) brinda-nos com a tessitura do fenômeno que intitulou Panoptismo. E mais uma vez: qualquer semelhança com o que estejamos a analisar não será mera coincidência. Percebam-se as nuances.
A utopia da cidade perfeitamente governada adquire contornos mais palpáveis a partir das medidas adotadas pelo governo francês no transcorrer do século XVII a fim de controlar a peste. Era um policiamento espacial estrito; divisão da cidade em áreas controladas; vigilância em cada rua, apoiada num sistema de registro permanente e centralizado; espaços recortados; um modelo compacto de disciplina (e de exclusão também) que responde à peste, cuja disseminação se dá quando "os corpos se misturam sem respeito, os indivíduos se desmascaram, abandonam sua identidade estatutária e a figura sob a qual eram reconhecidos, deixando aparecer uma verdade totalmente diversa" (FOUCAULT, 1987, p. 175).
A figura arquitetural de Bentham, o Panóptico, foi incluída por Foucault na composição supra. Uma estrutura prisional geométrica e engenhosamente elaborada: um anel periférico e uma torre central, unidades espaciais organizadas de forma a promover a observação do detento sem possibilitar a recíproca; assim, a vigilância é permanente em seus efeitos, mesmo se descontínua em sua ação; um poder visível, contudo, inverificável, a consagração da sua automatização e sua desindividualização (FOUCAULT, 1987, p. 177).
O (des)mérito dessa estrutura consiste em ampliar a sua utilização, difundindo-a no meio social. Além de privar a liberdade, permite-se agrupar, a bel-prazer, grupos humanos como em máquinas de fazer experimentos, modificar o comportamento, treinar ou re-treinar os seres, sob o escopo de aumentar a utilidade possível destes. Uma vocação polivalente, uma vez que princípio geral da nova "anatomia política", baseada na disciplina, não mais na soberania.
Tal como Bentham sonhava, Foucault previa a expansão de uma rede de dispositivos que estariam em toda a parte e sempre alerta, percorrendo a sociedade sem lacuna, nem interrupção (apud KURZ, 2003, p. 02).
Enfim, surgem escolas, fábricas, hospitais, academias militares, todas arranjadas nesse modelo panóptico. O Estado apodera-se, essencialmente, desses mecanismos no decorrer do século XVIII; vide sistema policial: Um olhar sem rosto que transforme todo o corpo social em um campo de percepção; milhares de olhos postados em toda parte.
Daí, então, uma incessante observação vai se acumulando numa série de relatórios e de registros; um imenso texto policial recobre a sociedade, que, diferentemente, da escrita judiciária ou administrativa, transcreve comportamentos, atitudes, virtualidades, suspeitas; uma tomada de contas detalhada do comportamento dos indivíduos.
Em suma, ressalve-se que essa disciplina não se identifica com uma instituição, mas sobretudo como tecnologia, uma "física" do poder, que diversamente dos brilhos dos monarcas, atua insidiosamente sobre nós – principalmente frente a grandes grupos urbanos flutuantes, desorganizados, massificados e industrializados – reduzindo-nos a essência política, e amplificando nossa utilidade.
Será, então, especificamente, nossa atual medida de segurança pública (vigilância eletrônica) uma extensão regular da trama infinitamente cerrada dos processos panópticos? O objetivo dessa medida é a segurança ou a maximização de nossa força-utilidade frente ao detrimento de nossa força política?
7 PRIVATIVIDADE, IMAGEM E SEGURANÇA PÚBLICA.
A especificidade dos direitos da personalidade reside no seu caráter inato, que possibilita à pessoa humana se revelar em sua inteireza. Todavia, como adverte Adriano de Cupis (apud DINIZ, 1999, p. 192), não se pode tomar esses direitos como uma reação ao poder estatal. No caso, privatividade e imagem não são antagônicos à segurança. Pelo contrário, uma infra-estrutura que tolhe liberdades civis não oferece segurança real, e sim, putativa.
No estudo em tela, delineia-se uma colisão entre direitos fundamentais. O exercício de um direito fundamental por parte de seu titular colide, choca-se com o exercício de outro direito fundamental por parte de outro titular.
Partindo-se da premissa da unidade do ordenamento jurídico, e que as disposições constitucionais têm a mesma hierarquia, devendo ser interpretadas de forma harmônica, e sendo que não há garantias em termos absolutos, não podemos escolher, frente ao conflito privatividade-imagem versus segurança pública, uma das normas em detrimento incondicional da outra. O raciocínio não é meramente subsuntivo, porém ponderativo, uma vez que os bens jurídicos constitucionalmente assegurados devem ser coordenados de tal modo que na solução do problema todos eles conservem sua identidade.
Em alguns casos existirá previsão constitucional, expressa ou implícita, de reserva de lei restritiva. Para demais colisões, valei-nos das seguintes diretrizes.
Diante das necessidades advindas da sua própria condição, da posição do titular, do interesse negocial e da expansão tecnológica, alguns direitos da personalidade acabaram entrando na circulação jurídica, admitindo-se, em algumas ocasiões, a sua disponibilidade para licenciar melhor sua fruição por parte de seu titular, sem afetar, contudo, seus caracteres intrínsecos. Assim, temos:
1. Em princípio, a Constituição Federal de 1988 garante a privatividade das pessoas, sendo viável a interceptação telefônica, por ordem judicial, nas hipóteses e na forma da lei, para fins de investigação criminal ou instrução processual (art. 5º, XII, da Constituição Federal de 1988);
2. Infraconstitucionalmente, sobreveio a Lei 9.296/96 que obsta a gravação telefônica quando não houver indícios razoáveis de autoria ou participação em infração penal, ou a prova possa ser feita por outros meios disponíveis, ou o fato investigado constitua infração punida, no máximo, com pena de detenção;
3. A imagem pode ser captada e divulgada por terceiro sem a concretização de ato ilícito, desde que haja:
3.1 autorização pessoal, tácita ou expressa, para fim determinado;
3.2 consista no interesse público relativo a imagens de pessoas notórias ou que ocupam cargos públicos (pois nesses casos, entende-se redução da esfera de proteção da imagem e privatividade por conta da notoriedade, desde que em ambiente onde desenvolvam suas atividades e sem constrangimento);
3.3 quando necessárias à administração da justiça ou manutenção da ordem pública (dois termos imprecisos e difusos, que necessitam interpretação constitucional e cautela quanto ao uso); ou
3.4 seja realizada em eventos de natureza pública (desde que a intenção não seja de captar pessoa em particular, atentando-se para o local e natureza do fato, por conseguinte); assim libera-se o autor da fotografia, v. g., de ter de buscar a autorização prévia de inúmeras pessoas;
4. A publicidade estatal deve ser inspirada pela necessidade de informação, educação ou orientação social, estes são seus limites, tudo que ultrapassá-los constituirá ilícito, inclusive, aquela publicidade que atentar contra a respeitabilidade e honra alheias (vide outros princípios da administração pública: legalidade, moralidade, impessoalidade).
Enfim, todas essas enumerações revelam uma tutela direcionada em reprimir o abuso, conforme o artigo 20 do Código Civil atesta. Mais a mais, a lei 5.250/67 – Lei de Imprensa, deverá ser baliza frente aos atos governamentais de vigilância eletrônica.
Seja pelo método da ponderação de interesses (Daniel Sarmento), ou pelos mandados de optimização (Robert Alexy), ou, pelo mais ovacionado dos princípios, o da proporcionalidade (apud BARROSO, 2004, p. 1-118), temos, genericamente, fins judiciais, policiais, científicos, didáticos e culturais limitando o direito à privatividade e à imagem, contudo impõe-se a vedação ao excesso, e, a possibilidade de vigiar e punir não é a alternativa que promove segurança pública com menor detrimento de outros direitos (desproporcionalidade). As pessoas têm deveres muito concretos para com a sociedade, mas entre estes deveres não está incluída a sua anulação, a desaparição da sua personalidade. O interesse coletivo pode se realizar por outra via menos onerosa.
Para muitos especialistas, o problema na proteção à privatividade está em que as autoridades somente são chamadas para agir após ele já existir, depois de cometida a violação, o que, em certos casos, torna difícil a reparação ou a correção da questão. Para eles, uma das melhores maneiras de se garantir um bom nível de proteção à privatividade e à imagem dos cidadãos é apreciar os riscos antes que uma atividade, programa ou sistema (público ou privado) tenha sido implementado. Levantar e sopesar as incertezas ligadas à privatividade logo no começo do desenvolvimento de um novo programa é o melhor método para se impedir embaraços futuros.
Assim, para se assegurar que as questões relativas à privatividade sejam discutidas e resolvidas ab initio de um novo projeto, várias empresas privadas norte-americanas desevolveram a função do "Oficial Chefe para Privatividade" (Chief Privacy Officer). Trata-se de alguém de dentro da organização da empresa que pode ser consultado durante a fase de elaboração de um novo plano que implique a coleta de informações pessoais (privatividade e imagem).
A criação desses cargos, no entanto, não dissolve completamente os problemas relacionados ao processamento de dados das pessoas. Uma contínua modernização das leis protecionistas, para fazer frente aos desafios que cotidianamente se insurgem por conta das transformações sociais, que as tecnologias da informação proporcionam, também é indispensável.
Da mesma forma que a segurança pública é um interesse social relevante, a garantia de proteção à privatividade e à imagem também o é. As autoridades públicas devem combater etiologicamente a violência: melhorar a distribuição de renda, a educação e saúde universais, o sistema penal, ou seja, punir com justiça sem subtrair privatividade e direito à imagem.