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Racismo reverso é, juridicamente, racismo

Agenda 29/09/2023 às 13:01

Suposto ato de racismo em jogo de futebol gera debate sobre se o crime pode ser praticado contra pessoas brancas, com base em nova lei.

A final da Copa do Brasil entre São Paulo e Flamengo, disputada do Estádio do Morumbi, na capital paulista, gerou enorme repercussão na mídia, não apenas pelo evento esportivo em si, mas também por um suposto ato de racismo praticado por Marcelle Decothé, assessora da Ministra da Igualdade Racial, Anielle Franco.

Segundo amplamente divulgado pela imprensa, a assessora, por meio de uma rede social, criticou a torcida do São Paulo se manifestando da seguinte forma: “Torcida branca, que não canta, descendente de europeu safade” (leia-se: safado); na sequência, acrescentou: “Pior tudo de pauliste”, fazendo uso de linguagem neutra nas duas colocações.

O caso é interessante sob o aspecto jurídico porque nos permite analisar se o crime de racismo pode ser praticado contra pessoas brancas (“racismo reverso”), especialmente diante da inovação promovida pela Lei 14.532/2023, ao acrescentar o artigo 20-C, na Lei 7.716/89 (Lei de Combate ao Racismo), estabelecendo que: “Na interpretação desta Lei, o juiz deve considerar como discriminatória qualquer atitude ou tratamento dado à pessoa ou a grupos minoritários que cause constrangimento, humilhação, vergonha, medo ou exposição indevida, e que usualmente não se dispensaria a outros grupos em razão da cor, etnia, religião ou procedência.”

Como se pode perceber, trata-se de uma norma de hermenêutica cuja pretensão é nortear o juiz (e demais operadores do Direito) na aplicação da Lei, sobretudo na tipificação dos crimes de racismo. Registre-se, todavia, que a norma em questão, além de polêmica sob o ponto de vista ideológico, é muito mal redigida e dá margem a entendimentos diversos.

Uma primeira corrente, por exemplo, vem sustentando que o artigo 20-C, afasta o chamado “racismo reverso” do âmbito protetivo da Lei 7.716/89, entendendo que só existe crime de racismo nos atos discriminatórios voltados contra grupos minoritários e historicamente vulneráveis. Nesse sentido se manifesta Djamila Ribeiro:

Não existe racismo de negros contra brancos ou, como gostam de chamar, o tão famigerado racismo reverso. Primeiro, é necessário se ater aos conceitos. Racismo é um sistema de opressão e, para haver racismo, deve haver relações de poder. Negros não possuem poder institucional para ser racistas. A população negra sofre um histórico de opressão e violência que a exclui. Para haver racismo reverso, precisaria ter existido navios branqueiros, escravidão por mais de trezentos anos da população branca, negação de direitos a elas. Brancos são mortos por serem brancos?1

Por outro lado, vislumbramos uma segunda corrente no sentido de que o artigo 20-C, constitui, na verdade, uma regra de hermenêutica que pode ser utilizada para preencher uma lacuna legal, ampliando o alcance dos tipos penais previstos na Lei 7.716/89, para alcançar outras formas de discriminação e preconceito não previstas expressamente nesse diploma, mas desde que a conduta segregue ou promova a segregação de grupos minoritários.

Sob tais premissas, seria possível enquadrar como racismo uma conduta discriminatória em razão da idade ou da condição de pessoa com deficiência, por exemplo. Do mesmo modo, a norma serviria de base para reforçar a tese já defendida pelo STF no HC 82.424/RS (racismo social) e, mais recentemente, na ADO 26/DF, onde foi assentado o entendimento de que as condutas homotransfóbicas caracterizam crime de racismo.

Já uma terceira corrente sustenta a inconstitucionalidade do artigo 20-C, seja por violar um objetivo da República previsto no artigo 3º, inciso IV, da Constituição, que preconiza o combate a quaisquer formas de discriminação ou preconceito, seja por violar o princípio da legalidade, notadamente na sua perspectiva de “lei certa e taxativa”. Nesse cenário, são valiosas as lições da Eduardo Cabette ao tratar da norma em questão:

Ao final, exige o dispositivo um poder divinatório sobre-humano do magistrado. Ele deve, por assim dizer, adivinhar se o “constrangimento, humilhação, vergonha, medo ou exposição indevida” seria ou não “usualmente dispensado” a dado grupo social em razão da “cor, etnia, religião ou procedência”. (...) Uma norma de orientação hermenêutica que traz ao mundo jurídico, no microssistema dos crimes de racismo, um elemento normativo geral ou constante totalmente indeterminado não pode prosperar diante do “Princípio de Estrita Legalidade”, o qual exige redações que tenham um sentido semanticamente muito bem determinado e estabelecido.2

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Em consonância com esse entendimento, William Douglas também advoga a inconstitucionalidade do artigo 20-C, que, na sua visão, além de violar um objetivo da República e o princípio da igualdade material (art.5º, da CR), afrontaria, ademais, o princípio da independência funcional do juiz, que em sua atividade judicante deve ter liberdade para interpretar o caso seguindo a lei e não interesses de grupos ou ideologias. Assim, “ao vincular como o juiz deve interpretar certo dispositivo, sob dado viés identitário/ideológico, o texto atenta contra tal princípio, decorrente do artigo 93 c/c artigos 95 e 127. §1º, da CF”3.

De fato, é preciso dar razão aos adeptos desta última corrente, reconhecendo a inconstitucionalidade do artigo 20-C, da Lei de Racismo, com base em todos os argumentos acima elencados. Daí por que, voltando ao caso que deu ensejo a este estudo, entendemos que a conduta da assessora do Ministério da Igualdade Racial é, além de imoral e inapropriada para o seu cargo, uma conduta racista, pois, desavergonhadamente, promove o preconceito contra brancos, europeus (“safades” ou, no vernáculo, “safados”) e paulistas.

Por obviedade, se limitarmos a caracterização dos crimes de racismo somente a práticas segregatórias contra grupos ditos minoritários, na linha preconizada pela primeira corrente aqui exposta, a conduta em questão não caracterizaria crime, afinal, brancos, europeus e paulistas não se enquadrariam entre as minorias vulneráveis.

Entretanto, conforme já destacado, à luz da Constituição não se pode admitir qualquer forma de discriminação, salvo, evidentemente, aquelas de natureza positiva (ações afirmativas, por exemplo). Nas marcantes palavras de Cabette:

(...) sendo característica de toda lei a generalidade, o correto não seria estabelecer grupos privilegiados e grupos alijados, mas abranger de maneira igualitária todas as pessoas, todos os seres humanos que não merecem nunca ser discriminados em razão de raça, cor, origem, etnia, religião ou seja lá o que for. A discriminação (positiva ou negativa) não se justifica no que diz respeito à proteção jurídica conferida aos seres humanos neste aspecto, ainda mais diante do artigo 3º, IV, CF que proíbe os preconceitos e quaisquer outras formas de discriminação, obviamente não se dirigindo a norma constitucional ao grupo X ou Y, mas a todos, indiscriminadamente. 4

Mister salientar, ademais, que a discussão ganha relevância ainda maior quando nos deparamos com outras formas de discriminação e não apenas com o racismo relacionado à cor. De maneira ilustrativa, quem integraria os ditos “grupos minoritários” no racismo religioso? Católicos, por integrarem a maioria no Brasil, não poderiam ser vítimas de racismo?! Paulistas, por fazerem parte do maior estado do país, não poderiam sofrer racismo por conta de sua origem?!

Vejam o problema de trazer para diplomas legais ideologias identitárias que em nada agregam e, na verdade, só promovem a segregação e a divisão social. Aqui, uma vez mais, trazemos as reflexões de William Douglas:

Nessa linha, se a ideia da Lei nº 14.532/23 foi contribuir para o combate do racismo, não parece razoável ou juridicamente sustentável que o artigo 20-C dê imunidade ao racismo de grupos minoritários contra majoritários, de negros contra brancos, de índios contra negros e assim por diante.5

E tem um detalhe que não pode passar ao largo dessa discussão, qual seja, as maiorias são circunstanciais. Valendo-me de um exemplo bem objetivo e quase tosco, um branco em uma comunidade eminentemente negra, é minoria. Assim como o paulista no nordeste do Brasil.

Nesse cenário, questiona-se: seria razoável excluir da proteção da lei uma família branca residente em um bairro predominantemente negro de condutas segregadoras? Não seria racismo a conduta de um proprietário de restaurante que se recusa a servir uma pessoa branca? Fato é que o traço marcante do racismo é a exclusão e a limitação de direitos e liberdades públicas por razões de discriminação ou preconceito de quaisquer formas, seja contra minorias ou maiorias, afinal, todos são protegidos pelo ordenamento jurídico.

Caminhando para o final deste estudo, destacamos também a inconvencionalidade do artigo 20-C, da Lei 7.716, uma vez que a Convenção Interamericana contra o Racismo, a Discriminação Racial e as Formas Correlatas de Intolerância (Decreto n. 10.932/2022) não exclui as ditas maiorias do seu âmbito protetivo, anunciando no seu artigo 2° o seguinte: “Todo ser humano é igual perante a lei e tem direito à igual proteção contra o racismo, a discriminação racial e formas correlatas de intolerância, em qualquer esfera da vida pública ou privada.”

Frente ao exposto, pode-se concluir que a conduta que ensejou este estudo caracteriza, ao menos em tese, o crime do artigo 20, da Lei de Racismo, promovendo a discriminação e o preconceito contra brancos, europeus e paulistas, lesando, assim, toda uma coletividade. Tendo em vista que a ação foi praticada em um contexto de atividades esportivas e por meio de rede social, vislumbramos, ainda, as figuras qualificadas previstas nos §§2º e §2º-A, do artigo 20, da Lei de regência.

Em conclusão, compartilhamos, uma vez mais, as reflexões de Willian Douglas:

A luta contra o racismo não se faz legalizando discriminações ou divisão entre tons de pele. As agressões e ofensas só tendem a aumentar caso se estabeleça essa tese. A ideia pode ser elegante numa sala de aula, mas viola a Constituição e é uma tragédia na vida real.

Se alguém quiser ter a interpretação de que não há "racismo reverso" porque minoria não comete crime contra maioria, também estaremos "autorizando" a prática de qualquer dos crimes ali previstos contra pessoas da maioria. O corolário é esse.6


Notas

  1. RIBEIRO, Djamila. Quem tem medo do feminismo negro? São Paulo: Companhia das Letras, 2018, p. 41.

  2. CABETTE, Luiz Eduardo Santos. Nova Lei de Racismo de Acordo com a Lei 14.532/2023. Leme, SP: Mizuno, 2023. p. 45.

  3. DOUGLAS, William. Todo racismo é racismo: Lei 14.532/2023, identitarismo radical e o racismo reverso. Disponível: ConJur - William Douglas: Todo racismo é racismo — a Lei 14.532/2023 . Acesso em 26.09.2023.

  4. Op. cit., p. 44.

  5. Disponível: ConJur - William Douglas: Todo racismo é racismo — a Lei 14.532/2023 . Acesso em 26.09.2023.

  6. Disponível: ConJur - William Douglas: Todo racismo é racismo — a Lei 14.532/2023 . Acesso em 26.09.2023.

Sobre o autor
Francisco Sannini Neto

Mestre em Direitos Difusos e Coletivos e pós-graduado com especialização em Direito Público. Professor Concursado da Academia de Polícia do Estado de São Paulo. Professor da Pós-Graduação em Segurança Pública do Curso Supremo. Professor do Damásio Educacional. Professor do QConcursos. Delegado de Polícia do Estado de São Paulo.

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

SANNINI NETO, Francisco Sannini Neto. Racismo reverso é, juridicamente, racismo. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 28, n. 7394, 29 set. 2023. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/106449. Acesso em: 22 dez. 2024.

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