5 – A POSSE E SUA FUNÇÃO SOCIAL
Tendo em vista os contornos propostos para o presente estudo, não me deterei em questões de alta indagação doutrinária, tais como as teorias justificadoras da posse, há tempos divididas entre as visões de Savigny e Ihering.
Aliás, consoante advertem Cristiano Chaves de Farias e Nelson Rosenvald, "as teorias de Savigny e Ihering não são capazes de explicar o fenômeno possessório à luz de uma teoria material dos direitos fundamentais. Mostram-se envelhecidas e dissonantes da realidade social presente. Surgiram ambas em momento histórico no qual o fundamental era a apropriação de bens sob a lógica do ter em detrimento do ser" [16].
Assim, minha tarefa aqui será meramente a de aclarar, sem maiores divagações, o que se deve entender por posse, para depois fincar a atenção nos requisitos que ela deverá cumprir para merecer proteção judicial.
Muito se tem discutido se a posse seria um fato ou um direito. Nada obstante, como bem explica Humberto Theodoro Júnior, o problema é questão de simples nomenclatura.
Nesse diapasão, o mencionado jurista escreve que "normalmente a linguagem jurídica dispõe de denominações distintas para os fatos geradores e para os direitos produzidos, como se distinguem entre contrato e crédito, ou entre tradição e propriedade. Já na posse, uma só palavra é empregada para exprimir o fato aquisitivo e o direito que dele decorre, o qual também se chama de posse" [17].
Com efeito, numa perspectiva simples, e por isso eficiente, a posse pode ser compreendida como "o exercício, de fato, dos poderes constitutivos do domínio, ou propriedade, ou de alguns deles somente" [18].
Ao presente trabalho, porém, importa discutir, com maior ênfase, os requisitos que a posse terá que cumprir para merecer a tutela jurídica. Convém assim ressaltar, logo de plano, que os Códigos Civil e de Processo Civil do Brasil, estabelecem, respectivamente nos seus artigos 1.210 e 926, que o possuidor terá direito a ser segurado de violência iminente se tiver justo receio de ser molestado, de ser mantido na posse no caso de turbação e nela restituído na hipótese de esbulho.
Nada obstante, tal discussão comporta outros elementos, vez que apenas a posse justa é que poderá ser blindada por intermédio dos interditos possessórios.
Dentro de uma concepção conservadora, pode-se dizer, com estribo no artigo 1.200 do Código Civil brasileiro, que justa será a posse que não for violenta, clandestina ou precária. Todavia, o referido preceptivo clama por interpretação conforme a Constituição brasileira, para se entender que concretamente justa será a posse que, além de reunir essas três qualidades (não ser violenta, clandestina ou precária), respeitar fielmente a função social a que está destinada.
Almejando chancelar a conclusão acima, veiculo a preleção de Cristiano Chaves de Farias e Nelson Rosenvald:
"Atualmente, a ciência jurídica volta o olhar para a perspectiva da finalidade dos modelos jurídicos. Não há mais um simples interesse tão evidente em conceituar a estrutura dos institutos, mas em direcionar o seu papel e missão perante a coletividade, na incessante busca pela solidariedade e pelo bem comum. Enfim, a função social se dirige não só à propriedade, aos contratos e à família, mas à reconstrução de qualquer direito subjetivo, incluindo-se aí a posse, como fato social, de enorme repercussão para a edificação da cidadania e das necessidades básicas do ser humano." [19]
Aliás, o cumprimento da função social da posse é tão valorizado hodiernamente, que a doutrina mais arrojada anuncia, com firmeza, que nem mesmo o proprietário merecerá a tutela estatal possessória, quando se abstiver de emprestar destinação social ao seu empreendimento.
Comprovando tal assertiva, trago, vez mais, o escólio de Cristiano Chaves de Farias e Nelson Rosenvald:
"Tradicionalmente, a propriedade era classificada como um direito subjetivo perpétuo e, conseqüentemente, só se constatava a prescrição da pretensão do proprietário em recuperar o bem ao tempo do advento da usucapião – pela própria perda do direito subjetivo de propriedade em razão da aquisição de domínio pelo usucapiente. Hoje é possível aferir que a perda da pretensão reivindicatória ou reintegratória pelo proprietário pode produzir-se muito antes, pela simples constatação da inexistência material e real do direito subjetivo de propriedade que se alega, posto que destituído de utilização econômica ou social pelo seu titular.
Há muito se sabe da eficácia vertical dos direitos fundamentais. Ou seja, pelo art. 5º, § 1º, da Constituição Federal, os direitos fundamentais são de aplicação imediata para o legislador e o juiz. Aquele não pode inovar no mundo infraconstitucional de forma lesiva ao princípio da função social, sob pena da norma subalterna ser tida por inconstitucional. Já o magistrado deverá incorporar os direitos fundamentais como fundamento hábil a legitimar qualquer decisão, mesmo que o princípio não se encontre positivado em qualquer norma processual.
Porém, atualmente, a grande questão que circunda o Direito Civil-Constitucional concerne à eficácia horizontal dos direitos fundamentais, ou seja, a influência dos direitos fundamentais na órbita das relações entre particulares, e até que ponto ela afeta a autonomia privada, princípio fundamental das relações civis. Sem entrar na discussão se o ingresso dos direitos fundamentais ocorre de forma imediata – a maneira da eficácia vertical – ou pela mediação das cláusulas gerais que se encontram no Código Civil, tem-se que a função social se impõe como próprio freio que delimitará a extensão da autonomia privada do proprietário em hipóteses que as suas pretensões reivindicatória e possessória perdem a legitimidade constitucional (...).
Normalmente, o proprietário ajuíza uma ação reivindicatória, com base na demonstração do título de propriedade, ou opta pela via possessória, pleiteando a liminar de reintegração, amparado na tese da consumação do esbulho. Nos dois casos, as pretensões são consideradas procedentes, na medida em que a simples exibição do registro (na reivindicatória) e a produção de prova quanto à perda da posse (na reintegratória) são requisitos legais para o êxito de tais demandas. Essas soluções conservadoras apenas agravam o quadro de injustiça social presente no campo." [20] (destaques meus)
Vale repisar, aqui, embora dizendo de outro modo, que o direito contemporâneo é tão comprometido com o pleno atendimento da função social da posse, que a doutrina moderna não teme afirmar que a pura e simples demonstração do esbulho não será suficiente para justificar a concessão de liminar ao proprietário na ação de reintegração.
É certo, porém, que o termo ‘função social da posse’ não é muito mais do que um conceito jurídico indeterminado a demandar integração construtiva por parte do magistrado. Assim é que os multicitados Cristiano Chaves de Farias e Nelson Rosenvald asseveram que "a tarefa da jurisprudência criativa consistirá em definir a função social da posse, com base nos valores metajurídicos vigentes. Este é o único modo de dar vazão ao art. 5º da LICC, ao impor que o juiz atenda às finalidades sociais da lei quando de sua aplicação, preservando o bem comum" [21].
Com a mente voltada para o objetivo do presente trabalho, centrado na edificação de um novo olhar sobre os interditos possessórios manobrados em face do exercício do direito fundamental paredista, acredito, de minha parte, que o desempenho social possessório deva ser buscado nos dispositivos da Constituição brasileira que tratam da função da propriedade, já que é sempre com lastro na privação física da posse dela decorrente (da propriedade) que o empresário busca retomar o comando do seu empreendimento nos contextos das chamadas greves de ocupação. Passo à tarefa, portanto.
Como é curial, se por um lado é certo que a propriedade é um direito fundamental do cidadão (art. 5º, XXII da CRFB), por outro não é menos verdade que ela deva cumprir uma inequívoca função social (art. 5º, XXII da CRFB), somente alcançada no âmbito rural, por exemplo, quando atenda, simultaneamente, os requisitos de observância das disposições que regulam as relações de trabalho, com a exploração que favoreça o bem-estar dos trabalhadores (artigo 186, III e IV da CRFB).
Ademais, trata-se de verdadeiro truísmo que também a propriedade urbana, tanto quanto a rural (como visto no parágrafo anterior), está constrangida à observância de uma a função social, devidamente arrimada, dentre outras pilastras, na centralidade do mundo do trabalho.
Não é por outra razão que a Constituição da República estabelece que a ordem econômica, fundada na valorização do trabalho humano e na livre iniciativa, tem por fim assegurar a todos existência digna, conforme os ditames da justiça social, devendo acatar os princípios da função social da propriedade e da busca do pleno emprego (artigo 170, caput, incisos III e VI).
Vale dizer, com efeito, que se a propriedade não é explorada de modo que favoreça o bem-estar dos trabalhadores, olvidando as disposições que regulam as relações de trabalho, não estará cumprindo com sua função social, ficando exposta, em determinados casos, até mesmo à desapropriação por parte da União, para fins de reforma agrária. Justamente por isso é que o artigo 184 da Magna Carta estabelece que compete à União desapropriar por interesse social, para fins de reforma agrária, o imóvel rural que não esteja cumprindo sua função social.
Estabelecidas tais premissas, incumbe-me, nessa quadra do estudo, deixar claro que para atender a contento o cânone da função social, a empresa deverá, além de cumprir outros requisitos, não se recusar a participar dos procedimentos trabalhistas de negociação coletiva.
Ocorre que esta (negociação coletiva), como já exaustivamente visto, é uma das garantias constitucionais fundamentais da classe trabalhadora, sendo ainda certo que no atendimento da função social, a propriedade deverá respeitar as disposições que regulam as relações de trabalho, além de se pautar por um padrão exploratório hábil a favorecer o bem-estar dos trabalhadores.
Ora, consoante já visto alhures, o direito de greve é a mais eficaz e democrática válvula de pressão para garantir a deflagração e a continuidade da negociação coletiva, sendo imprescindível, dessarte, para que os trabalhadores atinjam um padrão setorial de direitos mais encorpado.
Logo, se a empresa se recusa a negociar, está a maltratar um dos mais sagrados direitos dos trabalhadores, sendo iniludível, diante de todos os meandros constitucionais já estudados, que não cumpre com a sua função social.
Ao agir assim, estará o empresário justificando a cessação coletiva do trabalho (artigo 3º da Lei 7.783-89) e até mesmo abdicando, nos contextos mais agudos, de ser beneficiado pela tutela estatal possessória, se o movimento paredista se desenvolver sob o modelo da greve de ocupação.
Será dentro desta ótica que, no próximo tópico, atingirei o cume do presente trabalho, ocasião em que discorrerei sobre os aspectos processuais mais relevantes dos interditos possessórios aforados na Justiça do Trabalho brasileira.
6 – ASPECTOS PROCESSUAIS DOS INTERDITOS POSSESSÓRIOS NA JUSTIÇA DO TRABALHO BRASILEIRA
Como já reiteradamente afirmado, o objetivo primordial deste artigo é o de sugerir um novo olhar sobre as ações possessórias no âmbito da Justiça do Trabalho. Para um desenvolvimento mais harmônico da pretensão, cuidarei, primeiramente, de diferenciá-las, em virtude das peculiaridades que comportam.
6.1 – As Ações Tipicamente Possessórias
São três as ações tipicamente possessórias no direito processual brasileiro. O interdito proibitório, a ação de manutenção de posse e a ação de reintegração de posse. Todas elas são passíveis de serem manejadas na Justiça do Trabalho, nos variados contextos do exercício do direito de greve.
O interdito proibitório possui previsão do artigo 932 do Código de Processo Civil brasileiro, nele estando prescrito que o possuidor que tiver justo receio de ser molestado na posse, poderá impetrar ao juiz que o segure da turbação ou esbulho [22] iminente, mediante mandado inibitório, em que se comine astreintes ao réu para o caso de transgredir o preceito.
De sua vez, as ações de manutenção ou reintegração de posse estão previstas no artigo 926 do mesmo código, que estatui que o possuidor tem o direito de ser mantido na posse em caso de turbação e reintegrado no de esbulho.
O estudo de uma ocorrência trazida pela doutrina poderá facilitar o entendimento das ocasiões em que cada uma dessas ações haverá de ser ajuizada. Extraio-a da obra de Raimundo Simão de Melo:
"Não raro ocorrem conflitos durante a greve sobre o direito de propriedade, quando os trabalhadores fazem a paralisação acampados no estabelecimento do empregador. (...) Essa ocupação pode ser pacífica ou não. Pode ainda ser acompanhada de atos impeditivos da entrada de pessoas e coisas no interior do estabelecimento" [23].
Passo, com efeito, a partir da situação transcrita, a exemplificar as zonas de interesse jurídico capazes de explicar o aproveitamento tecnicamente correto de tais ações.
Inicialmente é necessário ver que, dado o seu caráter preventivo, o interdito proibitório deverá se intentado no contexto em que o possível esbulho ou turbação não se consumaram, ou seja, naquele momento em que o empregador demonstre justo receio de que o movimento grevista venha a se materializar na forma de ocupação do estabelecimento.
De sua vez, a ação de manutenção deverá ser utilizada na pressuposição da posse do proprietário estar sendo turbada, sem que ainda tenha sido aperfeiçoado eventual esbulho, ou seja, naquela hipótese em que os grevistas, embora já acampados na empresa, não estão subtraindo de terceiros e proprietários o direito e ir e vir.
Já por outro giro, a ação de reintegração será manejada no caso do esbulho se concretizar, ou seja, quando os trabalhadores, além de acamparem na fábrica, passarem a proibir o acesso de pessoal ao local.
Insta esclarecer, ainda, que nos termos do artigo 920 do CPC, os interditos possessórios são dotados de fungibilidade ampla, de sorte a permitir que no caso da propositura de uma ação em vez de outra, o juiz conheça do pedido e outorgue a proteção correspondente àquela cujos requisitos estejam comprovados.
Demais disso, nos termos do artigo 933 do CPC, a completude do regramento das ações de reintegração e manutenção de posse se aplica à figura do interdito proibitório, motivo pelo qual, no dizer de Humberto Theodoro Júnior, uma vez "verificada a consumação do dano temido, a ação transforma-se ipso iure em interdito de reintegração ou de manutenção, e, como tal, será julgada e executada" [24].
Como se não bastasse, há de se destacar, antes de encerrar o presente tópico, que de acordo com o artigo 921 do CPC, será lícito ao autor cumular ao pedido possessório o pleito de condenação em perdas e danos, dentre outros.
Por fim, merece ser esclarecido que todas as exemplificações acima foram construídas única e exclusivamente visando demonstrar quais seriam, em tese, as situações que justificariam o interesse jurídico abstrato no manejamento das ações enfocadas, haja vista que no plano concreto o elemento que justificará o deferimento ou não da tutela possessória será o cumprimento da função social da posse, hipótese que será mais bem analisada no tópico em que tratarei dos requisitos da concessão de liminar.
6.1 – Competência Para a Cognição das Ações Possessórias Oriundas do Exercício do Direito de Greve
Muito embora de toda a exposição até aqui desenvolvida sobressaia cristalina a competência da Justiça do Trabalho para a cognição da matéria estudada, algumas palavras, mais profundas, merecem ser agora redigidas sobre o tema.
Ocorre que não obstante o Supremo Tribunal Federal brasileiro vir pronunciando, desde 1991, que para a determinação da competência da Justiça do Trabalho não importa que a solução da lide dependa de questões de direito civil, mas sim que o fundamento do pedido seja oriundo da relação individual ou coletiva entre empregados e empregadores [25], o certo é que até o advento da Emenda Constitucional nº 45 pairava no universo jurídico brasileiro inexplicável celeuma sobre qual dos ramos do Poder Judiciário deveria conhecer os interditos possessórios aforados em virtude de movimentos paredistas, controvérsia esta que propiciava a usurpação da competência da Especializada por parte dos órgãos da Justiça Comum.
Felizmente, entretanto, a disputa já se encontra quase que de todo sepultada atualmente, na medida em que a novel redação do artigo 114, II, da CRFB passou a estabelecer a partir de 08.12.2004, com tintas fortes, que compete à Justiça do Trabalho processar e julgar, sem exceções, as ações que envolvam o exercício do direito de greve.
Atenta à inovação trazida pelo constituinte derivado, até mesmo a doutrina civilista já vem se dobrando à evidência dos fatos. Nesse, sentido, trago o escólio de Cristiano Chaves de Farias e Nelson Rosenvald:
"A outro turno, a ampliação da competência da Justiça do Trabalho, desde a promulgação da Emenda Constitucional nº 45, de 2004, atrai o exame do interdito proibitório quando relacionado ao exercício do direito de greve das categorias profissionais. Se antes o julgamento competia a Justiça Estadual, com a nova redação do art. 114, II, da Constituição Federal, qualquer ato de ameaça a posse dos bens do empregador e do direito de ir e vir de empregados e veículos no exercício do direito de greve será aferido pela Justiça do Trabalho. Não é raro que os chamados "piquetes" impedem o acesso do público às empresas e de trabalhadores que não tenham aderido à paralisação." [26]
Seguindo a esteira doutrinária, também a Justiça Comum está atualmente a reconhecer a mudança ocorrida. Para demonstrar o asseverado, trago um trecho de decisão oriunda de órgão de primeira instância do Tribunal de Justiça do Distrito Federal:
"Sabe-se que a atual reforma do Poder Judiciário, concretizada pela EC nº 45, ao dar maior proeminência à Justiça do Trabalho, modificou profundamente a sua configuração anteriormente conferida pela Constituição de 1988 quanto à sua competência material.
Atribui-se à Justiça do Trabalho competência para julgar outras lides de natureza diversa, estranhas à sua clássica competência constitucional até então vigente.
Conclui-se, então, que, com o advento da nova sistemática constitucional, ampliando-se a competência da Justiça do Trabalho para o processamento e julgamento de outras lides, que não apenas trabalhistas stricto sensu, atrai-se para a Justiça Especializada a aplicação de outros direitos materiais que regulam essas relações.
Desta maneira, não apenas os conflitos oriundos das relações de emprego são da competência da Justiça do Trabalho, mas, também, aquelas surgidas em decorrência do exercício do direito de greve, nos termos do art. 9º c/c art. 114, inciso II, ambos da CF/88.
Vale lembrar que nem sempre as ações que decorrem do exercício do direito de greve envolvem empregados e empregadores, pois agora é alçada da Justiça do Trabalho todo litígio que decorra do exercício do direito de greve, ainda que envolvam terceiros e/ou ações possessórias entre sindicato e empregador em face do exercício do direito de greve.
Diante do exposto, em face da nova ordem constitucional concernente à competência da Justiça Trabalhista, implementada pela EC nº 45, uma vez reconhecida a incompetência absoluta deste Juízo para processar e julgar o feito, com fulcro no art. 113 do CPC, declino da competência em favor de uma das Varas da Justiça do Trabalho, à qual, decorrido o prazo recursal e feitas as devidas anotações, deverão ser remetidos os autos, via distribuição." [27]
Outrossim, colocando uma pá de cal no assunto, trago a lume a posição expressa do Supremo Tribunal Federal brasileiro, que carrega em si o condão de dissipar qualquer dúvida que ainda possa reinar na mente dos mais renitentes:
"Agravo de instrumento de decisão que inadmitiu RE contra acórdão do Tribunal de Alçada de Minas Gerais que declarou a competência da Justiça Estadual para julgar ação de interdito proibitório proposto entre empregado e empregador, em face do exercício do direito de greve.
No caso, os funcionários do agravado, em campanha salarial, impediam o acesso às agências bancárias locais.
De acordo com o Tribunal a quo, em suma, o interdito proibitório discute tão-somente matéria de natureza possessória, ou seja, trata de questão de direito civil, razão pela qual deve ser apreciada pela Justiça Comum.
Alega o RE violação do art. 114, II, da Constituição. Aduz a competência da Justiça do Trabalho para o julgamento do feito.
Decido.
Tem razão o recorrente.
O acórdão recorrido diverge do entendimento do STF: originando-se da relação de emprego, a presente controvérsia deve ser julgada pela Justiça do Trabalho, não importando a circunstância de fundar-se o pedido em regra de direito comum.
(...)
Provejo o agravo, que converto em recurso extraordinário (art. 544, §§ 3º e 4º, do C.Pr.Civil) e, desde logo, dou provimento a este (art. 557, § 1º-A, do C.Pr.Civil), para reformar o acórdão recorrido e reconhecer a competência da Justiça do Trabalho para o julgamento do feito." [28]
Pois bem. Demonstrada com fôlego a inelutável competência da Justiça do Trabalho para a cognição da matéria, passo, no tópico seguinte, a tecer algumas breves considerações sobre a legitimidade e o procedimento nas ações possessórias.
6.2 – Legitimidade – Procedimento
As questões em epígrafe não suscitam maiores controvérsias, o que me conduzirá a tratá-las de modo mais ligeiro.
No caso, evidentemente, a legitimidade ativa pertencerá à pessoa física ou jurídica que estiver experimentando algum tipo de constrangimento na sua posse, em virtude de movimento paredista protagonizado por seus empregados. De outro tanto, a legitimidade passiva será do sindicato que representa a categoria profissional em greve.
Já o procedimento será variável, a depender da ação ser de força nova ou de força velha.
Assim, nos termos do artigo 924 do CPC, quando a ação possessória for intentada dentro de ano e dia da turbação ou esbulho, o rito será o especial, na forma em que previsto nos artigos 920 e seguintes do CPC. Por outra vertente, quando ajuizada depois desse prazo (ano e dia), o rito será o ordinário, embora a demanda não perca a sua natureza jurídica possessória.
A grande e substancial diferença entre as duas formas de desenvolvimento processual reside na possibilidade do ofendido ser agraciado com liminar no procedimento especial [29], fato que se mostra inviável no rito ordinário, muito embora algumas vozes se animem a asseverar que a partir da primeira onda de reforma processual, operada em 1994, também nas ações de força velha seria possível a concessão de liminar satisfativa, na forma de tutela antecipada [30], já que a partir de então o aludido instituto foi incorporado ao rito ordinário.
Discordo desse ponto de vista. Procurando justificar a minha posição, trago, novamente, a lição de Cristiano Chaves de Farias e Nelson Rosenvald:
"A outro giro, não admitimos a extensão da tutela antecipada genérica do artigo 273 do Código de Processo Civil às ações possessórias de força velha. A tutela antecipada é de fato o maior indicador da adoção, pelo nosso legislador, do princípio da efetividade. Veio, porém, para imprimir celeridade ao procedimento comum, nos ritos ordinário e sumário, só podendo atingir o rito especial quando houver compatibilidade (art. 272, parágrafo único, do CPC).
Vale dizer, muito antes da introdução da tutela antecipada genérica na reforma processual de 1994, o ordenamento já reconhecia determinadas ações que, em seu bojo, contavam com tutela antecipada específica. Trata-se de ações de rito especial, dotadas de liminares satisfativas próprias, dentre elas o mandado de segurança, a ação popular, a ação civil pública e, incluindo-se nesse seleto grupo, as ações possessórias. Essas ações detêm sistemática peculiar e, por um princípio de hermenêutica, a nova regra que se estabeleceu para o processo comum não alcança as ações especiais, exceto se houver expressa disposição legal nesse sentido.
Nestes termos, acreditamos que, caso concedida a antecipação de tutela genérica no bojo de uma ação de força velha, incidiria verdadeira burla – por vias transversas – à sistemática das ações possessórias que já comportam um termo ad quem para a concessão de liminares.
(...) Pensamos que o princípio da instrumentalidade nos ensina que o processo é uma técnica a serviço de uma ética de direito material. Se a dicotomia procedimental das ações de força nova e força velha é derivada da ficção emanada do direito civil quanto à perda da posse após a passagem do prazo decadencial e o sistema das ações possessórias retrata de forma fidedigna tal cisão, não se poderá admitir que uma norma genérica como a tutela antecipada possa desvirtuar os alicerces desta construção." [31]
Há de registrar, todavia, que na Justiça do Trabalho, dado o caráter efêmero dos movimentos paredistas, a ação possessória de força velha será quase impossível de ser manejada.
Concluída mais essa parte do texto, chego ao ponto nevrálgico do presente trabalho, que será a apreciação dos requisitos necessários para a concessão ou não de liminar, quando finalmente poderei propor uma nova forma - mais comprometida com a função social da posse - de se encarar os interditos possessórios eriçados em face do exercício do direito fundamental de greve.
6.3 – Medida Liminar
Visando uma melhor compreensão da matéria, dado as peculiaridades do assunto, analisarei a questão correlata à concessão (ou não) de medida liminar [32] primeiramente sob a ótica do interdito proibitório, para somente depois discorrer na perspectiva das ações de manutenção e reintegração de posse.
6.3.1 – Interdito Proibitório
Numa visão mais conservadora, meramente patrimonialista, poder-se-ia dizer que bastaria a notícia da possibilidade de realização de greve, para que, uma vez ajuizado o interdito proibitório [33], a medida liminar inibitória fosse concedida ao autor, com a incontinente expedição de mandado proibitório, adensado pela cominação de pena pecuniária em caso de desrespeito ao preceito mandamental.
Nada obstante, já sob uma ótica comprometida com os fundamentos republicanos da cidadania plena, da dignidade da pessoa humana e dos valores sociais do trabalho e da livre iniciativa (artigo 1º, II, II e IV da CRFB), a simples notícia da iminente deflagração de movimento paredista não pode ser tida como álibi para a concessão do interdito cominatório.
Ocorre que consoante exaustivamente visto, a greve é uma garantia constitucional fundamental da classe trabalhadora, sendo certo, ainda, que sempre militará presunção favorável à categoria profissional envolvida, no sentido que exercitará o seu direito de maneira não abusiva.
Como é palmar, o requisito específico para a concessão de medida liminar satisfativa no caso será, nos termos do artigo 932 do CPC, o ‘justo’ receio do autor em ser molestado em sua posse. Assim é que a simples notícia da possibilidade de ocorrência de greve não é suficiente para concedê-lo, até mesmo porque nos termos do artigo 153 do Código Civil brasileiro não se considera coação a ameaça do exercício normal de um direito.
Justamente por isso é que o jurista Humberto Theodoro Júnior ensina que "para manejar o interdito proibitório, deverá, outrossim, demonstrar o interessado um fundado receio de dano, e não apenas manifestar um receio subjetivo sem apoio em dados concretos aferíveis pelo juiz. (...) Qualquer outro tipo de receio, que não seja de violência iminente, portanto, não configura o justo receio, de que fala o artigo 932 do Código de Processo Civil" [34].
Felizmente, aliás, tanto a doutrina quanto a jurisprudência já cumpriram a tarefa de desconstruir o mito edulcorado do juiz neutro, mero servidor autômato da letra fria da lei e serviçal conformado das elites econômicas.
O magistrado contemporâneo, principalmente o trabalhista, embora imparcial, não deixa se levar pelas concepções arcaicas de organização social, que sempre privilegiaram o patrimônio em detrimento do ser humano. Tem os olhos atentos e conhece bem o mundo ao seu redor. Sabe, assim, que no mais das vezes o interdito proibitório é manejado como forma de intimidação para que os trabalhadores não adiram à greve.
Nesse sentido, são lapidares as palavras do Juiz Nicanor Fávero Filho, titular da 7ª Vara do Trabalho de Cuiabá – MT, manifestando-se em caso concreto submetido ao seu poder jurisdicional, no qual uma instituição bancária pugnava pela concessão de liminar em ação possessória:
"Tenho, data máxima venia e salvo melhor juízo, que a utilização do instituto, com sua concessão em caráter liminar, não pode ser utilizado como meio de ameaça ou amedrontamento daqueles que pretendem fazer uso de seu direito de greve, também garantido constitucionalmente, tampouco como meio de resistência para qualquer possibilidade de conversação e possível negociação." [35]
Já de minha parte, acredito que o requerente somente se mostrará digno da liminar perseguida quando demonstrar que a greve engendrada pelos trabalhadores possui o escopo único de esgarçar gratuitamente as relações empregatícias, como naqueles casos em que reste claro ter sido a sua realização decidida com grande antecedência, muito tempo antes da data-base, quando sequer se cogitava da abertura do processo de negociação coletiva.
Movendo-se em tal diretriz, trago a ementa nº 372 do Comitê de Liberdade Sindical da Organização Internacional do Trabalho:
"EMENTA 372. As greves de caráter puramente político [36] e as decididas sistematicamente muito tempo antes de encetar as negociações não se situam no âmbito dos princípios da liberdade sindical."
Elaboradas tais avaliações, passo, doravante, a desafiar a questão das liminares nas ações de manutenção e reintegração de posse.
6.3.2 – Ações de Manutenção e Reintegração de Posse
Aqui poderia parecer, mais uma vez em olhar padronizado e nada crítico, que para a posse merecer a tutela jurisdicional, bastaria ao interessado comprovar em juízo ser ela justa - como tal entendia aquela que não é violenta, clandestina ou precária (artigo 1.200 do CC) - bem como a turbação na ação de manutenção, ou o esbulho na ação de reintegração (artigo 926 do CPC).
Mas a questão, como já visto alhures, é muito mais intrincada quando a analisamos pelos vetores da cidadania plena, da dignidade da pessoa humana e dos valores do trabalho e da livre iniciativa, que juntos compõem o núcleo essencial da Magna Carta brasileira.
Basta remoer que o artigo 1.200 do Código Civil clama por interpretação conforme a Constituição, a fim de se entender que somente será justa a posse que, além de não ser violenta, clandestina ou precária, cumprir fielmente a função social a que está destinada, situação que conduz a doutrina a prenunciar, sem temor, que nem mesmo o proprietário merecerá a tutela estatal possessória, quando se abstiver de emprestar destinação social ao seu empreendimento.
Outrossim, também como já repassado, o conceito aberto da função social da posse há de ser colmatado pelos dispositivos constitucionais que tratam da propriedade, pois é com substrato na privação física da posse dela emanada que os patrões invariavelmente colimam retomar o comando do empreendimento nos contextos das greves de ocupação.
Assim é que se chega à conclusão de que a posse, para cumprir a sua função social, e assim ser tida por justa a ponto merecer a tutela estatal possessória, deverá atender, simultaneamente, aos requisitos de observância das disposições que regulam as relações de trabalho e de exploração que favoreça o bem-estar dos trabalhadores (artigos 186, III, IV e 170, caput, III, VI, ambos da CRFB), condição que somente atingirá se dispuser a respeitar o direito fundamental de negociação coletiva reconhecido aos obreiros.
Com efeito, na medida em que, nos termos do artigo 3º da Lei 7.783-89, a deflagração do movimento paredista sempre estará envolta no contexto de recusa dos empregadores a iniciar, continuar ou retomar a negociação coletiva, ou seja, no cenário em que, pelo menos transitoriamente, o empreendimento não estará cumprindo plenamente com a sua função social, parece-me insofismável a conclusão de que mesmo que a greve venha assumir a forma de ocupação, não haverá como se reconhecer a proteção possessória ao proprietário, na medida em que a sua posse não poderá, naquele instante, ser classificada como justa.
É certo que o vaticínio acima poderia ser infirmado sob a alegação de que, uma vez ocupada a fábrica, restaria consumada, nos termos da conjunção dos artigos 14, caput e 6º, §§ 1º e 3º, ambos da Lei 7.783-89, a figura jurídica do abuso do direito de greve, haja vista que no curso do movimento paredista os meios adotados por empregados e empregadores não podem violar ou constranger os direitos e garantias fundamentais de outrem, sendo ainda vedado que as manifestações e atos de persuasão utilizados pelos grevistas impeçam o acesso ao trabalho ou causem ameaça ou dano à propriedade, tudo isso conspirando a favor da conclusão de que a desocupação haveria de ser imediatamente ordenada pelo magistrado.
O desate do imbróglio, todavia, não é tão simplista quanto possa parecer à primeira vista. Ocorre que, como já elucidado, somente a posse justa, como tal entendida aquela que cumpre a sua função social, é que merece a tutela jurisdicional, de sorte que a simples recusa dos empregadores em negociar coletivamente o conflito trabalhista instaurado é capaz de aconselhar que a celeuma seja enfrentada com maior acuidade.
Assim é que os §§ 1º e 3º do artigo 6º da 7.783-89 merecem ser interpretados a partir do cotejo dos interesses constitucionais fundamentais que neles conflitam. Para o melhor desenvolvimento deste raciocínio, tenho por bem em trazer, antes de tudo, algumas considerações doutrinárias acerca do princípio da proporcionalidade.
Para tanto colho as palavras de Mauro de Azevedo Menezes:
"Tendo em vista o conteúdo freqüentemente aberto e variável dos direitos fundamentais, sua expressão, por vezes, ocorre justamente no confronto com outros direitos ou bens igualmente tutelados pela Constituição. Com efeito, a incorporação dos direitos humanos, nas suas várias dimensões, à positividade constitucional, necessariamente repercute num deslocamento ou numa redução do raio de alcance de poderes estatais ou não estatais, cuja matriz jurídica encontra-se, também, constitucionalizada. Daí porque a colisão provocada pelo exercício dos direitos fundamentais não constitui anomalia alguma, mas sim um resultado ordinário da sistemática de proteção constitucional do seu conteúdo.
(...)
A colisão de direitos fundamentais se resolve à maneira da colisão de princípios. (...) No caso dos princípios, à semelhança dos direitos fundamentais, e ao contrário das meras regras [segundo o autor as regras, ao contrário dos princípios e dos direitos fundamentais, não colidem, mas sim entram em conflito, motivo pelo qual a que não é prevalente é imediatamente revogada], ocorre autêntica colisão, devendo cada caso concreto ser analisado particularmente, mediante a atribuição de peso específico a cada um dos princípios envolvidos. Se um princípio cede a outro, como resultado desse procedimento – conhecido por ponderação -, nem por isso perde a sua validade. Em outras palavras, o afastamento de um princípio constitucional por outro, na análise específica de um caso, não implica a sua revogação. A solução do choque suscita a necessidade de levar em conta o peso ou a importância relativa de cada princípio, a fim de se escolher qual deles no caso concreto prevalecerá ou sofrerá menos constrição do que o outro." [37] (sem a observação entre colchetes no original)
Esquadrinhada de tal modo a discussão, é de se ver, logo de início, que o prefalado § 1º do artigo 6º da Lei 7.783-89 dirige não só aos empregados, mas também aos empregadores, a obrigação de não violar ou constranger os direitos fundamentais de outrem.
Com efeito, se por um lado é certo que os empregados a princípio não poderiam colocar em xeque a posse do estabelecimento, também é correto dizer que os empregadores não poderiam dilacerar o direito inalienável dos empregados à negociação coletiva [38].
De tal arte, no balanço da proporcionalidade dos interesses em jogo, a solução mais correta seria a de privilegiar o interesse coletivo dos grevistas na negociação coletiva em detrimento do interesse individual do proprietário na manutenção ou restituição da sua posse. Primeiramente porque o centro vital da Constituição brasileira reside na dignificação do ser humano e não na defesa incondicional do patrimônio [39]. Em segundo plano pelo fato de que a posse não estaria homenageando a função social a que está constitucionalmente adstrita.
Demais disso, a greve é um fenômeno transitório, nela não existindo, ordinariamente, qualquer intenção dos paredistas na ocupação perpétua do estabelecimento - até porque o intento primordial deles é a abertura ou a retomada da negociação coletiva -, não havendo que se vislumbrar, dessarte, qualquer perigo de privação eterna da posse atribuída ao empregador pelo exercício da propriedade.
De outro viés, o § 3º do artigo 6º da Lei 7.783-89, que diz na sua primeira parte que as manifestações e atos de persuasão utilizados pelos grevistas não poderão impedir o acesso ao trabalho, há de ser analisado tanto sob a ótica do trabalhador que não deseja ser privado do direito de trabalhar, bem como de terceiros, já que não raro a sociedade, difusamente considerada, também experimenta os efeitos colaterais das paralisações.
Quanto ao trabalhador que desejasse laborar, não se pode negar que a Constituição, pelo menos a princípio, lhe garante o direito de ir e vir. Mas o assunto é mais complexo do que parece. Para tanto, basta lembrar, como já visto acima, que não são raros os casos em que os vários direitos fundamentais entram em rota de colisão, ocasiões em que o dissenso entre eles demanda acomodação pelo princípio da proporcionalidade. Parece-me que aqui se tem um caso de tal natureza.
Ocorre que o direito individual de ir e vir desse trabalhador - conhecido no jargão operário como "fura-greve" -, não pode se sobrepor ao direito fundamental coletivo de paralisação da categoria profissional a que ele pertence.
Por óbvio, é absolutamente legítimo que aquele que não deseja a suspensão dos trabalhos participe da assembléia [40] em que a classe deliberará sobre a paralisação, para nela defender o seu ponto de vista, votando, ao final, contra o movimento.
Nada obstante, uma vez convencionada a interrupção dos serviços pelo quorum [41] previsto no estatuto da entidade sindical, o direito individual do interessado em trabalhar deverá ceder ao interesse maior da categoria em promover a greve, sendo absolutamente legítimo, pois, que os piquetes o impeçam - evidentemente sem violência - de sabotar o movimento paredista democraticamente discutido e aprovado.
A propósito da perniciosa figura do "fura-greve", vale trazer à baila, mais uma vez, as palavras sempre lúcidas do jurista Márcio Túlio Viana:
"Ao exercer o seu suposto direito, ele [o fura-greve] dificulta ou inviabiliza o direito real da maioria. O que faz não é apenas trabalhar, mas – com o perdão do trocadilho infame – atrapalhar o movimento. Ele realmente fura a greve, como se abrisse um buraco num cano de água. E o seu gesto também tem algo de simbólico: mostra que a identidade operária não é coesa, que há resistências internas.
Tal como o grevista, o fura-greve fala: põe em cheque (sic) o movimento, denuncia a própria greve. Mas ao resistir à resistência revela dupla submissão. Ele luta contra os que lutam por um novo e maior direito; esvazia o sindicato, dificulta a convenção coletiva e fere o ideal de pluralismo jurídico e político." [42] (minha a observação entre colchetes)
Como se não bastasse tudo o que já foi dito, o fato é que o artigo 1.210, § 1º do Código Civil brasileiro garante ao possuidor turbado ou esbulhado o direito de manter-se ou restituir-se pela própria força, contanto que o faça logo e desde que os atos de defesa ou desforço não superem o indispensável à manutenção ou restituição da posse.
Ora, se mesmo com o núcleo capital da Constituição brasileira residindo na promoção da dignidade da pessoa humana - e não na defesa cega da propriedade - o regramento infraconstitucional permite ao possuidor turbado ou esbulhado defender seu patrimônio por intermédio da autotutela, não se mostra razoável que impeça a classe trabalhadora de promover, por via de piquetes, a legítima defesa do seu direito fundamental de greve.
Diante de todas essas ponderações, não posso concluir de outro modo, a não ser para entender que há flagrante inconstitucionalidade, por ponderação inadequada dos interesses conflitantes, na parte do artigo 6º, § 3º da lei 7.783-89 em que se proíbe as manifestações e atos de persuasão utilizados pelos grevistas de impedirem o acesso ao trabalho.
Aliás, como adverte a constitucionalista Kátia Magalhães Arruda "a história do direito do trabalho está intimamente vinculada com o associacionismo. A concretização da chamada ‘consciência de classe’ pelas exploradas massas de trabalhadores europeus, no século XIX, foi responsável pela grande maioria dos direitos que vieram a ser garantidos em leis isoladas e posteriormente considerados como direitos fundamentais" [43].
Partindo dessa constatação histórica, é correto afirmar que as compreensões individualistas de mundo sempre deverão ser veementemente rechaçadas pelos juslaboralistas, pois que estribadas em uma concepção filosófica liberal ultrapassada, invariavelmente conspiram contra a lógica de construção coletiva dos direitos trabalhistas.
Mas a discussão não termina por aí, devendo ser enfrentada, ainda, pela ótica dos terceiros. Aqui o debate se mostra muito mais duro, vez que no caso defrontam-se dois interesses ‘coletivos’ fundamentais, um dos trabalhadores e outro da sociedade. Creio, todavia, que também estes (os terceiros) deverão sofrer algum desgaste para que o movimento paredista logre êxito.
Tome-se o exemplo dos correntistas de agências bancárias que desejem realizar operações em caixas eletrônicos. Na hipótese, o irrestrito acesso deles ao interior das agências paralisadas, viria a ferir de morte a lógica da greve.
Como é por demais sabido, nos últimos anos os bancos promoveram no mundo, balizados pelo intento de maximização dos seus lucros, uma avassaladora onda de automatização das suas agências. Tal movimento traz consigo um componente altamente perverso e ainda pouco estudado.
Ocorre que na medida em que a automação avança, os correntistas, sem perceberem, passam a praticar atos que, tempos atrás, eram de responsabilidade dos bancários. Verdadeiro truísmo que esse arranjo é altamente conveniente para os banqueiros, já que, de uma única tacada, demitem a grande maioria de seus empregados, enxugam a sua folha de salários e tributos, e passam a se valer da mão-de-obra gratuita dos seus incautos correntistas, que ainda pagam taxas abusivas para executarem tais operações.
Justamente por isso é que as greves cada vez mais importam menos para os banqueiros, pois ainda que seus trabalhadores cruzem os braços, muito da máquina bancária continuará em movimento, tudo isso sem contar as movimentações passíveis de serem realizadas pela internet.
Logo, permitir o acesso incondicional dos terceiros no interior da agência paralisada seria conspirar letalmente contra o direito constitucional fundamental de greve. No caso a classe trabalhadora seria duplamente punida. Primeiro porque a automação, como já visto, causa desemprego. Segundo porque os trabalhos de interesse do banco continuariam a ser feitos, sem que assim a greve atingisse plenamente os seus objetivos táticos e estratégicos.
Aliás, é de se ressaltar que a própria Constituição brasileira adota postura tuitiva a favor dos trabalhadores nesse campo, já que o seu artigo 7º, XXVII, diz, com todas as letras, que são direitos dos trabalhadores urbanos e rurais, além de outros que visem a melhoria de sua condição social, a proteção em face da automação, na forma da lei.
E nem se argumente, em sentido contrário, que os trabalhadores não poderiam implementar, na prática, aquilo que a CRFB somente garante ‘na forma da lei’. Quem assim o fizesse estaria absolutamente equivocado, pois como já visto alhures, os direitos fundamentais são dotados de eficácia vertical (art. 5º, § 1º, CR), razão pela qual são de aplicação imediata.
A corroborar dita tese, colaciono o escólio do constituinte originário de 1988, deputado Michel Temer, que embora se referindo aos direitos previstos no artigo 5º da Carta Magna, elaborou uma lição que se amolda à perfeição também para os interesses veiculados no seu artigo 7º:
É importante observar que os direitos e garantias fundamentais previstos no artigo 5º têm aplicação imediata, segundo o comando expresso no parágrafo 1º do aludido dispositivo.
Significa, a nosso ver, que os princípios fundamentais ali estabelecidos podem ser invocados na sua plenitude, até que sobrevenha legislação regulamentadora, quando for o caso de sua utilização. [44]
Como se não bastasse, é necessário se ver que o artigo 7º, XI, da Lei Maior, garante ainda aos empregados, excepcionalmente, a participação na gestão da empresa. Também aí, portanto, a greve de ocupação estaria constitucionalmente respaldada, tratando-se esta de uma conjuntura excepcionalíssima que justificaria que a gestão da empresa permanecesse transitoriamente nas mãos dos trabalhadores, podendo eles, por imperativo lógico, até mesmo limitar, em proporção razoável, o acesso de correntistas às agências bancárias paralisadas.
Claro que deverão os trabalhadores, na administração provisória do empreendimento, cumprir com a obrigação do artigo 11 da Lei 7.783-89, garantindo à comunidade, senão plenamente, mas em proporções aceitáveis, a prestação dos serviços indispensáveis ao atendimento das suas necessidades inadiáveis, sob pena de, em não o fazendo, permitir que o Poder Judiciário venha a declarar o caráter abusivo da paralisação, e nesse caso deferir a liminar de reintegração de posse ao proprietário.
Por fim, algumas palavras devem ser ainda proferidas em relação à parte do § 3º, do artigo 6º, da Lei 7.783-89, na qual é dito que a greve não poderá causar ameaça ou dano à propriedade.
Inicialmente é de se sublinhar que a ocupação operada nos contextos em que o empresário esmaece a função social do seu empreendimento, não se dispondo a respeitar o direito fundamental de negociação coletiva da classe trabalhadora, não há de ser considerada como ameaçadora da propriedade, pois que na greve não existirá o intento dos trabalhadores em usucapi-la.
Demais disso, eventual dano causado à propriedade será remediado pela veiculação de pedido de condenação em perdas e danos, formulado no bojo da própria ação possessória, já que como visto, o artigo 921 do Código de Processo Civil brasileiro permite a cumulação dos interditos mandamentais com pleitos de outra natureza cognitiva.
De todo o argumentado até aqui, resta tangível que o requisito fundamental para que a posse seja restituída ao empresário será a comprovação da boa vontade da empresa em abrir ou retomar a negociação coletiva, pois somente assim convencerá o magistrado que respeita os direitos fundamentais dos trabalhadores e cumpre plenamente com a sua função social.
Daí a importância de não se conceder a liminar possessória irrefletidamente. O mais adequado nesses casos será que o juiz se apegue às melhores tradições da Justiça do Trabalho, para, na perspectiva de intermediação do conflito e aproximação dos litigantes, inserir o processo em pauta [45] e fomentar a negociação coletiva, de tel modo abdicando de impor uma decisão autoritária à pendência.
Corroborando o conteúdo do parágrafo anterior, reproduzo as palavras de Luiz Melíbio Uiraçaba Machado, digno desembargador do Tribunal de Justiça do Rio Grande do Sul:
"O juiz não deve, nos litígios possessórios coletivos, conceder ou não pedidos liminares: deve negociar, ir até o conflito e no trato democrático buscar a solução dialogal à pendência. Eis o novo: o Juiz sair de seu gabinete, sentir o conflito, nele ingressar e juntamente com os litigantes buscar solução à lide." [46]
Aliás, haverá determinadas conjunturas em que a situação convergirá para a manutenção definitiva da posse nas mãos dos trabalhadores. Quanto ao afirmado existem no país pelo menos três relatos, embora extrajudiciais, em que os trabalhadores assumiram a administração da fábrica, já que os proprietários se viram sem condições de continuar a exploração econômica e garantir os empregos.
São os casos das empresas Cipla e Interfibra [47], ocorridos em Joinville - SC, em outubro de 2002, quando os mil trabalhadores das mencionadas fábricas de material plástico entraram em greve por tempo indeterminado, em virtude dos seus salários e demais direitos, como férias, décimo terceiro salário e FGTS não estarem sendo respeitados.
No episódio os relatos dão conta que com muita disposição os operários se organizaram para defender mil postos de trabalho, tendo suportado, durante oito dias, todo o tipo de pressão e violência policial, como gases e cassetetes, o que só fez aumentar a solidariedade popular e a organização dos piquetes.
Ao final do conflito, todavia, os patrões reconheceram que não poderiam mais pagar os salários e os débitos trabalhistas, fiscais e previdenciários, razão pela qual entregaram as ações aos trabalhadores, que passaram a administrar a empresa e retomaram a produção. Os proprietários foram afastados da direção administrativa e a empresa e os trabalhadores elegeram uma comissão, que partir de então passou a gerir a fábrica.
Em circunstâncias muito similares, existe ainda o caso da empresa Flaskô, que foi ocupada por 70 trabalhadores em junho de 2003, na cidade de Sumaré –SP, bem como o da empresa Flakepet, localizada em Itapevi – SP, que foi ocupada em dezembro de 2003.