6. A Legislação do Processo Administrativo Tributário
Diante de tudo que se afirmou, deve-se indagar, por fim, se para o caso específico das exigências tributárias – em face da previsão do art. 151, inciso III, do CTN que atribui efeito suspensivo da exigibilidade do crédito tributário às reclamações e aos recursos, e em razão da reserva de lei complementar para o regramento geral do crédito tributário (art. 146, III, "b", CF) – seria permitido à legislação reguladora dos processos administrativos tributários estabelecer condicionamentos ao exercício do direito ao recurso?
Com base nas premissas acima arroladas, não se pode afastar por completo a possibilidade de a disciplina do processo administrativo tributário impor barreiras à recorribilidade das decisões administrativas nessa matéria. O que se deve exigir sempre é o respeito aos valores consagrados no texto constitucional, sopesando interesses e propiciando a concordância prática (Canotilho) dos valores em disputa no caso concreto.
Na hipótese em estudo, a Constituição (art. 5°, LIV e LV) reserva à "lei" (em sentido amplo) a tarefa de elaborar o processo adequado à realização das funções do Estado (devido processo legal). Por outro lado, a Constituição (art. 146, III, "b") reserva à lei complementar a missão de estabelecer normas gerais em matéria de crédito tributário (entre outras). As normas devem ser harmonizadas.
O legislador infraconstitucional, ao disciplinar o processo administrativo tributário, nas diversas pessoas políticas e em relação às diversas espécies tributárias, deve pautar-se pelas normas superiores do sistema, sob pena de invalidade da norma produzida.
Sendo assim, o legislador, ao disciplinar cada processo, não poderá criar outras hipóteses de suspensão da exigibilidade do crédito tributário, porque, primeiro, esta é matéria reservada pela Constituição à lei complementar e, segundo, porquanto o CTN já arrola as hipóteses em que deverá ocorrer a suspensão do crédito tributário (art. 151). Não sendo possível que a legislação ordinária combine hipóteses lá previstas, como ocorre na hipótese analisada ("depósito do montante integral", inciso II, e "as reclamações e os recursos", inciso III, ambos do art. 151, CTN)
No entanto, na disciplina de cada processo, o legislador pode estabelecer as limitações que, diante de critérios de razoabilidade e proporcionalidade, sejam adequados, próprios, à consecução dos fins perseguidos.
Conforme ressalta o Ministro Cézar Peluso, em seu voto-vista no RE 390.513/SP, "uma vez franqueada ao contribuinte, pela legislação subalterna, via de acesso à instância recursal administrativa, não faz sentido impor-lhe exigências desproporcionais que terminem por inviabilizar o manejo do próprio remédio recursal".
O próprio art. 151, inciso III, estabelece que as reclamações e os recursos, suspendem a exigibilidade do crédito tributário, "nos termos das leis reguladoras do processo administrativo tributário".
7. Conclusão
Diante de tudo que foi dito, pode-se concluir, com respaldo na análise crítica dos fundamentos apresentados pelos Ministros do STF, no julgamento dos recursos extraordinários 389383/SP, 390513/SP e 388359/PE, Rel. Min. Marco Aurélio, que a inconstitucionalidade não decorre da simples previsão abstrata de limitações ao direito de recurso administrativo, mas da utilização desproporcional de critérios para a sua utilização. Conforme afirmou o Ministro relator: "a exigibilidade do depósito da multa, em certos casos, em face do montante e da situação econômico-financeira do infrator, acaba por impedir o direito de defesa".
A desproporção deve ser aferida no caso concreto, sempre valorizando a interpretação que harmonize os valores constitucionais em disputa.
Neste mesmo sentido, o Ministro Sepúlveda Pertence, em voto 31 contrário à inconstitucionalidade de todo e qualquer condicionamento aos recursos administrativos, manifestou-se no sentido de que a inconstitucionalidade ocorre nas "hipóteses em que o depósito seja absolutamente abusivo e desarrazoado, porque aí, sim, o próprio princípio do devido processo legal substantivo impede que uma lei conceda, ainda que podendo não concedê-la, o recurso administrativo e subtraia, na prática, a sua oponibilidade, estabelecendo ônus desproporcionado". 31
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_______________. Do Lançamento no Direito Tributário Brasileiro. 3. ed. totalmente reformulada e atualizada. Rio de Janeiro: Forense, 2005.
Notas
[1] Ver também RE 388359/PE, Rel. Min. Marco Aurélio, 28.03.07, DJU 29.06.07, e ADI 1922/DF, rel. Min. Joaquim Barbosa, 28.3.2007, DJU 05.06.07, cujo objeto era a constitucionalidade do § 2º do artigo 33 do Decreto nº 70.235/1972, com a redação dada pelo artigo 32 da Lei nº 10.522, de 19 de julho de 2002. Este dispositivo substituiu a exigência de depósito e passou a exigir o arrolamento de bens e direitos de valor equivalente a trinta por cento da exigência fiscal, realizado preferencialmente sobre bens imóveis (§§ 2° e 3° do art. 33. do Dec. 70.235/72). O Min. Joaquim Barbosa entendeu "que a substituição do depósito prévio pelo arrolamento de bens não implicara alteração substancial do conteúdo da norma impugnada. Asseverou, no ponto, que a obrigação de arrolar bens criara a mesma dificuldade que depositar quantia para recorrer administrativamente" (Informativo STF n° 461).
[2] Procedimento é instrumento para realização das funções do Estado. Quando disso puder resultar privação da liberdade ou dos bens dos cidadãos, a Constituição (artigo 5°, inciso LIV) exige obediência às garantias processuais (devido processo legal – inciso LV). José Afonso da Silva, citando José Frederico Marques, ensina que "quando se fala em ''processo'', e não em simples procedimento, alude-se sem dúvida, a formas instrumentais adequadas, a fim de que a prestação jurisdicional, quando entregue pelo Estado, dê a cada um o que é seu, segundo os imperativos da ordem jurídica. E isso envolve a garantia do contraditório, a plenitude do direito de defesa, a isonomia processual e a bilateralidade dos atos procedimentais". (SILVA, José Afonso. Comentário Contextual à Constituição. 3 ed. São Paulo: Malheiros, 2007, p. 154).
[3] O entendimento não é unânime quanto à correlação direta entre o direito de recurso e o duplo grau de jurisdição. Também não, quanto à concepção de que o princípio do duplo grau consiste na obrigatoriedade de a causa ser reexaminada por autoridade superior hierarquicamente. Por exemplo, o recurso apreciado pelas "Turmas Recursais", formadas por juízes do "primeiro grau de jurisdição" em atividade no próprio Juizado Especial Cível, conforme artigo 41 da Lei 9.099/95, estaria ou não afrontando o princípio do duplo grau de jurisdição? Afirmando que não afronta o princípio, por exemplo, TAVARES, André Ramos. Curso de Direito Constitucional. São Paulo: Saraiva, 2002, pp. 488-498.
[4] XAVIER, Alberto. Princípios do Processo Administrativo e Judicial Tributário. Rio de Janeiro: Forense, 2005, p. 195.
[5] Idem. Ibidem.
[6] SILVA, 2007, p. 155.
[7] MELLO, Celso Antônio Bandeira de. Curso de Direito Administrativo. 15. ed. refundida, ampl. e atual. até a EC 39, de 19.12.2002. São Paulo: Malheiros, 2003, p. 105.
[8] O Ministro Sepúlveda Pertence, em seu voto no RE 390.513-SP, discordou dos demais Ministros do Supremo Tribunal Federal e manifestou-se pela inexistência da garantia do recurso administrativo. O entendimento do eminente Ministro Pertence fundamentou-se no fato de que o controle do Poder Judiciário é inafastável e sua utilização pelo cidadão não depende da exaustão da via administrativa, como ocorria sob a égide da Constituição pretérita.
[9] JORGE, Flávio Cheim. Teoria Geral dos Recurso Cíveis. Rio de Janeiro: Forense, 2003, p. 185.
[10] Op. cit. p. 186.
[11] Idem. p. 187.
[12] DONIZETTI, Elpídio. Curso Didático de Direito Processual Civil. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2007, p. 430. No mesmo sentido: DINAMARCO, Cândido Rangel. Instituições de Direito Processual Civil. 4. ed. rev. atual. v. 1. São Paulo: Malheiros, 2004, p. 237; JORGE, Flávio Cheim, 2003, p. 186.
[13] Cf. RHC 79.785, Rel. Min. Sepúlveda Pertence, julgamento em 29-03-00, DJ de 22-11-02.
[14] "Jurisdição — Duplo Grau — Inexigibilidade constitucional. Diante do disposto no inciso III do artigo 102 da Carta Política da República, no que revela cabível o extraordinário contra decisão de última ou única instância, o duplo grau de jurisdição, no âmbito da recorribilidade ordinária, não consubstancia garantia constitucional." (AI 209.954-AgR, Rel. Min. Marco Aurélio, julgamento em 15-9-98, DJ de 4-12-98).
[15] XAVIER, Alberto. Princípios do Processo Administrativo e Judicial Tributário. Rio de Janeiro: Forense, 2005, p. 197-205.
[16] No mesmo sentido, baseando-se inclusive nas lições do mestre português, MARQUES, Klaus E. Rodrigues. O duplo grau no processo administrativo e a exigência de depósito para admissibilidade de recursos administrativos em matéria fiscal. In: SALOMÃO, Marcelo Viana e PAULA JÚNIOR, Aldo (coord.). Processo Administrativo Tributário. São Paulo: MP Editora, 2005, pp. 245-263. Material da 2ª aula da Disciplina Direito Processual Tributário, ministrada no curso de Especialização Telepresencial e Virtual de Direito Tributário – UNISUL – REDE LFG, p. 14.
[17] No julgamento do RE 390.513/SP, o Ministro Cézar Peluso, em seu voto-vista, assim se manifestou: "Ninguém nega que a admissibilidade de recurso, qualquer que seja a sua natureza, pode, senão deve submeter-se a certas exigências"
[18] Cf. ADIn 1.976, rel. Min. Joaquim Barbosa
[19] CAIS, Cleide Previtalli. O Processo Tributário. 4. ed. rev. atual. e ampl. São Paulo: RT, 2004, p. 283.
[20] Cf. FILHO, José dos Santos Carvalho. Manual de Direito Administrativo. 13. ed. ver., ampl. atual. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2005, p. 23.
[21] MELLO, Celso Antônio Bandeira de. Curso de Direito Administrativo. 15. ed. refundida, ampl. e atual. até a EC 39, de 19.12.2002. São Paulo: Malheiros, 2003, p. 71.
[22] SEIXAS FILHO, Aurélio Pitanga. Princípios de Direito Administrativo Tributário. In: Dejalma de Campos (Coord.) Revista Tributária e de Finanças Públicas. v. 51. São Paulo: RT, 2003, p. 235.
23ADI 1.511-MC, voto do Min. Carlos Velloso, julgamento em 16-10-96, DJ de 6-6-03.
[24] RE 390.513/SP, voto-vista do Min. Cezar Peluso, p. 30.
[25] Idem. Ibidem.
[26] SILVA, Sérgio André R. G. da. Controle administrativo do lançamento tributário: O Processo Administrativo Fiscal. Rio de Janeiro: Editora Lumen Juris, 2004, p. 124.
[27] XAVIER, Alberto. Do Lançamento no Direito Tributário Brasileiro. 3. ed. totalmente reformulada e atualizada. Rio de Janeiro: Forense, 2005, p. 390.
[28] Idem. Ibidem.
[29] CAIS, 2004, p. 285.
[30] SILVA, 2004, pp. 123-124.
[31] RE 390.513/SP, mas reportando-se ao voto proferido na ADI 1.922-MC/DF, DJU de 24.11.2000.