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A embriaguez alcoólica e a teoria da "actio libera in causa"

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Agenda 25/12/2007 às 00:00

A teoria das "actiones liberae in causa" defende que o agente que se coloca em estado de inimputabilidade e comete fato típico previsível ao tempo da imputabilidade deve ser responsabilizado, seja porque quis o resultado (preordenado), porque, prevendo-o, não o evitou (dolo eventual) ou porque, não o prevendo, deveria tê-lo feito (culpa).

Resumo: A presente monografia tem por objetivo precípuo analisar as particularidades da embriaguez alcoólica aguda para então analisar a aplicação da teoria das actiones liberae in causa, sive ad libertatem relatae e as suas hipóteses de ocorrência. No primeiro capítulo, o enfoque é primordialmente médico-legal, com o estudo dos efeitos da intoxicação alcoólica sobre os centros neurológico e psíquico do homem, as fases da embriaguez, sua classificação e as dificuldades de realização de um diagnóstico correto. O segundo capítulo acompanha a evolução do tratamento penal dispensado à embriaguez através dos tempos, da Antigüidade até os dias atuais, assim como o desenvolvimento natural das doutrinas que se referem à intoxicação, dentre elas a actio libera in causa. O último tópico deste capítulo centra-se no foco dado à embriaguez nas diversas legislações penais brasileiras, do Império à atualidade. O último capítulo aborda diretamente a teoria da actio libera in causa, oferecendo primeiramente noções gerais de imputabilidade, para então debruçar-se sobre a aplicação da teoria às diversas espécies de embriaguez. Elenca ainda as críticas e comentários doutrinários feitos à teoria e à sua aplicação aos casos de embriaguez não-acidental, excluída a preordenada. Por fim aponta as soluções pensadas por doutrinadores contemporâneos para resolver o dilema entre a segurança social e segurança jurídica, indicando aquela que melhor responde à questão.

Palavras-chave: embriaguez; imputabilidade; actio libera in causa.

Sumário: RESUMO. INTRODUÇÃO. 1 NOÇÕES GERAIS DA EMBRIAGUEZ ALCOÓLICA . 1.1 Manifestações neurológicas e psíquicas. 1.2 Fases da embriaguez. 1.3 Classificações da embriaguez. 1.3.1 Quanto à relação de consumo estabelecida pelo usuário. 1.3.2 Quanto ao grau. 1.3.3 Quanto à intenção do agente em relação à embriaguez. 1.3.3.1 Embriaguez acidental. 1.3.3.2 Embriaguez não-acidental. 1.4 Diagnóstico da embriaguez. 2 EVOLUÇÃO HISTÓRICA DO TRATAMENTO PENAL DA EMBRIAGUEZ. 2.1 A embriaguez na Antigüidade. 2.2 Os práticos e as actiones liberae in causa. 2.3 A visão da Escola Clássica. 2.4 A concepção Positivista. 2.5 O tratamento penal da embriaguez na atualidade. 2.6 A embriaguez nos Códigos Penais brasileiros. 2 A ACTIO LIBERA IN CAUSA E A EMBRIAGUEZ. 3.1 Noções gerais. 3.2 Aplicação da actio libera in causa à embriaguez. 3.3 Fundamentações da punibilidade das actiones liberae in causa. 3.4 Soluções apontadas pela doutrina contemporânea. CONCLUSÃO . REFERÊNCIAS.


INTRODUÇÃO

Socialmente aceito, por vezes até de uso encorajado, o álcool incorporou-se à rotina ocidental moderna. A quase totalidade dos eventos sociais costumeiros envolve o consumo de bebidas alcoólicas, de batizados a funerais, passando pelos churrascos nos finais de semana e os happy hours nos finais do expediente.

Tão usuais quanto seu consumo tornaram-se também as conseqüências de seu abuso, dentre elas a embriaguez alcoólica aguda. Portanto, faz-se curial o estudo aprofundado e multidisciplinar da intoxicação por álcool, desde sua ação sobre o organismo humano ao tratamento estatal adequado, seja para fins terapêuticos ou penais.

Este trabalho tem início com o estudo da embriaguez alcoólica sob a ótica da Medicina Legal, esmiuçando os efeitos biológicos do álcool sobre a saúde psíquica e neurológica do sujeito, de forma que restem comprovadas as substanciais alterações de comportamento e controle da vontade decorrentes de dita intoxicação.

Acompanha-se também a evolução do tratamento penal da embriaguez através dos tempos, da Antigüidade aos dias atuais, de modo que o natural desenvolvimento das teorias doutrinárias contemporâneas evidencie-se. A abordagem da intoxicação alcoólica pelos diversos Códigos Penais brasileiros, do Império à Constituição de 1988, integra também este capítulo, por sua importância histórica e doutrinária.

Esta caracterização é essencial para que se compreenda inteiramente o alcance da teoria das actiones liberae in causa, sive ad libertatem relatae (ações livres em sua causa, i.e., relacionada com a liberdade) [1], desenvolvida com o objetivo de oferecer uma solução penalmente coerente no que diz respeito à imputabilidade dos agentes que cometem fato criminoso sob o efeito da embriaguez.

Ver-se-á, contudo, que a almejada coerência não foi plenamente atingida, dando origem a acaloradas controvérsias doutrinárias quando da adoção integral da actio libera in causa pelo Código Penal de 1940; controvérsias estas que se estendem aos dias atuais.

Por fim, busca-se uma solução para o problema da imputabilidade penal sob o estado de embriaguez que responda concomitantemente aos clamores por segurança pública, tema de política criminal, e aos princípios basilares de um ordenamento jurídico penal calcado na máxima nulla poena sine culpa. Nas palavras de Julio Fabbrini Mirabete, "de um lado, o imperativo da culpabilidade, base do sistema, com o pressuposto da imputabilidade; de outro, a exigência de proteção empírica e salvaguarda dos interesses sociais em jogo" [2]


1. NOÇÕES GERAIS DA EMBRIAGUEZ ALCOÓLICA

O surgimento das bebidas alcoólicas confunde-se com a evolução dos primeiros conglomerados humanos. Ainda no período Neolítico, o desenvolvimento da agricultura e a invenção das cerâmicas facilitaram o processo de fermentação natural de frutas e cereais que dá origem ao álcool [3]. Com ele, originou-se também a necessidade de controlar seu consumo excessivo, documentado extensivamente, inclusive na Bíblia, como na passagem do Gênesis em que Noé embebedou-se e ficou nu, deixando à mostra suas vergonhas [4].

Desde então, estudiosos de diversas áreas debruçaram-se sobre o tema, com o objetivo de melhor compreendê-lo para melhor administrá-lo. Nas palavras de Maria Helena Diniz, a embriaguez é uma

Perturbação psíquico-somática passageira, em razão de intoxicação aguda e transitória, provocada por excessiva ingestão de bebidas alcoólicas, podendo liberar impulsos agressivos, estimular a libido e levar o indivíduo a causar acidentes ou a praticar ações delituosas [5].

É acionada por um fator exógeno, corriqueiramente o álcool, e "leva o homem a um estado de perturbação psicológica variável, desde a uma simples excitação até o sono comatoso, que pode evoluir para o óbito" [6]. Difere do alcoolismo por ser este crônico, resultante do uso habitual, imoderado e contínuo da bebida, resultando numa impregnação constante do organismo com a droga.

Na embriaguez alcoólica aguda, a intoxicação se manifesta através de sintomas físicos, neurológicos e psíquicos. As manifestações físicas exteriorizam-se pela congestão da face e das conjuntivas, taquicardia, taquipnéia, náuseas, vômitos, dentre outros. Tendo em vista que a caracterização de um estado de embriaguez penalmente relevante está indissociavelmente ligada à capacidade do sujeito de determinar-se de acordo com seu entendimento e vontade, é mister que o diagnóstico baseie-se em exame clínico intelectivo que avalie de maneira associada as perturbações neurológicas e psíquicas apresentadas, em detrimento de indícios físicos isolados [7].

1.1 Manifestações neurológicas e psíquicas

A embriaguez manifesta-se de maneira expressiva através de perturbações neurológicas e psíquicas. Aquelas estão conectadas a alterações clínicas da marcha, da coordenação motora e do equilíbrio, enquanto estas se apresentam em ordem crescente, operando primeiramente nas funções mais elevadas do córtex cerebral para depois chegar às esferas menores [8].

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Denomina-se a marcha da embriaguez aguda de ebriosa, cerebelar ou ziguezague, enquanto que as manifestações motoras traduzem-se pela descoordenação na orientação (ataxia) e medida (dismetria) dos movimentos, na harmonia de determinados conjuntos de movimentos (dissinergia ou assinergia) e na realização de movimentos rápidos e opostos (disdiadococinesia). Há ainda dificuldade de articulação de vocábulos (disartria) e redução do tônus muscular, evidenciada pelos movimentos realizados de forma mais lenta. Fenômenos vagais, como o soluço, o vômito e a confusão das funções sensoriais também são característicos, provocando um baixo aproveitamento dos sentidos (visão, audição, paladar e olfato) e das sensibilidades táctil, térmica e dolorosa [9].

Os centros nervosos são paralisados pela ação do álcool, atingindo primeiramente os centros cerebrais superiores, que inibem o automatismo, para só então se refletir sobre as funções inferiores. Como resultado da paralisia, a atenção do ébrio é diminuída, a memória prejudicada, a capacidade de julgamento se esvai, a ética e a estética se dissociam, o automatismo liberta-se e dá lugar aos atos impulsivos, levando a um comportamento exagerado e ridículo, o qual chega muitas vezes à agressividade, inconveniência e obscenidade [10].

1.2 Fases da embriaguez

Ao tratar das fases da embriaguez, o professor Hélio Gomes relata:

Segundo uma lenda árabe, as três fases da embriaguez seriam simbolizadas por três animais, o macaco, o leão e o porco. Na primeira, o indivíduo se torna irrequieto, saltitante, buliçoso (é a fase do macaco); na segunda, torna-se violento, brigão, agressivo (é a fase do leão); na terceira, sujo, emporcalhado, roncando (é a fase do porco) [11].

Há autores na doutrina médico-legal que dividem a embriaguez em cinco fases distintas, como Magnan e Bogen, enquanto outros a dividem em quatro (Nicollini, Pessina); no entanto, a divisão que arrola mais adeptos é a que a divide em três fases: da excitação, da confusão e do sono [12]. Damásio E. de Jesus nomeia a segunda fase como a da depressão [13].

Na primeira fase, da excitação, o sujeito mostra-se extremamente instável, loquaz, vivo, com o olhar animado, bem humorado e eufórico; dado a leviandades, graças e revelações íntimas (in vino veritas), devido à redução da autocrítica [14]. Deste período, fala também Odon Maranhão:

As funções intelectuais mostram-se excitadas e o paciente particularmente eufórico. Dá mesmo a impressão de estar excitado. Na realidade isso não ocorre, pois o álcool é tipicamente depressivo: os centros superiores não estão excitados mas os de controle estão intoxicados. A vontade e a autocrítica mostram-se rebaixadas. A capacidade de julgamento se compromete. Há certo grau de erotismo (na realidade é simples desinibição). [15]

Na fase da confusão, nas palavras de Genival Veloso de França, "surgem as perturbações nervosas e psíquicas. Disartria, andar cambaleante e perturbações sensoriais. Irritabilidade e tendências às agressões. É a fase de maior interesse e, por isso, chamada fase médico-legal" [16]. Hélio Gomes complementa, afirmando que "o viciado, antes amável e gentil, se torna provocador, insolente, impulsivo, tendente à prática de atos violentos. É neste momento que o ébrio se torna perigoso e comete crimes" [17], devido às profundas perturbações psicossensoriais ocorridas no período. Os delitos mais comumente praticados na segunda fase da embriaguez são, justamente, os que decorrem da agressividade exacerbada característica: atentados sexuais e agressões, bem como as agitações iniciais de brigas [18]. Daí a associação com o leão.

A última fase, do sono ou comatosa, caracteriza-se pela incapacidade do indivíduo de manter-se em pé sem assistência. Apóia-se em paredes, móveis ou pessoas vizinhas, e por fim cai, impossibilitado de levantar-se, mergulhando em sono profundo. A sudorese é abundante e a reação aos estímulos normais, ausente; a consciência esvai-se e as pupilas se dilatam, indiferentes à luminosidade. Há o relaxamento dos esfíncteres, o qual permite a expulsão involuntária de urina e fezes. "Coberto de suor e imundície, o bêbedo não dá mais acordo de si: atingiu o supremo grau da degradação humana. Embruteceu-se com seu próprio esforço" [19]. Portanto, é compreensível que a ocorrência de delitos penais neste período resuma-se a crimes de omissão ou comissivos por omissão [20].

1.3 Classificações da embriaguez

1.3.1 Quanto à relação de consumo estabelecida pelo usuário

Para uma melhor compreensão do fenômeno da embriaguez, é essencial distingui-la em suas formas fortuita (ocasional, aguda), crônica (alcoolismo), habitual e patológica.

A última é caracterizada pelo consumo de pequenas doses com efeitos desproporcionalmente intensos e atinge indivíduos geneticamente predispostos, isto é, extremamente sensíveis às bebidas alcoólicas, em especial as personalidades psicóticas.

A descrição clássica de Vibert a divide em quatro tipos:

Ressalte-se que a embriaguez patológica configura verdadeira psicose e, portanto, deve ser tratada como doença mental, aplicando-se medida de segurança quando necessário [22].

Ainda na seara das perturbações da saúde mental enquadra-se o alcoolismo, também chamado de intoxicação crônica. Diferencia-se da forma aguda pela "ação prolongada do tóxico, e que persiste mesmo quando este já eliminado. Aquela é uma manifestação episódica, este uma marca residual, uma deformação persistente do psiquismo, assimilável a verdadeira psicose" [23].

A Medicina Legal tem grande interesse em seu estudo porque seus portadores representam perigo para si e para as demais pessoas; apresentam transtornos de conduta, além de alterações do juízo crítico e da capacidade de administrar seus interesses; e têm tendência a desenvolver outros distúrbios mentais, chegando a desenvolver um perfil anormal não-psicótico conhecido por personalidade alcoolista [24]. No decurso do alcoolismo, o paciente pode desenvolver uma série de graves transtornos neurológicos e psíquicos, tais como síndrome amnésica, delirium tremens (estado agudo que abarca confusão, agitação e angústia, seguidos por tremores, alucinações visuais e amnésia), alucinose dos bebedores (alucinações auditivas), delírio de ciúmes, epilepsia alcoólica e dipsomanias (crises incontroláveis que levam à ingestão de grandes quantidades de álcool) [25].

A embriaguez habitual não se confunde com a crônica, uma vez que naquela não há perturbação da saúde mental. Suspendendo-se o uso do álcool, cessarão os efeitos nocivos e ocorrerá a desintoxicação [26]. Entretanto, cabe aqui lembrar que o ébrio habitual apresenta tendência ao alcoolismo crônico, podendo vir a desenvolver as alterações fisiológicas e mentais descritas acima [27].

Por fim, tem-se a embriaguez ocasional, também chamada de fortuita ou aguda. Reiterando o anteriormente exposto, a embriaguez aguda é a intoxicação temporária e transitória por álcool, cujos efeitos cessarão com a eliminação do tóxico pelo organismo. Neste estudo, o foco estará nesta forma de embriaguez, uma vez que tanto a patológica quanto a crônica já restam doutrinariamente configuradas como verdadeiras hipóteses de inimputabilidade por doença mental, de acordo com a previsão legal do artigo 26 do Código Penal.

1.3.2 Quanto ao grau

Quanto à sua intensidade, a embriaguez pode ser completa (plena) ou incompleta (semiplena). Agripino F. da Nóbrega, em seu estudo do alcoolismo, apontou a discrepância que há entre médicos e juristas no tocante à definição da embriaguez completa: os médicos afirmam ser ela "um aniquilamento irremediável da consciência e da vontade, numa letargia ou estado comatoso do paciente"; para os juristas, "a embriaguez é completa desde que se suprima na pessoa daquele a consciência do que o cerca e da própria personalidade" [28].

Conclui-se que os médicos aceitam como completa a embriaguez apenas em sua última fase, do sono, enquanto que para fins jurídicos caracterizada está a plenitude da intoxicação no segundo e terceiro períodos, sendo incompleta apenas no primeiro.

Sobre o assunto, Aníbal Bruno, relembrando lição de Mittermayer, afirma que "a embriaguez de supremo grau se assinala por uma tal supressão ou confusão de consciência que o ébrio não sabe mais o que faz; ignora as conseqüências de seus atos e as relações destas com a lei" [29]. Nelson Hungria complementa, preceituando que a embriaguez incompleta será diagnosticada por exclusão, ou seja, "quando, à parte o coma do terceiro período, não se apresentarem os ditos indícios espetaculares" [30] característicos da fase do leão.

1.3.3 Quanto à intenção do agente em relação à embriaguez

O principal elemento na classificação da embriaguez quanto à intenção do agente é, obviamente, o fim por ele perseguido quando da ingestão do álcool. Dependendo deste componente subjetivo, a embriaguez será acidental ou não acidental.

1.3.3.1 Embriaguez acidental

A embriaguez acidental pode ocorrer por caso fortuito ou força maior. Seguindo as lições de Cezar Roberto Bittencourt, a primeira se dá "quando o agente ignora a natureza tóxica do que está ingerindo, ou não tem condições de prever que determinada substância, na quantidade ingerida, ou nas circunstâncias em que o faz, poderá provocar a embriaguez", sendo força maior "algo que independe do controle ou da vontade do agente. Ele sabe o que está acontecendo, mas não consegue impedir" [31]. Em seu clássico Instituições de Direito Penal, Basileu Garcia esclarece que "o caso fortuito e a fôrça [sic] maior podem distinguir-se conceitualmente: naquele, não se evita o resultado porque é imprevisível nesta, mesmo que seja previsível e até previsto, o resultado é inevitável" [32].

Exemplos doutrinariamente consagrados de embriaguez acidental por caso fortuito são os do sujeito que tropeça e cai de cabeça em um tonel de vinho, daquele que ingere bebida sem saber que contém álcool, e ainda do indivíduo que sob efeito de antibióticos bebe, ignorante das conseqüências da mistura das duas drogas. Modelo clássico de força maior ocorre quando alguém é coagido, física ou moralmente, a consumir bebida alcoólica, embriagando-se [33].

1.3.3.2 Embriaguez não-acidental

Diz-se que a embriaguez é não-acidental quando não proveniente de caso fortuito ou força maior, subdividindo-se em culposa, voluntária ou dolosa e preordenada.

Na embriaguez culposa, como o próprio nome indica, o agente tem a intenção de beber, mas não de se intoxicar. Este resultado é atingido pela imprudência do sujeito que, deixando-se levar, abusa do álcool; devendo ter previsto que se embriagaria, não o fez, ou genuinamente acreditou que não se intoxicaria.

Cabe apontar que Eduardo Silveira Melo Rodrigues, em desacordo com a melhor doutrina, em seu A embriaguez e o crime, inclui a embriaguez culposa dentre as hipóteses de embriaguez acidental: "da embriaguez é que se cuida, não do fato de beber. Posso querer beber nos dois casos, mas se não desejo embriagar-me, e o fico, minha embriaguez será acidental" [34]. É compreensível o raciocínio do jurista; contudo, deve-se sempre recordar que o agente que se embriaga culposamente, houvesse agido com a diligência do homem médio, seria capaz de prever o resultado embriaguez. Neste caso não há acidente, mas negligência ou imprudência.

A embriaguez dolosa ou voluntária se dá quando o sujeito consome bebida alcoólica com a intenção de intoxicar-se (dolo direto), ou ainda quando prevê este resultado e mesmo assim assume o risco de embriagar-se (dolo indireto, alternativo ou eventual) [35].

Por fim, tem-se a embriaguez preordenada, em que o agente ingere o álcool para cometer um ato criminoso. Ou seja, o animus de delinqüir é anterior ao de se embriagar, servindo este como meio encorajador para que o indivíduo cometa o delito. O sujeito, ciente do relaxamento dos freios éticos inibitórios gerado pela embriaguez, consome bebida para aproveitar-se deste efeito e angariar a "coragem" necessária para a prática criminosa. Fernando Capez dá como exemplo as "pessoas que ingerem álcool para liberar instintos baixos e cometer crimes de violência sexual ou de assaltantes que consomem substâncias estimulantes para operações ousadas" [36]. Há ainda aqueles que recorrem à embriaguez na tentativa de recair em uma dirimente ou atenuante. Adiante, ver-se-á que tal objetivo é frustrado pela teoria das actiones liberae in causa sive ad libertatem relatae, cujo exemplo de aplicação clássico é, precisamente, a embriaguez preordenada [37].

1.4 Diagnóstico da embriaguez

Ebrietas non presumitur, onus probandi incumbit alleganti. A embriaguez não se presume, devendo ser comprovada. Para tanto, há a pesquisa bioquímica, a prova testemunhal e o exame clínico, realizado por perito médico-legal.

A pesquisa bioquímica do álcool é a aferição da quantidade de álcool presente no organismo. Pode ser feita utilizando-se a saliva, a urina, o liquor, o ar expirado ou o sangue, sendo este último o meio mais preciso.

Contudo, cabe aqui ressaltar que a pesquisa bioquímica isolada é insuficiente para um correto diagnóstico da embriaguez. Nas palavras de Genival de França, a investigação bioquímica "não responde às indagações de como o indivíduo se comportava em seu entendimento numa ação ou omissão criminosa, porque há uma variação de sensibilidade muito grande de um bebedor para outro" [38].

A absorção do álcool pelo organismo é influenciada por diversos fatores, como vacuidade ou plenitude estomacal, constituição física, hereditariedade, ritmo de ingestão, concentração alcoólica da bebida, hábito de beber, sono, cansaço, estados emocionais. Portanto, a sensibilidade ou tolerância ao álcool varia consideravelmente de indivíduo para indivíduo, donde conclui-se que uma mesma dose de bebida pode gerar efeitos mais ou menos intensos em cada sujeito, em cada momento. Há pessoas que, extremamente tolerantes ao álcool, apresentam altas taxas de concentração no sangue, sem características de embriaguez, enquanto outras, mais suscetíveis aos seus efeitos, ficam indubitavelmente intoxicadas com pequenas doses. Ou seja, uma cifra não determina de modo absoluto e incontestável os limites de uma embriaguez.

Complicador extra da análise bioquímica é a questão do consentimento do agente, necessário para a coleta do sangue e inexigível segundo determinação constante do artigo 5°, inciso II da Constituição Federal de 1988: "ninguém é obrigado a fazer ou deixar de fazer alguma coisa senão em virtude de lei" [39]. Fosse a dosimetria alcoólica o único meio de prova aceitável, havendo recusa por parte do examinado, a embriaguez seria inauferível.

O exame clínico constitui o mais acertado meio de comprovação do estado de embriaguez, pois permite ao legista aferir concretamente os efeitos do álcool sobre a capacidade de julgamento e de autodeterminação do agente, essenciais para uma classificação precisa da espécie de intoxicação. É prejudicado principalmente pelo decurso do tempo entre a ingestão do álcool e a realização do exame, considerando-se que os efeitos da embriaguez aguda são transitórios, cessando com a eliminação do tóxico pelo organismo.

O laudo pericial deve indicar à Justiça:

1.º Se há ou não embriaguez;

2.º Se, em caso afirmativo, a embriaguez é ou não completa;

3.º Se a embriaguez comprovada é um fenômeno episódico, ocasional, ou se trata de um estado de embriaguez aguda manifestada em alcoolismo crônico;

4.º Se se trata de uma embriaguez patológica;

5.º Se, no caso em que se encontra o paciente, pode ele pôr em risco a segurança própria ou alheia;

6.º Se é necessário o tratamento compulsório [40].

Por sua vez, a prova testemunhal, apesar de precária, é confiável e admissível, pois permite que o comportamento do agente ao tempo da ação chegue aos autos mesmo nos casos em que o exame clínico tenha sido prejudicado. Neste sentido, o desembargador Saulo Brum Leal, do TJRS:

EMENTA: PENAL. DELITO DE TRANSITO. LESOES CORPORAIS. 1. EMBRIAGUEZ. PROVA TESTEMUNHAL. A EMBRIAGUEZ PODE SER DEMONSTRADA POR MEIO DE PROVA TESTEMUNHAL, PRINCIPALMENTE PORQUE O REU NAO E OBRIGADO A SUBMETER-SE AO EXAME DE SANGUE OU BAFOMETRO. 2. DOLO EVENTUAL. COMPROVADO. QUEM, ESTANDO EMBRIAGADO, CONDUZ VEICULO NA CONTRAMAO, EM ALTA VELOCIDADE, ASSUME O RISCO DA PRODUCAO DO EVENTO DANOSO. A UNANIMIDADE, NEGARAM PROVIMENTO AO APELO DEFENSIVO.

(Apelação Crime Nº 70000738146, Terceira Câmara Criminal, Tribunal de Justiça do RS, Relator: Saulo Brum Leal, Julgado em 04/05/2000)

Sobre a autora
Renata Cyreno Adeodato

bacharela em Direito pela Universidade Federal de Pernambuco

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

ADEODATO, Renata Cyreno. A embriaguez alcoólica e a teoria da "actio libera in causa". Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 12, n. 1637, 25 dez. 2007. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/10793. Acesso em: 18 nov. 2024.

Mais informações

Monografia final de curso, apresentada como requisito parcial para a conclusão do curso de bacharelado em Direito pela Universidade Federal de Pernambuco.

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