Introdução
A ideia de estabelecer uma força armada europeia unificada, embora tenha circulado por várias décadas dentro dos corredores da política europeia, adquiriu uma urgência renovada face aos desafios geopolíticos emergentes do século XXI. Desde a anexação da Crimeia pela Rússia em 2014, um ato que desafiou diretamente a ordem de segurança europeia pós-Guerra Fria, posteriormente com a Invasão da Ucrânia pela Rússia, ficou clara a nessecidade da União Europeia (UE) de buscar novos meios para manter a segurança e a estabilidade dentro de suas fronteiras. Além disso, uma possível reeleição de Donald Trump nos Estados Unidos, poderia diminuir compromisso dos EUA com a OTAN, exacerbando as incertezas quanto à fiabilidade da segurança europeia historicamente ancorada na aliança com os EUA.
Neste contexto, o debate sobre a criação de um Exército Europeu ganhou novo ímpeto, refletindo uma crescente conscientização entre os Estados-membros da UE sobre a necessidade de desenvolver capacidades de defesa autônomas. Este movimento é visto por muitos como essencial para garantir a soberania europeia, promover a paz e a estabilidade regional e global, e reafirmar o papel da Europa como um ator estratégico independente no palco mundial.
A criação de um Exército Europeu é vista como um meio de fortalecer a voz da Europa nas questões de segurança global, assegurando que os interesses e valores europeus sejam adequadamente representados e defendidos. A relevância deste tema é inquestionável no atual ambiente de segurança global. À medida que a UE enfrenta desafios internos, a capacidade de agir de forma autônoma em defesa dos interesses e valores europeus torna-se cada vez mais crítica. Além disso, isso reflete questões mais amplas sobre a identidade europeia, a soberania dos Estados-membros e o futuro da integração europeia, tornando-se um tema central no debate sobre a identidade europeia.
Fundamentos Históricos e Evolução da Política de Defesa Europeia
A cooperação em defesa na Europa tem suas raízes no período pós-Segunda Guerra Mundial, marcado por um forte desejo de garantir a paz e a estabilidade no continente. Inicialmente, a integração europeia focou-se na cooperação econômica, com a criação da Comunidade Europeia do Carvão e do Aço em 1951. No entanto, a necessidade de uma abordagem coordenada em matéria de defesa e segurança rapidamente se tornou evidente, especialmente no contexto da Guerra Fria e da crescente tensão entre o bloco ocidental, liderado pelos Estados Unidos, e o bloco oriental, liderado pela União Soviética.
A ideia de uma defesa europeia comum remonta à proposta da Comunidade Europeia de Defesa (CED) em 1952, que visava estabelecer forças armadas integradas entre os membros da Comunidade Europeia do Carvão e do Aço (CECA). No entanto, a CED nunca foi realizada devido à rejeição pelo parlamento francês em 1954, refletindo as complexidades da soberania nacional e da integração militar[1]. Apesar desse revés, a necessidade de cooperação em defesa permaneceu, levando à formação da União da Europa Ocidental (UEO) em 1954, que serviu como um fórum de coordenação de políticas de defesa entre seus membros, embora sua influência tenha sido limitada pela predominância da OTAN na segurança europeia[2].
Com o passar do tempo, a virada do século trouxe novos desafios e oportunidades, culminando na formulação da Política Comum de Segurança e Defesa (PCSD) da União Europeia. Instituída pelo Tratado de Lisboa em 2009, a PCSD marcou um passo significativo na direção de uma capacidade de defesa e segurança coletiva europeia. Seu objetivo é dotar a UE de capacidades operacionais autônomas para gerir e conduzir missões civis e militares fora da Europa, abordando crises internacionais, prevenindo conflitos e reforçando a segurança internacional[3].
Um desenvolvimento mais recente na trajetória da defesa europeia é a Cooperação Estruturada Permanente (PESCO), estabelecida em 2017. A PESCO permite que os Estados-membros da UE que desejam trabalhar mais estreitamente em projetos de defesa o façam dentro de um quadro legalmente vinculativo. Seu objetivo é aumentar a capacidade de defesa da UE, desenvolver um setor de defesa mais competitivo e eficiente e reforçar a colaboração entre os Estados-membros[4].
Desafios Jurídicos para a Criação de um Exército Europeu
A criação de um Exército Europeu representa um marco potencialmente transformador na integração europeia, mas enfrenta uma série de desafios jurídicos significativos. Estes desafios estão enraizados tanto na estrutura atual dos tratados da União Europeia (UE) quanto nas tensões entre a soberania nacional dos Estados-membros e o conceito de integração militar.
Os tratados fundadores da UE, incluindo o Tratado de Lisboa, estabelecem as bases jurídicas para a política de defesa comum, mas com limitações claras. O Artigo 42 do Tratado da União Europeia (TUE) prevê a possibilidade de uma política de defesa comum. No entanto, qualquer passo em direção a uma defesa comum requer a unanimidade dos Estados-membros, o que representa um obstáculo significativo, dada a diversidade de perspectivas sobre questões de defesa e segurança.
Além disso, o Artigo 42(2) do TUE introduz a cláusula de defesa mútua, que é ativada apenas se um Estado-membro for alvo de agressão em seu território. Mesmo assim, a cláusula contém salvaguardas para os países que têm políticas de neutralidade, como a Áustria e a Irlanda, permitindo-lhes optar por não participar em operações militares.
A questão da soberania nacional versus a integração militar é central para o debate sobre um Exército Europeu. A criação de forças armadas integradas implicaria em um nível de soberania compartilhada sem precedentes no domínio da defesa, um campo tradicionalmente guardado como prerrogativa nacional. Isso levanta questões jurídicas complexas sobre a transferência de autoridade de decisão de defesa dos Estados-membros para uma instituição supranacional europeia.
Um dos principais desafios seria a necessidade de revisar os tratados existentes da UE para acomodar a criação de um Exército Europeu, um processo que requer o consenso de todos os Estados-membros. Além disso, haveria a necessidade de estabelecer um quadro jurídico abrangente que delineasse as responsabilidades, o comando e o controle, e os mecanismos de financiamento de tal força armada.
Outra questão jurídica diz respeito à compatibilidade de um Exército Europeu com as obrigações dos Estados-membros perante outras alianças de defesa, principalmente a OTAN. A integração das capacidades de defesa na UE teria que ser cuidadosamente coordenada com os compromissos existentes dentro da OTAN, para evitar duplicações ou conflitos jurídicos.
Contexto Político e Apoio dos Estados-Membros
No passado, alguns países, como França e Alemanha, demonstaram apoio à referida ideia, vendo-a como um passo natural na direção de uma maior integração europeia e autonomia estratégica[5]. O presidente francês, Macron, por exemplo, defendeu anteriormente a necessidade de a Europa assumir maior responsabilidade por sua própria segurança, especialmente à luz de questionamentos sobre o compromisso dos Estados Unidos com a OTAN sob administrações recentes.
Por outro lado, países com fortes laços militares com os Estados Unidos e aqueles que dependem significativamente da OTAN para sua segurança, como os Estados bálticos e a Polônia, expressam reservas. Eles temem que a criação de um Exército Europeu possa duplicar as estruturas existentes da OTAN e enfraquecer a aliança transatlântica, que consideram vital para a contenção da Rússia.
Desafios Operacionais e Logísticos
A estrutura de um Exército Europeu propõe questões fundamentais sobre como as forças armadas nacionais dos Estados-membros seriam unificadas sob um comando central. Isso inclui a determinação de quais unidades e equipamentos seriam integrados na força europeia e como seriam organizadas. A estrutura teria que ser flexível o suficiente para acomodar as diversas capacidades e prioridades de defesa dos Estados-membros, ao mesmo tempo em que assegura uma cadeia de comando eficiente e responsiva.
O financiamento é outro desafio crítico, envolvendo questões sobre como os custos de um Exército Europeu seriam compartilhados entre os Estados-membros. Isso exigiria um acordo sobre o orçamento de defesa comum, incluindo contribuições financeiras dos Estados-membros, investimentos em infraestrutura e tecnologia, e custos operacionais. A sustentabilidade financeira de longo prazo seria essencial para garantir que o Exército Europeu possa manter e modernizar suas capacidades.
O comando de um Exército Europeu levanta questões sobre a liderança e a tomada de decisão dentro da estrutura de defesa europeia. Determinar quem teria a autoridade final sobre o desdobramento de forças e operações militares é fundamental para a eficácia operacional. Isso exigiria a criação de um sistema de comando unificado que respeite a soberania dos Estados-membros, ao mesmo tempo em que permite uma resposta rápida e coordenada a ameaças e crises.
Conclusão
Para avançar na direção de uma integração militar europeia e na criação de um Exército Europeu, é essencial desenvolver estratégias que enfrentem tanto os desafios jurídicos quanto os políticos. Isso requer uma revisão cuidadosa e, potencialmente, a reforma dos Tratados da União Europeia, especialmente aqueles relacionados à Política Comum de Segurança e Defesa (PCSD), para incluir disposições que permitam explicitamente a formação de um Exército Europeu. Tal revisão deveria contemplar a criação de novos protocolos que definam as competências, estruturas e financiamento de uma força de defesa comum, respeitando ao mesmo tempo a soberania dos Estados-membros.
A utilização de mecanismos de cooperação reforçada pode permitir que um subconjunto de países da UE avance na integração militar sem a necessidade de uma participação universal. Isso pode ajudar a superar bloqueios políticos, permitindo que os países mais dispostos e capazes liderem o processo. Paralelamente, é crucial desenvolver um quadro jurídico que preserve a soberania nacional sobre questões críticas de defesa, enquanto facilita a integração operacional e estratégica. Isso pode incluir acordos sobre o comando conjunto de forças militares, assegurando que decisões estratégicas importantes, como o envolvimento em conflitos, exijam a aprovação unânime dos Estados-membros.
A ampliação dos exercícios militares conjuntos entre os Estados-membros é vital para construir interoperabilidade e coesão entre as forças armadas nacionais, servindo também para avaliar a prontidão operacional de uma força de defesa integrada. Desenvolver uma estrutura de comando integrada que coordene as operações militares da UE, respeitando as cadeias de comando nacionais, é outro passo fundamental. Isso pode incluir a criação de um quartel-general de defesa da UE responsável pela planificação e execução de operações militares conjuntas.
Por fim, manter um diálogo aberto com parceiros internacionais, especialmente a OTAN, é crucial para assegurar a complementaridade e evitar duplicações desnecessárias. A integração militar europeia deve ser percebida como um reforço à segurança transatlântica, não como um substituto para a OTAN. Implementando essas estratégias e passos, a União Europeia pode superar os desafios jurídicos e políticos que impedem atualmente a criação de um Exército Europeu, movendo-se em direção a uma defesa mais integrada e eficaz enquanto respeita as sensibilidades nacionais.
Referências
[1] Os Tratados iniciais | Fichas temáticas sobre a União Europeia | Parlamento Europeu (europa.eu)
[2] Western European Union - Oxford Reference
[3] Política Comum de Segurança e Defesa | Fichas temáticas sobre a União Europeia | Parlamento Europeu (europa.eu)
[4] Cooperação estruturada permanente (CEP) em matéria de defesa e segurança | EUR-Lex (europa.eu)
[5] Merkel joins Macron in calling for EU army to complement NATO – POLITICO