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Suspensão condicional do processo e a ação penal privada

Agenda 16/02/1997 às 00:00

Por força do mandamento constitucional (CF, art.98, I ), o legislador ordinário instituiu no cenário jurídico nacional, a Lei nº 9.099 de 27/09/95, pela qual se deu margem à uma verdadeira mudança na mentalidade punitiva clássica. Isto porque, criando institutos de natureza marcantemente despenalizadora — composição civil, transação penal e suspensão — investiu contra a couraça da concepção clássica tradicional apoiada, exclusivamente, na aplicação da pena como instrumento para a efetivação do direito, tendo a prisão como um dos seus alicerces fundamentais, rompendo-a e apontando as vantagens jurídicas da nova concepção.

É evidente que, igualmente, uma das preocupações do legislador ordinário com a previsão constitucional dos novos institutos já mencionados, foi, a par da criação de uma nova mentalidade jurídica punitiva, a de substituir o modelo falido e arcaico de resposta penal, baseada, exclusivamente, na metodologia prisional como instrumento de recuperação do agente infrator. Agora, fundamentalmente, além de estimular-se a fixação e desenvolvimento de uma metodologia punitiva centrada no consenso e reposição danos para as infrações de menor e médio poder ofensivo, criou-se condições, paralelamente, para a diminuição e, quiçá, resolução futura do problema carcerário atual que o Estado de Direito atual, teima em ignorar.

Um desses institutos, que é objeto desta nossa manifestação, refere-se à suspensão condicional do processo, como tal previsto no art. 89 da mencionada lei. Segundo essa disposição legal, o processo penal, atendidas as condições explicitadas na própria lei, poderá ser suspenso a requerimento do representante do Ministério Público que oficiar no juízo onde tramita o feito, seja ele, o comum ou especial.

Desde logo, a par das considerações doutrinárias já existentes, tem o aludido instituto natureza essencialmente consensual, isto é, para a sua concretização legal, deverá ser levado em conta — exclusivamente — a vontade das partes intervenientes no processo penal, ou seja, o Ministério (que, principalmente, é o agente que oferta) e as demais partes envolvidas — no caso, o réu e seu defensor e, porque não dizê-lo, a própria vítima quando for a promovente da respectiva ação penal como adiante se aduzirá.

Todavia, embora imprescindível a vontade das partes à configuração da suspensão do processo, torna-se mister acentuar que ela (a suspensão não se operará) se não forem atendidos os pressupostos processuais de admissibilidade do instituto, a saber: a) não esteja o acusado sendo processado ou, não tenha sido condenado por outro crime; e, c) presentes, ainda, os requisitos da suspensão condicional da pena (art.77 do CP).

Isto vale dizer, não basta a vontade ou desejo de alguma das partes — Ministério Público, acusado, defensor, vítima ou seu representante legal (no caso de crime de ação privada), para a concretização do propalado instituto. Nesta conformidade, faltando alguma destas vontades, inviável se tornará a suspensão almejada.

Por outro lado, outro ponto que tem provocado acesa discussão doutrinária, é aquele que tem considerado o instituto recém-criado como um direito público subjetivo do acusado. Advogam essa tese, LUIZ FLÁVIO GOMES e ADA PELLEGRINI GRINOVER, em "Suspensão Condicional do Processo Penal" e "Juizados Especiais Criminais — Comentários à Lei 9.099, de 27.09.95", ambas as obras editadas pela Editora Revista dos Tribunais e já do conhecimento do estamento jurídico.

Comungamos do mesmo entendimento dos citados autores porque, fundamentalmente, como direito subjetivo deve ser entendido aquele interesse individual juridicamente protegido. Ou ainda: a possibilidade da pessoa de exigir ou postular algo que a lei ou ordenamento jurídica lhe assegura como próprio. Nesta conformidade, à toda evidência, havendo no ordenamento jurídico uma previsão explícita (expressa) sobre algo que constitua ou venha a constituir um benefício, vantagem ou favor legal para determinada pessoa, satisfeitos algum ou alguns requisitos também previstos na ordem legal, indubitavelmente se estará diante do que se convencionou chamar de direito público subjetivo.

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Explicitada desse modo aquela noção, decorrem daí duas conseqüências de ordem legal: a) necessidade de que o beneficiado(s) ou atingido(s) pela disposição legal, manifeste(m) de modo inequívoco a sua anuência ao direito consubstanciado na norma legal; e, b) aquele que, por lei, tem o dever ou obrigação de conceder ou assegurar aquele direito subjetivo. Nesse sentido, por exemplo, veja-se a concessão do sursis simples (art.77 do Código Penal ) e, agora, a suspensão condicional do processo (art.89 da Lei nº 9099)95). No primeiro caso, presentes os requisitos legais, de forma alguma poderá o juiz deixar de conceder o sursis (em qualquer uma de suas três modalidades) ao acusado no processo penal que, atendidos os requisitos legais, a ele fizer jus. Se não o conceder, bastará ao réu ingressar com uma ordem de Habeas Corpus perante o Tribunal de Justiça (ou de Alçada, conforme o caso), para ver satisfeito aquele seu direito.

No caso da suspensão, entendemos, a hipótese é semelhante, porque a disposição legal — art. 89, estabelece, claramente, quais os requisitos necessários à concessão daquela e, uma vez atendidos, a recusa do órgão ministerial em propor a suspensão ou, ao magistrado, em deferi-la, constituirá gravame ao direito subjetivo do acusado sanável por Habeas Corpus (se eventualmente estiver preso) ou, ainda, por Mandado de Segurança para a proteção daquele direito subjetivo que, no caso, apresenta-se com toda a textura de liquidez e certeza.

Pensar ao contrário, entendemos, é desprezar a nova concepção filosófica e finalística do direito de punir que, para o universo dessas infrações menores, veio a representar e a criar uma nova mentalidade no trato das questões penais voltada, sobretudo, à recuperação do infrator de baixo teor (ou potencialidade) de periculosidade.

Há que restar delineado que tanto a suspensão condicional da pena como a suspensão condicional do processo, representam momentos processuais em que a vontade da parte beneficiado - no caso o réu, assume papel relevante em razão do que — o próprio juiz do processo — nada poderá opor, a não ser, cumprir o que determina a lei. Por outras palavras, na suspensão condicional da pena, poderá o acusado, se o desejar, recusar tal benefício, passando, desde logo, a cumprir a pena; já, na suspensão, poderá, igualmente, ainda que ofertado pelo agente ministerial, simplesmente inadmitir tal suspensão contra o que, legalmente, tanto o Ministério Público, como o juiz, nada poderão fazer. Esta a textura jurídica que une — iniludivelmente — os dois institutos.

Com relação, agora, à Ação Penal Privada, entendemos que a hipótese merece outras considerações adicionais às já feitas.

Em primeiro lugar, devemos lembrar que os princípios informadores da Ação Penal Privada (disponibilidade, indivisibilidade, perdão processual, perempção, renúncia, etc.) em nada se contrapõem ao instituiu da suspensão condicional do processo que, por sua natureza sui generis" tem contornos especiais e claramente distintos.

Com efeito, no que concerne ao princípio da disponibilidade, este diz respeito ao poder que tem a vítima (ou, seu representante legal, quando menor aquela) de propor ou não a competente ação penal, isto é, exercitar ou não o direito de queixa-crime que lhe é facultado por lei. No caso da suspensão condicional do processo, não há falar-se em disponibilidade ou, sequer, desistibilidade da ação penal, porque institutos de feição jurídica distintas. Na ação penal pública, não se pode falar ou cogitar-se de desistibilidade ou renúncia ou coisa que o valha, porque o Ministério Público não tem esse poder. O Ministério Público, ao propor a suspensão condicional do processo não está de modo algum desistindo da propositura da ação penal pública e, sequer, a sua proposta pode ser considerada como desistência parcial do poder que lhe é conferido constitucionalmente (CF, art.129, I). Na verdade, está ele, tão-somente, agindo na conformidade da lei que regula a espécie — a suspensão — e, desse modo, segundo as prescrições legais cabíveis a cada caso em concreto. Também, igualmente, não há que se ver na proposta de suspensão por parte do Ministério Público, qualquer semelhança com o instituto da renúncia, específico da Ação Penal Privada e que nada tem a haver com o recém-criado instituto da suspensão processual previsto na Lei nº 9099/95. Na renúncia, ao contrário da suspensão, a parte interessada — no caso, o querelante, abdica, expressa ou tacitamente, do direito à ação penal correspondente, ao passo que na suspensão, tão-somente, há uma paralisação temporária do processo mediante o implemento de certas condições que, se não cumpridas, determinaram a continuação do processo então instaurado com a denúncia oral oferecida simultaneamente pelo agente ministerial. Por outro vértice, na Ação Penal Privada, há a possibilidade de desistência da ação penal, bastando, tão-somente, a parte interessada abandonar o processo ou se desinteressar por ele que já importaria em perempção.

Na ação privada penal, a parte pode juridicamente propor a suspensão condicional do processo, porque assiste-lhe o direito relativo ao exercício da ação penal. Ora, seria um contra-senso jurídico e contrário às normas de hermenêuticas, impedir-se alguém que tem a disponibilidade da ação de não poder propor a suspensão que é o mínimo em relação ao máximo que é a própria ação penal.

Com relação à assertiva de alguns ramos doutrinários de que, a suspensão condicional do processo, importaria ou poderia importar em perdão expresso processual ou até mesmo tácito, data venia, a observação é inconsistente porque na suspensão não se discute e nem se coloca em cheque o próprio direito objeto do exercício da ação penal, enquanto que no perdão, já se pressupõe a existência do próprio direito de ação penal em curso e, a sua concessão por liberalidade da própria vítima ou querelante, irá importar em extinção da punibilidade do acusado.

A suspensão, ao contrário do perdão, não extingue o processo, apenas, o impede de continuar atendidas certas condições e exigências legais. Não há abdicação de direitos, mas mera, suspensividade dos mesmos.

Ora, se é a própria parte interessada — vítima ou representante legal, que propõe a suspensão condicional do processo, porque não deferi-la, se ela, com exclusividade, cabe o exercício da ação penal?

A única hipótese (afora os requisitos legais pertinentes) de inadmissibilidade para a concretização do instituto, seria, ao nosso ver, a própria negativa da parte adversa, no caso, o réu. Ora, se o réu entende que culpa alguma lhe cabe no evento delituoso, não há como se lhe possa coagir a aceitar algo (a suspensão) que, em última instância, constitui uma obrigação processual, não obstante tenha sido denunciado pelo órgão ministerial em face de uma suspeita de crime.

Doutro modo, pode ocorrer que o (a) querelante, não obstante estarem presentes os requisitos legais para o oferecimento da proposta de suspensão condicional do processo, omita-se propositalmente ou, até, expressamente venha a se posicionar contrariamente se instado(a) judicialmente. O que fazer neste caso? Entendemos que em hipóteses tais, deve prevalecer os fins colimados pela edição da nova lei (despenalização, nova dimensão do direito penal punitivo, etc.) que, nesse caso, devem estar acima dos interesses particulares. Se, como se sabe, a intenção última da vítima no cenário jurídico da ação privada, é a obtenção de uma decisão judicial no crime para posterior ingresso da ação civil reparatória ( ação de indenização ou reparação ex-delicto), não se concebe possa ela desconhecer ou mesmo negar os objetivos preconizados pela nova lei que, essencialmente, estimulam ou levam desde logo à uma transação ou reparação do (s) dano (s) sofridos pela parte ofendida. A Lei nº 9099/95, estabelece como um dos pressupostos legais à concessão da suspensão, justamente a obrigação do infrator reparar o dano causado (art.89, § 1º, I ) à vítima e, deste modo, efetuando ela desde logo a proposta naquele sentido, estará contribuindo para o seu próprio benefício (obtenção da reparação do dano ), evitando, destarte, uma longa demanda para o alcance do mesmo desiderato. Todavia, caso se negue a fazê-lo deverá o Ministério Público na condição de custos legis apresentar proposta de suspensão substitutiva do processo, a qual, então, poderá ser deferida pelo magistrado se conforme os preceitos legais. Entretanto, caso ainda, entenda o representante ministerial indevida ou incabível a proposta de suspensão no âmbito privado, restará ao magistrado, segundo entendemos, remeter os autos ao Procurador-Geral de Justiça por tratamento analógico ao art. 28 do Código de Processo Penal, isso sem contar a possibilidade jurídica de ingresso pelo acusado de Mandado de Segurança para ver atendido o seu direito subjetivo à suspensão mencionada.

Em suma, não havendo impedimento de ordem legal (Lei nº 9099/95), à suspensão condicional do processo e, principalmente, havendo atendimento às prescrições legais por parte do acusado, relativamente ao seu direito que deve ser considerado como público subjetivo, entendemos deva ser oportunizado à vítima a possibilidade de oferecer a suspensão condicional do processo na forma preconizada na lei nº 90999/95, por ser medida que consulta os altos interesses da justiça e, em especial, os das próprias vítimas.

Sobre o autor
Agamenon Bento do Amaral

advogado, mestre em Direito, procurador de Justiça aposentado, professor de Direito da UFSC

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

AMARAL, Agamenon Bento. Suspensão condicional do processo e a ação penal privada. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 2, n. 7, 16 fev. 1997. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/1084. Acesso em: 19 nov. 2024.

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