4 Responsabilidade por atos praticados na vida privada sem vinculação com as atribuições do cargo público
Luciano Pereira da Silva assentou, em parecer proferido na Administração Pública federal em 1958:
A prática de atos ilícitos, desde que sem qualquer ligação com a atividade funcional do servidor, em local diverso do da repartição, e fora do período normal de trabalho, exclui, de um modo geral, a responsabilidade administrativa. A sanção penal que do ato possa advir só influirá de modo mediato ou pela condenação à pena de reclusão por mais de dois anos ou de detenção por mais de quatro (Código Penal, art. 68, n. II), ou no caso de interdição temporária de profissão, cuja atividade seja imprescindível ao desempenho da função pública (Código Penal, art. 69, n. IV). Mas, em qualquer hipótese, não há processo administrativo a ser instaurado, com fundamento no art. 217 do Estatuto dos Funcionários. No exemplo formulado pela entidade consulente, não haveria procedimento administrativo a intentar, embora a condenação criminal, se viesse a ocorrer, pudesse influir na situação funcional do acusado, se penas acessórias lhe fossem cominadas, nas hipóteses dos arts. 68, n. II, e 69, n. IV, do Código Penal. [23]
Decidiu o Tribunal de Justiça do Distrito Federal e Territórios que a prática de desvio de comportamento por policiais civis, cuja íntima motivação se referia a assunto de natureza particular (interesse amoroso), ocorrido fora do serviço, quando os agentes públicos não declinaram sequer a condição funcional quando dos acontecimentos, não corresponderia a uma infração disciplinar, pois que perpetrado ato estranho à função policial, incompatível com o tipo disciplinar de abuso da função policial, motivo da anulação da pena demissória por falta de justa causa para a punição. [24]
O Tribunal Regional Federal da 1ª Região julgou, no mesmo diapasão, que fatos da vida privada, ocorridos em uma partida de futebol, sem qualquer relação ou repercussão no exercício da função pública, não autorizavam a abertura de sindicância ou processo administrativo. [25]
Fábio Medina Osório aponta:
É certo, no entanto, que não se pode esquecer que os agentes públicos estão submetidos a um regime jurídico de direito público, mais severo e rigoroso que outros. Trata-se de um regime estatutário, em que, naturalmente, a vida privada desses funcionários se reduz consideravelmente, em medidas variáveis. Daí que haja um desaparecimento da vida privada dos agentes públicos, todavia, vai uma longa distância, até mesmo porque isso é inviável. Por tal razão, a improbidade não se identifica com a mera imoralidade, mas requer, isto sim, uma imoralidade qualificada pelo direito administrativo. [...] Os agentes públicos gozam de direitos fundamentais, entre os quais está, é óbvio, o direito à intimidade, à privacidade, ao desenvolvimento livre de seus privados estilos de vida e personalidades. Em todo caso, os agentes públicos têm, sem lugar a dúvidas, espaços privados nos quais podem praticar atos imorais, desde que esses atos não transcendam os estreitos limites da ética privada, não afetem bens jurídicos de terceiros. Os direitos humanos, fundamentais, do homem e do cidadão, protegem o indivíduo contra atuações abusivas, ilícitas, desnecessárias, do Estado. [...] É certo que determinadas condutas ilícitas, praticadas por agentes públicos em suas vidas privadas, não têm por que integrar necessariamente o núcleo da falta de probidade administrativa. A proporcionalidade exige que se analisem as condutas sob perspectivas distintas, valoradas gradualmente a partir da idéia de que existem múltiplos mecanismos institucionais de reação contra os atos ilícitos." [26]
Não obstante, o Tribunal de Justiça do Distrito Federal e Territórios decidiu, em sentido diverso, que "o comportamento irregular por parte de policial, ainda que verificada esta situação ao agir como cidadão comum, não obsta a abertura de sindicância, porque tal não o eximiria de zelar pela imagem de sua instituição, no seu habitual proceder." [27]
Por causa dessas ponderações, o mais apurado bom-senso deve nortear a aferição da quebra do decoro funcional e do comprometimento moral referente às atribuições funcionais próprias do cargo ocupado pelo servidor com desvio de conduta alheia à função pública.
Se um servidor, ocupante de cargo de bibliotecário, cumpre pena criminal alternativa, por causar lesões corporais leves em vizinho, após desentendimento voltado por divergências próprias da gestão financeira do condomínio do edifício, não haverá repercussão funcional dessa punição, o que poderia ser diferente no caso de um policial, condenado por crime comum de tortura, a qual, inclusive, acerreta a perda do cargo como efeito acessório da condenação pelo juízo penal.
5. Considerações finais
É ou não caso de se considerar gravemente ofendida a conduta funcional esperada do titular daquele cargo público específico? Essa deve ser a indagação prévia ao juízo em torno da existência de responsabilidade disciplinar por atos alheios à função pública.
É a ofensa à moralidade profissional, a indignidade estritamente associada às atribuições funcionais, que deve ser considerada para ensejar juízo reprobatório implicante de responsabilidade administrativa, não a violação de comportamento referente à qualidade de pai, tutor, marido, condômino, no que tange à vida íntima, privada, às relações sociais reservadas do funcionário.
A responsabilidade disciplinar deve ser associada à incontinência de conduta funcional ou ao ato da vida privada, cujo cometimento torne incompatível o desempenho das atribuições administrativas pelo servidor desregrado.
Não há ensejo, porém, para elastecer o alcance das punições disciplinares para fatos da vida privada ou da intimidade, que devem ter seu âmbito próprio de repressão, com conseqüências cíveis, comerciais, familiares, sociais, desaprovação moral contra o servidor, todavia sem repercussão na via administrativa.
Cumpre perquirir: a prática desse procedimento habitual ou mesmo isolado inviabilizou por completo a possibilidade de o servidor exercer suas atribuições funcionais, comprometidas em sua credibilidade e honorabilidade de forma sobremodo grave, a ponto de se exigir a expulsão do acusado do serviço público?
Há processos cíveis de indenização de danos morais e materiais, juízos de família, mesmo processos criminais, afora a censura social, de conteúdo moral, contra a atitude reprovável da vida privada, todavia não se deve trazer para a via administrativa comportamento alheio inteiramente às funções oficiais e que não revele direto comprometimento da dignidade do cargo.
Notas
01 COSTA, José Armando da. Direito administrativo disciplinar. Brasília: Brasília Jurídica, 2004, p. 201.
02 OSÓRIO, Fábio Medina. Teoria da Improbidade Administrativa. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2007, p. 74.
03 Obra citada, p. 81
04 AMS 1998.34.00.025150-5/DF, relatora a Desembargadora Federal Selene Maria de Almeida, 5ª Turma, DJ de 27.10.2005, p. 71, decisão de 28.09.2005.
05 WALINE, M. Droit administratif. 8ª ed., Paris: Éditions Sirey, p. 803.
06 GUICHARD-AYOUB, Éliane. La fonction publique. Paris: Masson, 1975, p. 257.
07 JÚNIOR, José Cretella. Prática de processo administrativo. 3ª. ed. rev. e atual., São Paulo: Revista dos Tribunais, 1999, p. 84.
08 COSTA, José Armando da. Teoria e prática do direito disciplinar. Rio de Janeiro: Forense, 1981, p.2.
09 APC 20010150057360, acórdão n. 159977, julgamento de 18.02.2002, 4ª Turma Cível, relator o Desembargador Sérgio Bittencourt, DJU de 18.09.2002, p. 46.
10 LUZ, Egberto Maia. LUZ, Egberto Maia. Direito Administrativo disciplinar: teoria e prática. 4ª. ed. rev. atual. e ampl., Bauru: Edipro, 2002, p. 256.
11 OSÓRIO, Fábio Medina. Teoria da Improbidade Administrativa. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2007, p. 285, 87.
12 CARVALHO, Edgar de. Direitos e deveres do funcionário da Prefeitura do Distrito Federal. Rio de Janeiro e São Paulo: Freitas Bastos, 1957, p. 136.
13 CAETANO, Marcelo. Manual de direito administrativo. 10ª.ed., Coimbra: Almedina, vol. I e II., p. 751.
14 OSÓRIO, Fábio Medina. Teoria da Improbidade Administrativa. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2007, p. 150.
15 MS 11035/DF, relatora a Ministra Laurita Vaz, 3ª Seção, Julgamento em 14/06/2006, DJ de 26.06.2006, p. 116
16 JÚNIOR, Carlos S. de Barros. Do poder disciplinar na administração pública. São Paulo: Revista dos Tribunais, 1972, p. 24.
17 Parecer AGU: GQ-153, Advogado-Geral da União: Geraldo Magela da Cruz Quintão, data do adoto: 25.06.1998, data do Aprovo: 25.06.1998, Processo 12100.008960/97-93, Ministério da Fazenda, Assunto: Aplicação de penalidade a servidor, Parecer AGU No. WM-5/98, Consultor da União: Wilson Teles de Macedo, data de Emissão: 19.02.1998.
18AC – Apelação Civel 135515, Processo: 9805279413-PB, 2ª Turma, DJ de 30.04.1999, p. 1011, relator o Desembargador federal Petrucio Ferreira, unânime.
19 RMS 16264/GO, 2003/0060165-4, relatora a Ministra Laurita Vaz, 5ª Turma, julgamento de 21.03.2006, DJ de 02.05.2006, p. 339.
20 DI PIETRO, Maria Sylvia Zanella. Direito administrativo. 17ª. ed., São Paulo: Jurídico Atlas, 2004, p. 526-527.
21 CAETANO, Marcelo. Princípios fundamentais do direito administrativo. Rio de Janeiro: Forense, 1977, p. 398.
22 OSÓRIO, Fábio Medina. Teoria da improbidade administrativa. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2007, p. 274.
23 SILVA. Luciano Pereira da. Questões jurídicas em processos administrativos: pareceres (2ª série). Ministério da Agricultura: Rio de Janeiro, 1942, vols. I e II, p. 47-49, pareceres (2ª série).
24 Mandado de Segurança 482795/DF, registro do acórdão n. 80968, julgamento de 17.10.1995, Conselho Especial, relator o Desembargador Carlos Augusto Faria, DJU de 18.12.1995, p. 19.261, seção 3.
25 AMS 199901000619300, Processo: 199901000619300-MT, 2ª Turma, DJ de 31.03.2005, p. 44, relator o Desembargador federal Flávio Dino De Castro e Costa (convocado).
26 OSÓRIO, Fábio Medina. Teoria da Improbidade Administrativa. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2007, p. 87.
27 APC 3325394/DF, registro do acórdão n. 78059, data de julgamento de 12.12.1994, 5ª Turma Cível, relator o Desembargador Romão C. Oliveira e relator designado o Desembargador Dácio Vieira, DJU de 23.08.1995, p. 11.702.