1 CONSIDERAÇÕES INICIAIS
É cediço que o ordenamento jurídico pátrio confere à pessoa jurídica personalidade distinta das dos seus integrantes, permitindo que aquele sujeito de direito atue autonomamente no âmbito das relações jurídicas, o que estimula a iniciativa privada e contribui para o desenvolvimento econômico e social de toda a sociedade.
Ocorre que tem se verificado, com considerável freqüência, a utilização da pessoa jurídica para fins diversos daqueles vislumbrados pelo sistema jurídico quando da criação do instituto. Os indivíduos vêm se utilizando da autonomia patrimonial atribuída a esse ente coletivo para praticar fraudes e abusos de direito, em detrimento de direitos de terceiros.
Em reação a esse desvirtuamento da função da pessoa jurídica, surgiu, na jurisprudência estrangeira, principalmente norte-americana e inglesa, a disregrad doctrine ou disregard of legal enity, visando impedir a fraude ou abuso através da manipulação indevida da personalidade jurídica autônoma da pessoa jurídica. Essa teoria teve plena aceitação nos demais ordenamentos jurídicos, difundindo-se para diversos países, inclusive para o Brasil.
O objetivo principal dessa teoria é coibir e reprimir a prática de fraude ou abuso de direito perpetrados pelos sócios da pessoa jurídica, sob o manto protetor da autonomia patrimonial desta. Nesse sentido, uma vez constatado o mau uso da personalidade jurídica, autoriza-se o juiz a desconsiderar, diante do caso concreto, a separação patrimonial existente entre a pessoa jurídica e seus membros, a fim de estender a esses a responsabilidade pelo adimplemento das obrigações formalmente imputadas ao ente coletivo.
No Brasil, essa teoria foi denominada de desconsideração da personalidade jurídica. A desconsideração foi introduzida pelo doutrinador Rubens Requião, sendo posteriormente absorvida pelos tribunais pátrios e contemplada na legislação.
Inicialmente, a teoria foi consagrada por diversas legislações específicas, a exemplo da Lei n°. 8.078/90 (Código de Defesa do Consumidor), da Lei n°. 8.884/94 (Lei sobre a preservação e a repressão às infrações contra a ordem econômica) e a Lei n°. 9.605/98 (Lei sobre a responsabilidade por lesões ao meio ambiente). Com a promulgação do Novo Código Civil (Lei n°. 10.406/2002), houve a consolidação, em seu art. 50, da desconsideração da personalidade jurídica como regra geral de conduta, a ser aplicada não só no âmbito civil, mas a todas as relações jurídicas privadas.
Contudo, apesar da novel legislação civil estabelecer diretrizes de cunho processual que devem orientar a forma de aplicação da desconsideração, essas não foram suficientes para estabelecer com a clareza necessária o procedimento que deve ser observado.
Assim, em virtude da ausência de uma legislação que discipline o procedimento a ser utilizado para sua aplicação, verificou-se a formação de diversos entendimentos doutrinários e jurisprudenciais a respeito do tema, o que vem despertando muitas controvérsias.
Neste contexto, percebe-se ainda que muitos magistrados continuam fundamentando suas decisões em interpretações anteriores a promulgação do Novo Código Civil, ignorando as determinações contidas no seu art. 50 e suas influências no processo de desconsideração.
Dessa forma, hodiernamente, presencia-se a aplicação desenfreada e desordenada da desconsideração da personalidade jurídica, de forma totalmente desvinculada das bases jurídicas estabelecidas, o que vem provocando a fragilização do instituto, muitas vezes confundido com um simples meio de satisfação de créditos e combate à inadimplência generalizada da pessoa jurídica.
As decisões judiciais são oscilantes, não apresentando, assim, um consenso acerca da forma de aplicação da superação da autonomia patrimonial, o que gera grande insegurança processual para as partes. A situação se torna ainda mais grave quando constatamos a aplicação da desconsideração da personalidade jurídica em flagrante inobservância as normas e princípios expressamente solidificados na Carta Magna e as garantias processuais consagradas no ordenamento jurídico pátrio, a fim de priorizar a celeridade e a economia processuais.
A excepcionalidade e a cautela típicas da aplicação da desconsideração da personalidade jurídica têm sido simplesmente ignoradas pela prática jurídica, que vem superando o principio da autonomia patrimonial através de um simples despacho no processo de execução, sem sequer haver a demonstração cabal das circunstâncias legitimadoras da desconsideração estabelecidas no direito material.
Posto isto, é possível perceber a importância de estudar a desconsideração da personalidade jurídica e os aspectos processuais atinentes à sua aplicação, tendo em vista tratar-se de uma teoria de interesse social, que visa combater condutas abusivas e fraudulentas praticadas por meio da manipulação da autonomia patrimonial da pessoa jurídica, em detrimento dos direitos de terceiros de boa-fé, e que não pode ser desvirtuada pela sua aplicação de forma abusiva.
Ademais, não se pode olvidar dos efeitos desastrosos que a aplicação desordenada da desconsideração pode ter sobre a economia do país, tendo em vista que ocasiona o aumento demasiado dos riscos de qualquer empreendimento, o que reprime a iniciativa privada ou acaba provocando a elevação dos preços para o consumidor.
Logo, a discussão a respeito deste tema é relevante para consolidar elementos que orientem a atividade dos juristas, permitindo a justa e adequada aplicação da desconsideração da personalidade jurídica, coibindo os abusos identificados e a sua utilização de forma flagrantemente inconstitucional e ilegal.
Cumpre ressaltar que o presente trabalho tem por objeto a análise das questões controvertidas verificadas na aplicação da desconsideração da personalidade jurídica no âmbito do Direito Processual Civil Brasileiro, de acordo com os moldes em que foi contemplada no Código Civil de 2002.
Por fim, oportuno frisar que o trabalho científico que se pretende desenvolver não ambiciona exaurir todas as questões processuais polêmicas que envolvem a aplicação da desconsideração da personalidade jurídica, até mesmo porque seria impossível em face da mutabilidade constante do ordenamento jurídico pátrio.
2 TEORIA DA DESCONSIDERAÇÃO DA PERSONALIDADE JURÍDICA
2.1 CONCEITO
A desconsideração da personalidade jurídica é um remédio jurídico, de origem jurisprudencial, criado com o fito de impedir e reprimir a prática de fraude ou abuso de direito através da manipulação indevida da pessoa jurídica, pelos sócios ou administradores da sociedade. Trata-se, assim, de um mecanismo que permite responsabilizar os sujeitos que compõem a pessoa jurídica, sem, contudo, prejudicá-la, mas sim a aperfeiçoando na medida em que inibe a sua utilização de forma contrária aos fins previstos pelo sistema jurídico quando da sua instituição.
Marçal Justen Filho apresenta brilhante definição para a desconsideração da personalidade jurídica: "É a ignorância, para casos concretos e sem retirar a validade de ato jurídico especifico, dos efeitos da personificação jurídica validamente reconhecida a uma ou mais sociedade, a fim de evitar um resultado incompatível com a função da pessoa jurídica". [01]
No mesmo sentido, leciona Genacéia da Silva Alberton: "A desconsideração é resultado de uma construção jurisprudencial, correspondendo à técnica de suspensão da eficácia da pessoa jurídica no caso concreto quando verificado que a mesma, em fraude à lei ou por abuso de direito, foi desviada da função para a qual foi criada". [02]
A desconsideração implica, portanto, a relativização do conceito de pessoa jurídica e dos efeitos decorrentes da personalidade jurídica que lhe foi atribuída, especialmente a autonomia patrimonial, para permitir a responsabilização dos sócios por atos abusivos e fraudulentos perpetrados sob o manto protetor da separação existente entre o patrimônio da sociedade e os dos seus sócios. Contudo, trata-se de uma suspensão temporária da eficácia do ato constitutivo da pessoa jurídica, incidente apenas em relação ao ato que foi praticado com abuso do direito à personificação societária.
Dessa forma, é possível afirmar que a desconsideração corresponde à ineficácia relativa e temporária do ato constitutivo da sociedade, ou seja, este não produzirá efeitos apenas em face do caso concreto em que se verificou o desvio de função, a fim de atingir os sócios e responsabilizá-los pela fraude ou abuso cometido. Sendo assim, a pessoa jurídica, por força do principio da continuidade, permanece eficaz, podendo continuar a exercer normalmente as suas atividades.
Na desconsideração da personalidade jurídica, então, não se tem a invalidade do ato constitutivo da sociedade, pois, apesar de haver o uso inadequado ou lesivo da pessoa jurídica, sua constituição preenche todos os pressupostos de validade previstos em Lei. Vale ressaltar, inclusive, que a validade do ato constitutivo da pessoa jurídica, isto é, a formação da pessoa jurídica e a aquisição da personalidade com a observância das formalidades exigidas, é um dos pressupostos essenciais para a aplicação da desconsideração.
Frise-se que a desconsideração da personalidade jurídica não visa anular, destruir a pessoa jurídica, mas adequá-la aos fins legítimos para os quais foi concebida, impedindo que constitua um simples instrumento para a prática de fraude e abuso de direito.
Nesse sentido, leciona Alexandre Couto Silva:
A desconsideração da personalidade jurídica não busca a anulação da personalidade jurídica em toda a sua extensão, mas apenas a declaração de sua ineficácia para determinado ato. Também não visa a destruir o princípio da separação da personalidade jurídica da sociedade da dos sócios, funcionando como um reforço ao instituto da pessoa jurídica, atingindo apenas o episódio sem atingir a validade do ato constitutivo da sociedade. [03]
É importante deixar claro que, embora o sistema jurídico consagre a desconsideração, a regra é o respeito ao princípio da separação patrimonial entre a pessoa jurídica e os seus membros, pois esta tem um papel extremamente relevante para o progresso econômico, social e cultural de toda a coletividade.
Sendo assim, a superação da autonomia patrimonial da pessoa jurídica deve ser aplicada excepcionalmente, quando devidamente comprovado o desvio da função social que foi atribuída pelo Estado à pessoa jurídica.
Ressaltando a excepcionalidade da aplicação desta teoria, pontua Heleno Taveira Tôrres:
A desconsideração da personalidade jurídica é instrumento que somente poderá ser usado em condições excepcionais, quando presentes seus requisitos, segundo provas muito evidentes, sob pena de fazer dos tipos societários conceitos relativos e desprovidos de qualquer segurança jurídica, quanto aos critérios que os guiam, como separação patrimonial, responsabilidade etc. [04]
Percebe-se, dessa forma, que a distinção entre a personalidade jurídica da pessoa jurídica e as personalidades dos seus sócios deixa de ser um dogma absoluto, admitindo sua relativização quando for utilizada para fins ilegítimos.
Verifica-se, pelo exposto, a importância da teoria da desconsideração da personalidade jurídica, uma vez que o caráter excepcional e temporário desta medida permite reprimir os desvios de função verificados na atuação concreta da pessoa jurídica, bem como a continuidade das atividades regulares desenvolvidas por esta.
2.2 NATUREZA JURÍDICA
A doutrina entende que a desconsideração da personalidade jurídica ostenta a natureza de declaração de ineficácia relativa da pessoa jurídica, ou, nas palavras de Fábio Ulhoa Coelho, "a sua ineficácia episódica" [05]. A sua aplicação não implica a alteração da estrutura da pessoa jurídica, nem sua desconstituição.
Nesse diapasão, leciona Rubens Requião:
"disregard doctrine não visa anular a personalidade jurídica, mas somente objetiva desconsiderar, no caso concreto, dentro de seus limites, a pessoa jurídica, em relação às pessoas ou bens que atrás dela se escondem. É o caso da declaração de ineficácia especial da personalidade jurídica para determinados efeitos, prosseguindo, todavia, a mesma incólume para seus outros fins legítimos". [06]
Dessa forma, pode-se concluir que a desconsideração da pessoa jurídica é um instrumento que permite, declarando a ineficácia temporária da personalidade jurídica atribuída ao ente coletivo, combater atos ilegais ou abusivos praticados por seus sócios ou administradores sob o manto da separação patrimonial existente entre a pessoa jurídica e seus sócios.
2.3 DISTINÇÕES ENTRE DESCONSIDERAÇÃO, DESPERSONALIZAÇÃO E RESPONSABILIDADE DIRETA DOS SÓCIOS OU ADMINISTRADORES.
A desconsideração da pessoa jurídica consiste na suspensão temporária da eficácia da personalidade jurídica da sociedade no caso concreto em que se verificou a prática de fraude ou abuso de direito, através da manipulação indevida da pessoa jurídica, para atingir os sócios que nela incorreram e responsabilizá-los pelo cumprimento das obrigações sociais. Ressalte-se que a validade do ato constitutivo da pessoa jurídica é preservada, podendo esta continuar a exercer regularmente suas atividades.
Situação totalmente diversa verifica-se no caso da despersonalização da pessoa jurídica, que corresponde a extinção da personalidade jurídica, de modo que o ente coletivo deixa de existir como sujeito de direito autônomo, em razão da ausência das condições necessárias a sua constituição ou da autorização para seu funcionamento. Fábio Konder Comparato apresenta uma lição bem elucidativa a respeito desta distinção:
Importa, no entanto, distinguir entre despersonalização e desconsideração (relativa) da personalidade jurídica. Na primeira, a pessoa coletiva desaparece como sujeito autônomo, em razão da falta original ou superveniente das suas condições de existência, como, por exemplo, a invalidade do contrato social ou a dissolução da sociedade. Na segunda, subsiste o princípio da autonomia subjetiva da pessoa coletiva, distinta da pessoa de seus sócios ou componentes; mas essa distinção é afastada, provisoriamente e tão-só para o caso concreto. [07]
Alguns doutrinadores, no entanto, costumam utilizar o termo "despersonalização" para referir-se a desconsideração dos efeitos da personalidade jurídica da sociedade, o que, conforme já explicado, constitui uma impropriedade técnica.
Outro ponto relevante que se faz necessário destacar é a diferença entre a desconsideração da pessoa jurídica e os casos de responsabilidade direta dos sócios ou administradores.
No caso da responsabilização direta dos sócios ou administradores por ato praticado em excesso de poder, em desrespeito ao contrato ou estatuto social, ou à Lei, não é necessário desconsiderar a pessoa jurídica, pois, nessas situações, o agente que praticou o ato o fez diretamente, sem ocultar-se sobre a máscara da pessoa jurídica, razão pela qual responde por ato ilícito próprio. Como a autonomia patrimonial da pessoa jurídica não constitui óbice para a responsabilização direta do sócio, a sua personalidade jurídica é preservada.
Nesse sentido, oportuno registrar importante lição de Fábio Ulhoa Coelho:
A teoria da desconsideração, como visto, tem pertinência apenas quando a responsabilidade não pode ser, em princípio, diretamente imputada ao sócio, controlador ou representante legal da pessoa jurídica. Se a imputação pode ser direta, se a existência da pessoa jurídica não é obstáculo à responsabilização de quem quer que seja, não há porque cogitar do superamento da sua autonomia. E quando alguém, na qualidade de sócio ou representante legal da pessoa jurídica, provoca danos a terceiros, inclusive consumidores, em virtude de comportamento ilícito, responde pela indenização correspondente. Nesse caso, no entanto, estará respondendo por obrigação pessoal, decorrente de ato ilícito em que incorreu. [08]
Observe-se, ainda, a preleção de Humberto Theodoro Júnior a respeito do tema:
Costuma-se confundir a responsabilidade pessoal do sócio por obrigação da sociedade com o fenômeno da desconsideração da personalidade jurídica. São, no entanto, duas situações jurídicas bem distintas.
Na verdade, não se pode falar em desconsideração da personalidade jurídica, quando pela lei já existe uma previsão expressa de responsabilidade direta do sócio. Em tal caso a obrigação é originariamente do sócio, mesmo que tenha praticado o ato na gestão social. A teoria da disregard não foi concebida visando a esse tipo de responsabilidade solidária ou direta, mas para aqueles casos em que a pessoa jurídica se apresenta como um obstáculo a ocultar os verdadeiros sujeitos do ato fraudulentamente praticado em nome da sociedade, mas em proveito pessoal do sócio. [09]
Dessa forma, percebe-se que não só nos casos em que o sócio responde por ato ilícito próprio, mas também nos casos em que a própria lei estabelece expressamente a responsabilidade solidária ou subsidiária do sócio pelas obrigações da sociedade, não há de se falar em desconsideração da personalidade jurídica, pois, ainda que considerada a autonomia patrimonial da pessoa jurídica, é possível imputar diretamente ao sócio a responsabilidade pelo cumprimento da obrigação.
É o caso, por exemplo, da sociedade em nome coletivo (artigo 1.039 do Código Civil) e da sociedade simples (artigo 1.023 do Código Civil), nas quais os sócios são responsáveis pelo cumprimento das obrigações sociais em virtude do regime estabelecido pela Lei para o tipo de sociedade que integram.
Posto isto, é relevante frisar que não se deve confundir a desconsideração da personalidade jurídica com as hipóteses de responsabilidade direta dos sócios, pois, nesses casos, não há que se cogitar da manipulação indevida da autonomia da pessoa jurídica, para responsabilizar o sócio, ainda que o ato que ensejou a sua responsabilidade tenha sido praticado no desempenho de atividade relacionada à pessoa jurídica.
2.4 DESCONSIDERAÇÃO INVERSA
A desconsideração inversa possuiu o mesmo fundamento jurídico da desconsideração da personalidade jurídica, qual seja coibir fraudes ou abusos de direito praticados através da manipulação indevida da autonomia patrimonial da pessoa jurídica.
Contudo, enquanto a desconsideração da personalidade jurídica afasta a separação patrimonial existente entre a pessoa jurídica e os sócios, para atingir os bens pessoais destes e vinculá-los ao cumprimento das obrigações formalmente imputadas à sociedade; a desconsideração inversa visa alcançar bens da sociedade correspondentes à participação societária do sócio, a fim de que respondam pelas obrigações deste.
Ana Caroline Santos Ceolin apresenta a seguinte definição: "Denomina-se ‘desconsideração inversa’ o instrumento jurídico que permite prescindir da personalidade e da autonomia patrimonial da pessoa jurídica, para responsabilizá-la por obrigação pessoal do sócio". [10]
Tem-se, então, o inverso: aplica-se a suspensão temporária do ato constitutivo da pessoa jurídica, para, responsabilizando a sociedade por obrigações do sócio, alcançar o patrimônio deste, que foi fraudulentamente transferido para a pessoa jurídica, no intuito de burlar o cumprimento de obrigações assumidas junto a terceiros de boa-fé.
A incidência da desconsideração inversa verifica-se, geralmente, quando o sócio, a fim de evitar que os seus credores alcancem seu patrimônio pessoal, transfere a propriedade dos bens que o compõe para a pessoa jurídica da qual faz parte, utilizando-a como escudo de proteção. Ressalte-se que a ilicitude do ato não está na simples transferência, mas sim no intuito do sócio de lesar direito de terceiros.
A este respeito leciona Fabio Ulhoa Coelho:
A fraude que a desconsideração invertida coíbe é, basicamente, o desvio de bens. O devedor transfere seus bens para a pessoa jurídica sobre a qual detém absoluto controle. Desse modo, continua a usufruí-los, apesar de não serem de sua propriedade, mas da pessoa jurídica. Os seus credores, em princípio, não podem responsabilizá-los executando tais bens. [11]
Assim, a desconsideração inversa visa coibir a manipulação da pessoa jurídica pelo sócio para prejudicar o direito de seus credores. Esse tipo de desconsideração tem sido amplamente utilizado pelos juízes no âmbito do direito de família, para impedir, por exemplo, que um cônjuge empresário consiga livrar determinados bens da partilha na separação judicial, ao registrá-los em nome da pessoa jurídica sob seu controle. [12]
Sobre a aplicação da desconsideração em sentido inverso no direito de família, discorre Rolf Madaleno, citado por Fredie Didier Jr. e Cristiano Chaves:
É larga e producente sua aplicação no processo familial, principalmente, frente à diuturna constatação nas disputas matrimoniais, do cônjuge empresário esconder-se sob as vestes da sociedade, para a qual faz despejar, senão todo, ao menos o rol mais significativo dos bens comuns. É situação rotineira verificar nas relações nupciais e de concubinatos que os bens materiais comprados para uso dos esposos ou concubinos, como carros, telefones, móveis e mormente imóveis, dentre eles a própria alcova nupcial, encontrem-se registrados e adquiridos em nome de empresas de que participa um dos consortes ou conviventes. [13]
É relevante ressaltar que a desconsideração inversa está limitada ao valor do bem que foi transferido para a sociedade pelo sócio, no intuito de prejudicar terceiros de boa-fé, a fim de que não se prejudique os demais sócios que não tiveram qualquer interferência neste processo.
Há autores, contudo, que contestam a admissibilidade da desconsideração inversa no ordenamento jurídico nacional, afirmando que, neste caso, tem-se nada mais do que uma fraude contra credor praticada pelo sócio, que pode ser combatida através da ação pauliana ou revocatória [14] prevista nos artigos 158 a 165 do Código Civil.
Nesse sentido, posiciona-se Ana Caroline Santos Ceolin: "Verifica-se, portanto, que a inversão dos fundamentos da teoria da desconsideração tem sido defendida pela doutrina pátria, para ser empregada contra prática delituosa de que já se ocupa outro instrumento jurídico: a ação pauliana". [15]
Todavia, faz-se necessário esclarecer que o vício da fraude contra credores pressupõe o consilium fraudis (o conluio fraudulento; a má fé) e eventus damni (o prejuízo causado ao credor). Dessa forma, na hipótese ventilada, não é possível a configuração deste vício, vez que a pessoa jurídica não tem ciência da prática de fraude pelo sócio, não podendo ter participado do acordo malicioso.
2.5 PRESSUPOSTOS DA DESCONSIDERAÇÃO
A fixação dos pressupostos da desconsideração da personalidade jurídica é extremamente relevante, para evitar a sua aplicação desenfreada e abusiva, desvirtuando o próprio objetivo da teoria, qual seja o aperfeiçoamento da pessoa jurídica, através da coibição do seu uso para fins diversos daqueles vislumbrados pelo ordenamento jurídico quando da sua concepção. Ademais, a definição dos seus pressupostos evita que as relações sociais sejam maculadas por considerável insegurança jurídica.
A preocupação em identificar as circunstâncias que autorizam a desconsideração já foi esposada por diversos doutrinadores, dentre eles Marçal Justen Filho: "Não tem cabimento atribuir ao aplicador do direito a liberdade para desconsiderar, ao seu alvedrio, a personalidade jurídica societária. Especialmente em um sistema como o nosso, de tradição legalista, o resultado seria desastroso". [16]
Passa-se, então, a análise dos pressupostos elencados pela doutrina para a legítima aplicação da desconsideração.
2.5.1 Personalidade Jurídica. Abuso de direito e Fraude.
A teoria da desconsideração da personalidade jurídica, nos moldes em que foi originalmente concebida, requer para a sua aplicação a existência de desvio de função ocasionado por abuso de direito ou fraude praticado pelo sócio ou administrador da sociedade, através da manipulação da pessoa jurídica.
Antes de adentrarmos na análise do abuso de direito e fraude consumados por meio da utilização indevida da personificação societária, convém registrar que a desconsideração somente pode ser aplicada em relação a pessoas jurídicas validamente constituídas, ou seja, que tenham preenchido todos os requisitos legais para a sua formação e para a aquisição da personalidade jurídica.
Ademais, as pessoas jurídicas devem gozar de limitação de responsabilidade, pois, naquelas cujo regime legal já estabelece a responsabilidade ilimitada, os sócios já são responsáveis ilimitadamente pelas obrigações da sociedade, sem que seja necessário recorrer a desconsideração da personalidade jurídica. Dessa forma, a desconsideração somente é aplicada quando se trata de sociedades de responsabilidade limitada, quais sejam as sociedades limitadas e as sociedades anônimas.
A desconsideração não incide, portanto, sobre as entidades desprovidas de personalidade jurídica, chamadas de sociedades em comum (anteriormente conhecidas como sociedades de fato ou irregulares) e previstas nos artigos 986 e seguintes do Código Civil. Nestas sociedades, os sócios são diretamente responsáveis pelas obrigações que foram atribuídas a suposta pessoa jurídica, que nunca existiu juridicamente.
O abuso de direito legitimador da efetivação da desconsideração é o abuso do direito à personalização. Para a melhor compreensão deste abuso, convém tecer previamente algumas considerações acerca do fenômeno da funcionalização do Direito, que ocorreu a partir do século XIX. [17]
A funcionalização do Direito proporcionou uma alteração das concepções arraigadas na sociedade daquela época de direito objetivo e de direito subjetivo. Antes o exercício do direito subjetivo era totalmente livre, sem limites, sendo protegido pelo Direito, como manifestação da liberdade individual, contra ingerências indevidas de terceiros, principalmente do Estado.
Ocorre que houve uma modificação do papel do Estado no contexto sócio-econômico. Este passou a perseguir fins coletivos, visando primordialmente o bem-estar social. Nesse contexto, o direito objetivo tornou-se um instrumento para a consecução desses fins, havendo, então, uma mudança no objetivo do Direito, agora, "o que se busca é adequar a conduta humana à necessidade coletiva e obter uma melhoria das condições de convivência". [18]
Este processo de funcionalização do direito objetivo acarretou a atribuição de uma função social ao direito subjetivo, que deverá ser exercido pelo indivíduo dentro dos limites ditados por esta função. Nesse sentido, leciona Marçal Justen Filho:
[...] o direito subjetivo não mais é acatado como um fim em si mesmo (ou, em outros termos, como a serviço da vontade individual). A existência e a extensão do direito subjetivo passam a ser consideradas como instrumentais. São meios de realização de valores e interesses juridicamente assumidos.
O limite e a extensão do direito subjetivo tornam-se externos a ele (e a seu titular). Seus parâmetros são extrínsecos: a coletividade e os fins do Estado. [...]
Esta profunda alteração ideológica e política produziu o desaparecimento dos direitos subjetivos "absolutos" - ou seja, de direitos sem limites ou cujos limites se identificassem com a extensão da vontade individual. [19]
Uma vez conferida uma função social ao direito subjetivo, surgi a noção de abuso de direito, para identificar o exercício anômalo deste, ou seja, em dissonância com a finalidade imposta pelo Estado quando da sua atribuição ao indivíduo.
Nas palavras de Porcherot, citado por Inácio de Carvalho Neto [20], "abusa-se do seu direito quando, permanecendo nos seus limites, se visa a um fim diferente daquele que para ele teve em vista o legislador".
Ao dissertar sobre abuso de direito, Rubens Requião afirma que "o sujeito não exercitará seus direitos egoisticamente, mas tendo em vista a função deles, a finalidade social que objetivam. O ato, embora conforme a lei se for contrário a essa finalidade, é abusivo e, em conseqüência, atentatório ao direito". [21]
Pode-se perceber, portanto, que o direito à personificação societária, como todo e qualquer direito subjetivo, deve ser exercitado com respeito à função social que lhe foi previamente atribuída pelo Estado, vale dizer, como instrumento para o desenvolvimento econômico, social e cultural de toda a sociedade.
Diante disso, verificar-se que há abuso do direito à personalização, quando um grupo de indivíduos utiliza-se da faculdade conferida pelo Estado de constituir uma pessoa jurídica, com personalidade distinta das dos seus membros, para, com base na autonomia patrimonial do sujeito de direito coletivo constituído, atingir fins diversos daqueles previstos pelo ordenamento jurídico para este.
Um caso típico de abuso do direito à personalização ocorre quando dois ou mais indivíduos alienam seus negócios a um terceiro e, no contrato, assumem o compromisso de não exercer atividade econômica concorrente; contudo, para burlar esta limitação contratual, os alienantes constituem uma sociedade e, com base na separação existente entre a pessoa jurídica e seus sócios, passam a desenvolver atividade econômica que lhes era vedada. É evidente, aqui, o desvio de função da pessoa jurídica por meio do abuso de direito.
A fraude, por outro lado, corresponde a prática de atos, com o propósito de prejudicar direitos creditórios de terceiros ou de burlar à lei, em benefício próprio ou de outrem. Por exemplo, quando um indivíduo constitui uma sociedade com seus filhos para adquirir um bem pertencente a seu pai, sem precisar pedir o consentimento de seus outros irmãos, em evidente afronta ao que estabelece o artigo 496 do Código Civil [22].
Rubens Requião apresenta a seguinte definição de fraude: "considera-se ato fraudulento, como o conceituam os revisores do Projeto de Código de Obrigações, no artigo 67, o negócio jurídico tramado para prejudicar credores, em beneficio do declarante ou de terceiro". [23]
Acrescenta ainda o referido autor: "No abuso de direito não existe, propriamente, trama contra o direito de credor, mas surge do inadequado uso de um direito, mesmo que seja estranho ao agente o propósito de prejudicar o direito de outrem". [24]
Posto isso, pode-se inferir que a fraude e o abuso de direito podem possuir o mesmo objetivo - a obtenção de vantagens ilícitas -, todavia, apresentam uma distinção, tendo em vista que, enquanto a fraude é utilizada com o objetivo claro de prejudicar terceiro, o abuso é o exercício irregular de um direito, ainda que não haja a intenção de prejudicar alguém especificamente.
Há de se ressaltar, ainda, que não é qualquer fraude ou abuso de direito que enseja a desconsideração da pessoa jurídica, mas somente aquele relacionado ao desvio de função na atuação concreta da sociedade, uma vez que a desconsideração é uma forma de combater um vício funcional.
Explicados os pressupostos da desconsideração da personalidade jurídica de acordo com os contornos originais em que foi concebida, é oportuno analisar as teorias desenvolvidas no direito brasileiro que se propõem a estabelecer quais são os pressupostos da aplicação da desconsideração da personalidade jurídica.
2.5.2 Teoria Subjetiva e Teoria Objetiva
A teoria da desconsideração da personalidade jurídica possui duas concepções: uma subjetiva e outra objetiva.
A concepção subjetiva defende que a aplicação da desconsideração da personalidade jurídica depende da intenção fraudulenta ou abusiva do sócio ou administrador da sociedade na utilização da pessoa jurídica. Ou seja, a desconsideração tem como fundamento a existência de um vício funcional, de um defeito no uso da pessoa jurídica.
Esta concepção, contudo, é alvo de críticas, sob o argumento de que não abarca todas as hipóteses de desconsideração.
De outro lado, a formulação objetiva da teoria, proposta por Fábio Konder Comparato, defende que o fundamento essencial da desconsideração é a existência de confusão patrimonial entre o sócio controlador e a sociedade.
Sustenta que, neste caso, não há como individualizar o patrimônio do sócio e o da sociedade, o que confronta diretamente com o princípio da autonomia patrimonial da pessoa jurídica. A pessoa jurídica, assim, torna-se mero instrumento da atividade individual do sócio, o que justifica a desconsideração da separação patrimonial, já que os próprios sócios, que são beneficiados por esta, não a respeitam.
Convém transcrever a lição dada por Comparato:
A confusão patrimonial entre controlador e sociedade controlada é, portanto, o critério fundamental para a desconsideração da personalidade jurídica externa corporis. E compreende-se, facilmente, que assim seja, pois a pessoa jurídica nada mais é, afinal, do que uma técnica de separação patrimonial. Se o controlador, que é o maior interessado na manutenção deste principio, descumpre-o na prática, não se vê bem porque os juízes haveriam de respeita-lo, transformando-o, destarte, numa regra puramente unilateral. [25]
Assim, quando se constata a confusão patrimonial, há uma presunção de existência de fraude na manipulação da pessoa jurídica, uma vez que a autonomia patrimonial, que decorre da atribuição de personalidade jurídica ao ente coletivo e que caracteriza a sua existência como sujeito autônomo e distinto dos seus integrantes, não é observada.
Esta teoria, todavia, é demasiadamente restritiva, tendo em vista que a confusão entre o patrimônio da sociedade e os dos sócios não é a única hipótese que enseja a desconsideração.
É importante frisar que a desconsideração é aplicável sempre que houver a utilização da pessoa jurídica em dissonância com a função social que lhe foi imposta pelo direito. Assim, é possível aplicar a desconsideração, mesmo que inexista confusão patrimonial, tendo em vista que, embora os bens da sociedade sejam distintos dos do sócio, pode-se verificar a ocorrência de desvio de função na utilização do ente coletivo.
Dessa forma, entende-se que não é possível aplicar somente a teoria objetiva da desconsideração, razão pela qual deve se conciliar as duas concepções, subjetiva e objetiva, a fim de abarcar as diversas formas de desvio de função da pessoa jurídica.
2.5.3 Teoria Maior e Teoria Menor
A teoria maior e a teoria menor da desconsideração da personalidade jurídica representam a grande controvérsia existente na doutrina nacional a respeito dos pressupostos da desconsideração, motivo pelo qual se faz necessário um exame aprofundado dessas teorias.
A teoria maior sustenta que a superação da autonomia patrimonial somente é possível quando cabalmente demonstrada a prática de fraude ou abuso de direito através da manipulação da estrutura formal da pessoa jurídica. Seu principal sistematizador foi Rolf Serick.
Para Fábio Ulhoa Coelho, "a teoria maior da desconsideração da personalidade jurídica não é uma teoria contrária à personalização das sociedades empresárias e à sua autonomia em relação aos sócios. Ao contrário, seu objetivo é preservar o instituto, coibindo práticas fraudulentas e abusivas que dele se utilizam". [26]
Já a teoria menor prescinde do atendimento de qualquer requisito para a efetivação da desconsideração da personalidade jurídica, sendo suficiente a insatisfação do crédito em razão da insolvabilidade ou da falência da sociedade, independentemente de haver uso irregular da pessoa jurídica. Ou seja, é suficiente para decretar a desconsideração e, retirando temporariamente a eficácia dos atos constitutivos da sociedade, responsabilizar os sócios pelas obrigações sociais, que haja insuficiência do patrimônio da sociedade para adimplir as obrigações por ela assumidas.
Enquanto a teoria maior visa garantir que a superação da autonomia patrimonial da sociedade somente ocorra quando comprovada a ocorrência de uma das circunstâncias legitimadoras, assegurando, dessa forma, a não banalização do instituto da pessoa jurídica, mas sim o seu aprimoramento, a teoria menor "deve ser vista como o questionamento da sua pertinência, enquanto instituto jurídico". [27]
É importante deixar claro que a ausência de patrimônio social para adimplir as obrigações da sociedade não é motivo legítimo para justificar a desconsideração, tendo em vista que qualquer atividade comercial hoje em dia está sujeita aos riscos e imprevistos do mercado financeiro. Assim, é possível que uma sociedade atue sempre de forma correta e consentânea aos ditames legais e seja vítima de insucessos, que determinem a sua falência, não havendo, portanto, qualquer desvio de finalidade que justifique a desconsideração.
Infelizmente, a teoria menor vem sendo adotada por grande parte dos órgãos judiciários, sem qualquer fundamento legal. Tal comportamento vem desvirtuando os fundamentos e o real objetivo da desconsideração da personalidade jurídica, além de fragilizar ainda mais o instituto jurídico da pessoa jurídica.
2.5.4 Ausência de patrimônio da sociedade como critério.
Por fim, para esgotar o tema dos pressupostos para a aplicação da desconsideração da personalidade jurídica, convém tratar da ausência de patrimônio da sociedade como critério ensejador da declaração da desconsideração.
Atualmente, tem se verificado que os tribunais e juízes vêm aplicando com considerável freqüência a superação da autonomia patrimonial da pessoa jurídica em face da simples constatação da inexistência de bens sociais para adimplir a obrigação assumida junto ao credor.
Ocorre que, como foi explicitado ao longo deste trabalho, a desconsideração somente se justifica quando houver desvio da função para a qual a pessoa jurídica foi concebida, podendo este desvio ser caracterizado pela fraude ou abuso de direito. Em virtude disso, a simples ausência de patrimônio da sociedade, por si só, não constitui motivo suficiente a ensejar o afastamento da autonomia patrimonial da pessoa jurídica e a conseqüente responsabilização dos sócios pelas dívidas sociais. Caso contrário, haveria a completa banalização do instituto da pessoa jurídica, que poderia ser ignorado sempre que houvesse prejuízo por parte do credor da sociedade.
A respeito do tema, consigna Gustavo Bandeira:
De fato, permitir a incidência da desconsideração da personalidade jurídica, tendo por fundamento apenas a falta de patrimônio, é romper com o principio da autonomia e pôr em cheque o próprio instituto da pessoa jurídica. Tal proceder é despido de qualquer fundamento teórico, seja porque não representa aplicação da teoria da desconsideração, na qual se diz fundamentar, seja porque não traz qualquer embasamento cientifico que justifique a medida, a não ser garantir a satisfação do credor, em flagrante contrariedade aos princípios sistematizadores da doutrina [...] [28]
No mesmo sentido, pronuncia-se Genacéia da Silva Alberton: "Ora, a impossibilidade de ressarcimento, por si só, não pode ser motivo para a desconsideração se o ato da sociedade não extrapolou o objeto social ou não teve como fim ocultar conduta ilícita ou abusiva". [29]
Dessa forma, é importante desmistificar a concepção equivocada hoje arraigada nos julgados nacionais de que a desconsideração é um simples mecanismo de combate à inadimplência da sociedade, uma vez que a inexistência de bens sociais para adimplir as dívidas da sociedade somente pode ensejar a desconsideração, se decorrente da manipulação indevida ou lesiva da pessoa jurídica. Caso não seja comprovado o desvio de função da pessoa jurídica, deve prevalecer a autonomia patrimonial desta.
2.6 ALCANCE SUBJETIVO
Outra questão relevante que não se deve olvidar refere-se ao alcance subjetivo dos efeitos da desconsideração da pessoa jurídica. Não há no ordenamento jurídico nacional norma que estabeleça expressamente a extensão da aplicabilidade da desconsideração, de forma que se deve recorrer a doutrina e a jurisprudência para preencher esta lacuna.
Há na doutrina entendimentos divergentes a este respeito, podendo se identificar quem defenda que a aplicação da desconsideração implica a responsabilização de todos os seus sócios, e quem sustente que a desconsideração somente pode alcançar os sócios responsáveis pelos atos abusivos ou fraudulentos que ensejaram a desconsideração.
A respeito deste tema, posiciona-se Gilberto Gomes Bruschi:
Salvo melhor juízo, entendemos que meras participações societárias, pouco representativas em relação ao capital social, sem poder de controle, sem poder de administração e sem que tenham participado dos atos considerados excessivos ou abusivos como fator determinante da desconsideração da personalidade jurídica, seus detentores, meros investidores, não podem ser alcançados e muito menos responsabilizados pelos atos de outrem. [30]
No mesmo sentido, a Jornada de Direito Civil promovida em 2002 pelo Centro de Estudos Judiciários do Conselho da Justiça Federal publicou o Enunciado nº. 07: "Só se aplica a desconsideração da personalidade jurídica quando houver a prática de ato irregular, e limitadamente, aos administradores ou sócios que nela hajam incorrido".
É se adotar tal posição, uma vez que se trata de regra basilar da responsabilidade civil que somente aquele que praticou o ato lesivo deve responder pelos danos dele decorrentes. Não se coaduna, portanto, com o senso de justiça a imputação de responsabilidade à quem não contribuiu diretamente para a prática do ato contrário à lei, como é o caso do sócio investidor e do sócio minoritário, que não tem poder decisório dentro da sociedade.
Assim, para aferir-se a responsabilidade do sócio pelas obrigações sociais, não basta analisar a existência da conduta ofensiva, do dano e do nexo da causalidade entre eles, é fundamental que se apure se o sócio teve culpa.
A favor desse posicionamento, também tem-se manifestado a jurisprudência pátria:
Execução fiscal - sociedade por quotas de responsabilidade limitada - penhora de bens de patrimônio de sócio que não exerceu função de direção - decreto-lei n. 3.708/19, art.16 e CTN, art. 135, III - Divergência jurisprudencial.
É impossível a penhora dos bens de sócio que jamais exerceu a gerência, a diretoria ou mesmo representasse a empresa Executada.
Há de ser utilizada a teoria da desconsideração da personalidade jurídica, prevalecendo o principio da responsabilidade subjetiva, e não a simples presunção.
Recurso conhecido, mas desprovido. [31]
Dessa forma, cabe ao juiz, em face do caso concreto, analisar quem são os verdadeiros responsáveis pelos atos abusivos ou fraudulentos que ensejaram a desconsideração, a fim de que somente estes respondam com seus patrimônios pelas obrigações da sociedade.