3. A DESCONSIDERAÇÃO NO DIREITO BRASILEIRO
3.1 EVOLUÇÃO
No ordenamento jurídico nacional, a introdução da teoria da desconsideração da personalidade jurídica ocorreu por meio de estudos doutrinários, sendo posteriormente absorvida pela jurisprudência e pelo direito positivo.
O precursor da difusão desta teoria no Brasil foi Rubens Requião, que, em 1969, proferiu brilhante conferência na Faculdade de Direito da Universidade Federal do Paraná sobre o tema, depois publicada na Revista dos Tribunais com o título "Abuso de direito e fraude através da personalidade jurídica". O autor desenvolveu seu estudo a partir da análise das obras de Rolf Serick, Pierrô Verrucoli e Maurice Wormser, responsáveis pela sistematização da teoria no Direito Estrangeiro.
Apesar de não existirem manifestações doutrinárias e legislativas acerca desta teoria, Requião sustentava a possibilidade de aplicação da desconsideração da personalidade jurídica no sistema jurídico nacional, para impedir a prática de fraude ou abuso através do uso da personalidade jurídica. Nas palavras do autor:
A disregard doctrine, como insiste professor germânico, aparece como algo mais do que um simples dispositivo do direito americano de sociedade. "É algo, diz ele, que aparece como conseqüência de uma expressão estrutural da sociedade". E, por isso, "em qualquer país em que se apresente a separação incisiva entre a pessoa jurídica e os membros que a compõem, se coloca o problema de verificar como se há de enfrentar aqueles casos em que essa radical separação conduz a resultados completamente injustos e contrários ao direito". [32]
Acrescenta ainda:
E assim, tanto nos Estados Unidos, na Alemanha ou no Brasil, é justo perguntar se o juiz, deparando-se com tais problemas, deve fechar os olhos ante o fato de que a pessoa jurídica é utilizada para fins contrários ao direito, ou se em semelhante hipótese deve prescindir da posição formal da personalidade jurídica e equiparar o sócio e a sociedade para evitar manobras fraudulentas. [33]
Dessa forma, Rubens Requião conclui que o juiz brasileiro está autorizado a desprezar a separação patrimonial existente entre a sociedade e seus sócios, quando verificada a prática de abuso de direito ou fraude por meio da manipulação indevida da personalidade jurídica. Contudo, ressalta que a desconsideração não visa anular a pessoa jurídica de forma definitiva, mas tão-somente declarar a ineficácia temporária dos efeitos da personalidade jurídica no caso concreto, prosseguindo posteriormente esta para fins legítimos.
A sistematização da teoria da desconsideração no direito nacional também contou com importante contribuição de J. Lamartine Correia de Oliveira, que publicou a obra "A dupla crise da pessoa jurídica".
A primeira manifestação legislativa nacional a respeito do tema ocorreu com a promulgação do Código de Defesa do Consumidor (Lei nº 8.078/90). Todavia, este diploma, ao tentar oferecer a máxima proteção do consumidor, acabou por ampliar demasiadamente o rol das circunstâncias legitimadoras da aplicação da desconsideração, a ponto de permitir que a personalidade societária seja ignorada sempre que constituir obstáculo ao ressarcimento do consumidor prejudicado. Ou seja, a simples existência de prejuízo patrimonial para o consumidor autoriza a desconsideração. Vejamos:
Art. 28. O juiz poderá desconsiderar a personalidade jurídica da sociedade quando, em detrimento do consumidor, houver abuso de direito, excesso de poder, infração da lei, fato ou ato ilícito ou violação dos estatutos ou contrato social. A desconsideração também será efetivada quando houver falência, estado de insolvência, encerramento ou inatividade da pessoa jurídica provocados por má administração.
§ 1° (Vetado).
§ 2° As sociedades integrantes dos grupos societários e as sociedades controladas, são subsidiariamente responsáveis pelas obrigações decorrentes deste código.
§ 3° As sociedades consorciadas são solidariamente responsáveis pelas obrigações decorrentes deste código.
§ 4° As sociedades coligadas só responderão por culpa.
§ 5° Também poderá ser desconsiderada a pessoa jurídica sempre que sua personalidade for, de alguma forma, obstáculo ao ressarcimento de prejuízos causados aos consumidores.
Pela exegese do mencionado artigo, percebe-se que esse diploma confunde a desconsideração da personalidade jurídica com institutos jurídicos semelhantes, tais como a teoria da aparência e a teoria ultra vires, incluindo dentro das hipóteses de cabimento da desconsideração a responsabilização em virtude da existência de ato ilícito próprio do sócio, de violação do contrato ou estatuto social, de má administração ou de excesso de poder.
Ocorre que, nesses casos, o que se tem, na verdade, é a responsabilização direta dos sócios ou administradores, sem que seja necessária a desconsideração da personalidade jurídica, tendo em vista que a separação patrimonial existente entre a pessoa jurídica e seus membros não constitui óbice para que a responsabilidade destes seja estabelecida.
Em face da amplitude do dispositivo consumerista, este artigo tornou-se alvo de diversas críticas, por afastar-se consideravelmente dos fundamentos originais da teoria da desconsideração.
Genacéia da Silva Alberton, em artigo sobre a desconsideração da pessoa jurídica no código do consumidor, leciona: "Entretanto, na leitura do art. 28 do Código do Consumidor, parece que a confusão quanto ao que se entenda por efetiva desconsideração da pessoa jurídica atingiu o novel instrumento legal. Ou, pelo menos, a desconsideração prevista no Código não está presa às amarras da ‘disregard of legal entity’" [34].
Acompanhando o posicionamento da citada autora, Luciano Amaro, numa análise mais detalhada do artigo 28 do CDC, assevera:
Quanto aos §§ 2° a 4°, a matéria é de ‘responsabilidade subsidiária ou solidária’ que a própria lei já determina, não sendo necessário que o Juiz desconsidere a empresa para poder fazer atuar aquela responsabilidade. [...] O enunciado do parágrafo [§ 5°] é tão genérico, abrangente, ilimitado, que, aplicado literalmente, dispensaria o caput do artigo e tornaria inócua a própria construção teórica da desconsideração, implicando derrogar (independentemente de qualquer abuso ou fraude) a limitação de responsabilidade dos sócios de toda e qualquer empresa fornecedora de bens ou serviços no mercado de consumo". [35]
Outros autores, no entanto, entendem que a consagração da teoria da desconsideração em norma fez com que esta ganhasse contornos próprios no Brasil, que deverão ser respeitados no que se refere às relações de consumo. [36]
É possível identificar na doutrina nacional, todavia, autores que defendem que o primeiro diploma legal que contemplou a desconsideração da personalidade jurídica no direito positivo brasileiro foi o Decreto-lei nº 5.452, de 1º de maio de 1943, comumente conhecido como Consolidação das Leis do Trabalho [37]. Para estes, o artigo 2º, § 2º, da CLT [38], excepcionando a autonomia patrimonial da pessoa jurídica, permite que os patrimônios de todas as pessoas jurídicas integrantes de um grupo econômico sejam invadidos para adimplir obrigações decorrentes de contratos de trabalhos celebrados entre uma das pessoas jurídicas do grupo e seus empregados. Entretanto, este entendimento revela-se equivocado na medida em que o retrocitado artigo tão-somente estabelece a responsabilidade solidária entre sociedades integrantes do mesmo grupo industrial, comercial ou de qualquer outra atividade econômica, independentemente da prática de qualquer conduta abusiva ou fraudulenta e da desconsideração da personalidade jurídica, para que esta responsabilidade se concretize.
Nesse sentido, esclarece Marlon Tomazzete [39]:
De imediato, há que se afastar o entendimento de que o art. 2º, § 2º, da CLT acolhe a desconsideração. Tal dispositivo excepciona a autonomia resultante da formação de grupos empresariais, determinando a solidariedade das várias integrantes do grupo, sem cogitar do abuso ou da fraude. Ora, não se trata de desconsideração, mas de simples solidariedade, por três motivos: ‘primeiro, porque não se verifica a ocorrência de nenhuma das hipóteses que justifica sua aplicação como fraude ou abuso; segundo, porque reconhece e afirma a existência de personalidades distintas; terceiro, porque se trata de responsabilidade civil com responsabilização solidária de sociedades pertencentes ao mesmo grupo.
Diante disso, não restam dúvidas de que o Código de Defesa do Consumidor foi o primeiro diploma legal a consagrar a desconsideração da personalidade jurídica.
Posteriormente, a teoria da superação da autonomia patrimonial da pessoa jurídica também foi consagrada na Lei nº. 8.884/94, que dispõe sobre a preservação e a repressão às infrações contra a ordem econômica:
Art. 18. A personalidade jurídica do responsável por infração da ordem econômica poderá ser desconsiderada quando houver da parte deste abuso de direito, excesso de poder, infração da lei, fato ou ato ilícito ou violação dos estatutos ou contrato social. A desconsideração também será efetivada quando houver falência, estado de insolvência, encerramento ou inatividade da pessoa jurídica provocados por má administração.
Percebe-se que a mencionada lei não introduziu inovações na disciplina da desconsideração da personalidade jurídica, limitando-se a reproduzir o artigo contido no Código do Consumidor.
A Lei nº. 9.605/98, que disciplina a responsabilidade por lesões ao meio ambiente, seguindo a disciplina contida no dispositivo consumerista, estabeleceu em seu art. 4º: "Poderá ser desconsiderada a pessoa jurídica sempre que sua personalidade for obstáculo ao ressarcimento de prejuízos causados à qualidade do meio ambiente".
Como visto, as supracitadas leis seguem os moldes estabelecidos pelo Código de Defesa do Consumidor para disciplinar a desconsideração, por isso, incorrem nos mesmos erros deste.
Há de se notar, ainda, que alguns autores tendem a afirmar que a desconsideração da personalidade jurídica encontra-se solidificada nos artigos 117 e 158 da Lei n°. 6.404/76 (Lei de Sociedades Anônimas) [40] e no art. 135 da Lei n°. 5.175/66 (Código Tributário Nacional) [41]. Todavia, o que de fato se verifica nestes dispositivos legais é a responsabilidade civil pessoal dos sócios ou administradores da sociedade, e não a possibilidade de aplicação da desconsideração, uma vez que nenhum deles requer que haja desvio da função da pessoa jurídica para a responsabilização dos sócios. [42]
Por fim, com a entrada em vigor do Novo Código Civil (Lei nº. 10.406/2002), houve a consolidação, em seu artigo 50, da desconsideração da personalidade jurídica como regra geral de conduta, a ser aplicada não só na área cível, mas em todas as relações jurídicas privadas. Saliente-se que o grande mérito deste diploma legal foi ter resgatado a desconsideração nos moldes como originalmente foi concebida, reafirmando o seu caráter de medida excepcional e a necessidade de comprovação cabal das circunstancias legitimadoras da sua aplicação.
Apesar de ser uma norma de Direito Material, o art. 50 do CC de 2002 traz, em seu bojo, algumas determinações de cunho processual acerca da forma como deve se efetivar a aplicação da desconsideração da personalidade jurídica no Direito Brasileiro. Todavia, a disciplina contida nesta previsão legal não foi suficiente para estabelecer todos os parâmetros processuais que devem orientar a superação da autonomia patrimonial da pessoa jurídica.
A respeito da desconsideração, nos moldes previstos no Código Civil, tratar-se-á em tópico próprio, tendo em vista a relevância da sua compreensão para o objeto central da presente monografia.
3.2. DESCONSIDERAÇÃO NO NOVO CÓDIGO CIVIL
A entrada em vigor do Novo Código Civil foi de extrema relevância para que se estabelecesse no ordenamento jurídico nacional uma regra geral acerca da desconsideração da personalidade jurídica, que servisse para orientar a sua aplicação não só no âmbito das relações civis, mas de todas as relações jurídicas privadas.
Este diploma legal foi importante para resgatar os fundamentos originais da desconsideração e para evitar a sua utilização desenfreada e abusiva, definindo expressamente as hipóteses em que esta deve ser aplicada. Vejamos:
Art. 50. Em caso de abuso da personalidade jurídica, caracterizado pelo desvio de finalidade, ou pela confusão patrimonial, pode o juiz decidir, a requerimento da parte, ou do Ministério Público quando lhe couber intervir no processo, que os efeitos de certas e determinadas relações de obrigações sejam estendidos aos bens particulares dos administradores ou sócios da pessoa jurídica.
Pode-se perceber que a desconsideração é contemplada pelo código como instrumento hábil a coibir e reprimir os abusos cometidos através da manipulação indevida do direito à personalidade jurídica. Ressalte-se que o abuso de direito se configura sempre que o seu titular o exercer para alcançar fins diversos daqueles que lhe foram atribuídos pela ordem jurídica.
O próprio Código Civil, em seu art. 187, estabelece a definição de abuso de direito: "Também comete ato ilícito o titular de um direito que, ao exercê-lo, excede manifestamente os limites impostos pelo seu fim econômico ou social, pela boa-fé ou pelos bons costumes".
Maria Helena Diniz, ao interpretar o artigo 187 do código, assevera: "O ato abusivo é uma conduta lícita, mas desconforme, ora à finalidade socioeconômica pretendida pela norma ao prescrever uma situação ou um direito, ora ao princípio da boa fé objetiva, como diz Ripert" [43].
Assim, pode-se afirmar que o abuso do direito à personificação ocorre quando um grupo de indivíduos utiliza-se da faculdade conferida pelo Estado de constituir uma pessoa jurídica, com personalidade distinta das dos seus membros, para, com base na autonomia patrimonial do sujeito de direito constituído, atingir fins diversos daqueles previstos pelo ordenamento jurídico para este. Com isso, configura-se uma violação manifesta da função social da pessoa jurídica, o que enseja a sua desconsideração, para atingir os responsáveis pelo uso indevido ou lesivo da personalidade societária.
De acordo com a legislação civil, o abuso do direito à personificação pode ser caracterizado pelo desvio de finalidade ou pela confusão patrimonial.
Tem-se o desvio de finalidade legitimador da desconsideração quando a pessoa jurídica é utilizada pelo sócio ou administrador da sociedade para alcançar fins diversos daqueles vislumbrados pelo direito, quando da sua instituição. Por exemplo, quando o ente coletivo tiver sido constituído para burlar cláusula contratual de não-restabelecimento assumida pelo alienante de estabelecimento comercial junto ao terceiro adquirente.
Embora o Código Civil não tenha inserido dentro das hipóteses legitimadoras da desconsideração o termo "fraude" - o que tem sido alvo de severas críticas -, insta afirmar que tal situação encontra-se implicitamente no seu texto, mais especificamente na expressão "desvio de finalidade". A fraude, como ato atentatório de direito de terceiro ou burla à lei, configura um desvio da finalidade para qual a personalidade societária foi instituída, enquadrando-se perfeitamente no objetivo da norma em espeque, qual seja, coibir e reprimir qualquer forma de manipulação indevida da pessoa jurídica perpetrada em detrimento de direito de terceiros de boa-fé.
Nesse sentido, posiciona-se José Tadeu Neves Xavier: "Entendemos que a idéia de fraude está inserta de forma implícita na redação do art. 50 do novo codex, quando faz referência ao abuso da personalidade e ao desvio de finalidade" [44].
Alguns autores, numa visão mais ampla quanto às hipóteses de cabimento da desconsideração, defende que esta seria cabível em qualquer tipo de fraude perpetrada com manipulação indevida da pessoa jurídica. A exemplo, pode-se destacar o posicionamento de Sílvio de Salvo Venosa: "A modalidade de fraude é múltipla, sendo impossível enumeração apriorística. Dependerá do exame do caso concreto. Poderá ocorrer fraude à lei, simplesmente, fraude a um contrato ou fraude contra credores,..." [45].
Outro critério caracterizador do abuso da personalidade jurídica é a confusão patrimonial, que se configura quando há uma mistura entre o patrimônio da sociedade e os dos seus sócios, de modo que não é possível identificar a titularidade real dos bens. Nesse caso, a separação patrimonial formalmente estabelecida pela lei não é observada na atuação concreta da sociedade, o que enseja a desconsideração da pessoa jurídica.
Fábio Ulhoa, ao se manifestar acerca da confusão patrimonial como critério legitimador da desconsideração, pontua: "Quer dizer, deve-se presumir a fraude na manipulação da autonomia patrimonial da pessoa jurídica se demonstrada a confusão entre os patrimônios dela e de um ou mais de seus integrantes...". [46]
A confusão patrimonial pode se caracterizar, segundo Calixto Salomão Filho, "quando a denominação social, a organização societária ou o patrimônio da sociedade não se distinguem em forma clara da pessoa do sócio, ou então quando formalidades societárias necessárias à referida separação não são seguidas". [47]
Pela exegese do dispositivo civil, verifica-se também que a simples inadimplência da sociedade não é motivo suficiente, em si mesmo, para ensejar a superação da sua autonomia patrimonial, tendo em vista que a desconsideração deve ser aplicada em virtude da existência de abuso do direito à personalização.
Tal posicionamento se coaduna com o atual contexto sócio-econômico em que está inserido o Brasil, uma vez que, em razão dos riscos e oscilações do mercado econômico e financeiro, o sucesso de uma atividade empresarial torna-se cada vez mais difícil. Dessa forma, permitir a desconsideração, quando o sócio não praticou nenhuma conduta reprovável, mas tão-somente foi vítima das agruras e imprevistos do mercado, seria negar completamente a personalidade jurídica distinta atribuída a pessoa jurídica, ou pior, o próprio instituto.
Impende observar lição de Humberto Theodoro Júnior a esse respeito: "Ora, não se pode presumir abuso de gestão social, apenas porque não há bens a penhorar". [48]
Todavia, é possível encontrar entendimentos jurisprudenciais no sentido da aplicação da desconsideração da personificação societária quando o patrimônio da pessoa jurídica não é suficiente para adimplir suas obrigações, mesmo não se constatando a existência de abuso [49], o que contrária, conforme supracitado, os fundamentos da própria teoria.
Acrescente-se que o legislador não estabeleceu qualquer presunção de existência de abuso de direito ou fraude, em razão do que a decretação da desconsideração demanda a prova robusta destes eventos. Quanto ao ônus da prova, deve ser observada a regra geral do art. 333 do CPC, dessa forma, caberá ao interessado comprovar a existência do abuso autorizador da desconsideração.
Impende destacar que o Código, ao disciplinar a desconsideração, em momento algum, afirmou que esta acarretaria a extinção da pessoa jurídica, mas tão-somente permitiu a extensão dos efeitos de obrigações sociais aos sócios ou administradores da sociedade, em determinado caso concreto. Sendo assim, a desconsideração consagrada é episódica, somente ignorando os efeitos da personificação societária no caso concreto em que se constatou seu abuso, em razão disso, a pessoa jurídica continua válida para desenvolver regularmente suas atividades.
Diante do exposto, é relevante deixar claro que, embora o novo Código Civil não tenha reproduzido a norma expressamente prevista no art. 20 do CC de 1916 [50], ainda vigora no ordenamento jurídico pátrio o princípio da inconfundibilidade entre a pessoa jurídica e os seus sócios. Assim, a extensão da responsabilidade pelas obrigações sociais aos sócios trata-se de uma exceção, somente podendo se concretizar quando devidamente preenchidos os requisitos legais autorizadores.
A importância da distinção entre a personalidade jurídica do ente coletivo e as dos membros que a compõem para o sistema jurídico nacional pode ser demonstrada pela análise do projeto de Lei n°. 7.160/2002, que tramita no Congresso Nacional, e pretende alterar a redação do art. 50 do Código Civil [51] para inserir a norma que constava no art. 20 do CC de 1916.
Dessa forma, a desconsideração deve ser aplicada com muita cautela e somente quando devidamente comprovadas as circunstâncias legitimadoras da sua declaração, tendo em vista a relevância do instituto da pessoa jurídica para o direito e para o desenvolvimento econômico, social e cultural de toda a sociedade. Assim, não se deve olvidar o caráter excepcional desta medida, a fim de evitar a sua aplicação desenfreada, o que pode ocasionar a banalização do instituto da pessoa jurídica e prejudicar sua relevante função social.
Tendo em vista que o direito brasileiro admite a existência de sociedades cujos administradores não sejam necessariamente sócios, a responsabilidade pelo cumprimento das obrigações sociais, quando efetivada a desconsideração, poderá ser imputada tanto aos sócios quanto aos administradores. Todavia, é importante ressaltar que somente poderão ser responsabilizados os sócios ou administradores que tiverem contribuído direta ou indiretamente para o ato abusivo que ensejou a desconsideração. Ou seja, deve se ponderar face o caso concreto se o sócio ou o administrador foi realmente responsável pela prática do ato.
O Código Civil de 2002 não se pronunciou acerca da admissibilidade da desconsideração em sentido inverso, somente prevendo a possibilidade de se afastar a autonomia patrimonial da pessoa jurídica para atingir os sócios e vincular os bens pessoais destes ao cumprimento de obrigações formalmente imputadas à sociedade.
Por fim, cumpre salientar que o diploma civil contemplou o princípio dispositivo, de modo que o Poder Judiciário somente poderá se manifestar a respeito da desconsideração se houver requerimento da parte ou do Ministério Público, nos casos em que couber a sua intervenção.
Uma vez esclarecidos os conceitos e princípios essenciais acerca da desconsideração da personalidade jurídica, tem-se a base necessária para adentrar no estudo do objeto central deste trabalho, qual seja os aspectos processuais da desconsideração.