4. ASPECTOS PROCESSUAIS DA DESCONSIDERAÇÃO
A superação da separação patrimonial existente entre a pessoa jurídica e seus integrantes, que é o cerne do fenômeno da desconsideração da pessoa jurídica, vem sendo largamente aplicada pelos juízes e tribunais nacionais. Dessa forma, é relevante analisar os equívocos e os acertos verificados na utilização prática deste instituto.
4.1 LEGITIMIDADE PARA REQUERER A DESCONSIDERAÇÃO. POSSIBILIDADE DE DESCONSIDERAÇÃO "EX OFFICIO".
Como explicado no capítulo anterior, o Código Civil de 2002 consagrou, em seu artigo 50, a desconsideração da personalidade jurídica e estabeleceu diretrizes norteadoras da sua aplicação. Uma dessas diretrizes refere-se à legitimidade para requerer a desconsideração, atribuída à parte interessada e ao Ministério Público, quando couber a sua intervenção.
Percebe-se, assim, que a norma que consagra a desconsideração da pessoa jurídica no diploma civil está em perfeita consonância com o princípio da demanda ou da inércia do Poder Judiciário, de acordo com o qual o juiz somente poderá se manifestar mediante provocação da parte interessada; ou seja, cabe à parte suscitar as questões que pretende sejam resolvidas pelo Judiciário. Este princípio encontra-se solidificado no art. 2° do CPC, que estabelece: "nenhum juiz prestará a tutela jurisdicional senão quando a parte ou o interessado a requerer, nos casos e formas legais".
Para Cândido Rangel Dinamarco, "Essa exigência é imposta em atenção a necessidade de preservar a imparcialidade do juiz". [52] Nesse sentido, a legislação civil, a fim de preservar a regularidade e a legitimidade do procedimento de aplicação da desconsideração, condiciona a atuação jurisdicional ao requerimento da parte.
A despeito da existência de determinação legal expressa acerca da legitimidade ativa para requer a superação da autonomia patrimonial da pessoa jurídica, é possível encontrar na jurisprudência pátria decisões a favor da possibilidade de aplicação da desconsideração de ofício, como se infere da ementa abaixo transcrita:
AGRAVO DE INSTRUMENTO. PROCESSO DE EXECUÇÃO DE SENTENÇA. DESCONSIDERAÇÃO DA PERSONALIDADE JURÍDICA. DISSOLUÇÃO IRREGULAR DA EMPRESA E AUSÊNCIA DE BENS. AÇÃO REDIRECIONADA CONTRA A SÓCIA. POSSIBILIDADE. Diante da situação dos autos, processo de execução onde é executada a empresa irregularmente dissolvida e sem patrimônio, possível a determinação, de ofício, da inclusão da recorrente no pólo passivo da demanda, desconsiderada a personalidade jurídica. Agravo desprovido. [53]
Existem doutrinadores que também defendem ser possível a atuação de ofício do juiz, independentemente de requerimento da parte prejudicada pelo mau uso da pessoa jurídica. Nesse sentido, professora Genacéia da Silva Alberton: "Todavia, como as situações embasadoras das desconsiderações podem emergir no decorrer da instrução do processo, deve-se aceitar a possibilidade de o Juiz desconsiderar a pessoa jurídica, independentemente de postulação da parte autora". [54]
Outros autores, embora tendentes a admitir a possibilidade de aplicação ex officio da desconsideração, preferem adotar um posicionamento mais cauteloso e, assim, afirmar a necessidade de que haja requerimento para a sua efetivação. Dentre eles podemos destacar Gilberto Gomes Bruschi:
Como o art. 50 do CC/2002 prevê o expresso requerimento do interessado ou do Ministério Público, conclui-se que a partir da entrada em vigor do novo código civil, estabelece-se violação a atuação ex officio por parte do juiz nesse sentido. Tal disposição deveria ser revista em uma eventual reforma do Código Civil em vigor, pois existem no mesmo dispositivo legal determinadas matérias de ordem pública que deveriam ser conhecidas de ofício, independendo, portanto de manifestação da parte, porém, como o art. 50, expressamente prevê a necessidade de requerimento ao juízo da execução, não se pode cogitar de atuação ex officio [...]. [55]
Convém observar que a aplicação de ofício de normas legais pelos juízes é uma medida processual de caráter excepcional em relação ao princípio da demanda, logo, deve estar prevista em lei [56]. Não estabelecendo a lei a possibilidade de o juiz atuar de ofício em face do caso concreto, faz-se necessário o requerimento da parte para que possa manifestar-se.
Ressalte-se, contudo, que determinadas matérias, por serem de suma importância para o regular desenvolvimento da relação jurídica processual, tais como as condições da ação e os pressupostos processuais, podem ser apreciadas ex officio pelo juiz, independentemente de autorização legal. [57]
Dessa forma, não havendo autorização legal para a aplicação da desconsideração de ofício pelo juiz, mas, pelo contrário, fixando expressamente o art. 50 do Código Civil a necessidade de provocação por parte do interessado ou do Ministério Público para o juiz poder aplicá-la, está descartada a possibilidade de a desconsideração ser decretada ex officio.
Sendo assim, o requerimento da parte constitui pressuposto para a regular decretação da desconsideração da personalidade jurídica.
Já no que se refere à legitimidade passiva para a desconsideração, entendemos que a parte interessada ou o Ministério Público, ao requerer a aplicação desta, deverá fazer com que integrem o pólo passivo da demanda a pessoa jurídica e os sócios que pretende que sejam responsabilizados, a fim de evitar futura nulidade processual, por violação aos princípios do devido processo legal, do contraditório e da ampla defesa, todos de magnitude constitucional. [58]
Nesse sentido, leciona Osmar Vieira da Silva: "... quem pretende imputar a sócio ou sócios de uma sociedade empresária a responsabilidade por ato social, em virtude de fraude na manipulação da autonomia da pessoa jurídica, não deve demandar somente esta última, mas, também, a pessoa ou as pessoas que quer ver responsabilizadas". [59]
4.2. FORMAS DE APLICAÇÃO DA DESCONSIDERAÇÃO.
O momento e o procedimento a ser utilizado para a efetivação da desconsideração da personalidade jurídica é alvo de grandes discussões na doutrina, tendo em vista a ausência de legislação que discipline especificamente esta matéria.
Como já esclarecido, a entrada em vigor do Código Civil de 2002, embora tenha contribuído para fixar algumas diretrizes de cunho processual acerca da forma de aplicação da desconsideração, não foi suficiente para dirimir todas as dúvidas.
Neste contexto, é possível identificar, na doutrina e na jurisprudência nacionais, a existência de três correntes a respeito do momento e da forma como deve se realizar a aplicação da desconsideração da pessoa jurídica. São elas: a desconsideração na fase de conhecimento do processo, a desconsideração por decisão no próprio processo de execução e a desconsideração por meio da instauração de um incidente processual na fase de execução.
É relevante, assim, refletir sobre os procedimentos utilizados por estas três correntes para a decretação da desconsideração da pessoa jurídica, a fim de identificar qual(s) oferece(m) maior segurança processual para as partes.
4.2.1. Desconsideração na fase de conhecimento do processo
Esta corrente defende que a desconsideração da personalidade jurídica deve ser efetivada com observância rigorosa aos princípios do devido processo legal, do contraditório e da ampla defesa, a fim de evitar que as relações processuais sejam maculadas por considerável insegurança jurídica.
Nesse sentido, afirma-se que os sócios ou administradores da sociedade que o credor social pretende responsabilizar devem participar da relação jurídica processual de conhecimento, a fim de que lhes seja assegurado o livre exercício do contraditório e da ampla defesa, não só em relação à existência ou não das circunstâncias autorizadoras da desconsideração da personificação societária, mas também no que se refere à existência e ao conteúdo da dívida objeto da lide.
Ademais, não se pode olvidar que os patrimônios dos sócios ou dos administradores sociais somente poderão ser atingidos para a satisfação do direito de crédito certificado no processo de conhecimento, se estes integrarem o titulo judicial em que houve esta certificação.
É o que dispõe o art. 472 do Código de Processo Civil: "A sentença faz coisa julgada às partes entre as quais é dada, não beneficiando, nem prejudicando terceiros. Nas causas relativas ao estado de pessoa, se houverem sido citados no processo, em litisconsórcio necessário, todos os interessados, a sentença produz coisa julgada em relação a terceiros".
Assim, somente os sujeitos que participaram da relação processual de conhecimento sofrerão os efeitos da sentença nesta proferida, de modo que, embora esta decisão também tenha valor contra terceiros, o seu comando não pode prejudicá-los.
Trata-se dos limites subjetivos da coisa julgada, que deverão ser respeitados, por ser uma garantia do devido processo legal. Além disso, a necessidade de observar estes limites assegura que ninguém terá seu patrimônio violado, sem que tenha exercido seu direito de defesa em um processo regular, manifestando-se acerca do objeto sobre o qual repousará o manto da coisa julgada.
Sobre o tema, posiciona-se Cândido Dinamarco:
Há duas razões básicas pelas quais a autoridade da coisa julgada não deve ir e não vai além dos sujeitos processuais.
A primeira delas é a garantia constitucional do contraditório, que ficaria maculada se um sujeito, sem ter gozado das oportunidades processuais inerentes à condição de parte, ficasse depois impedido de repor em discussão o preceito sentencial.
A segunda, colhida do modo como a coisa julgada incide na vida das pessoas e das regras processuais sobre a legitimidade ad causam, consiste no desinteresse dos terceiros pelos resultados do processo, que não lhes afetam diretamente a esfera de direitos e obrigações. [60]
Posto isto, resta evidente que a participação dos sócios na fase de conhecimento juntamente com a pessoa jurídica impõe-se como requisito para a decretação da desconsideração da pessoa jurídica em consonância com o devido processo legal e o contraditório, haja vista que, apesar de os sócios terem interesse nas decisões que afetam a sociedade empresária e poderem ser atingidos indiretamente pelas mesmas, não se confundem com a pessoa jurídica, pois possuem personalidades jurídicas distintas.
Em abono ao posicionamento ora esposado, manifestou-se Genacéia da Silva Alberton, em artigo sobre a desconsideração da pessoa jurídica no Código do Consumidor:
É necessário, porém, observados os termos do Código do Consumidor acerca da desconsideração, que seja mantida a defesa plena do demandado para que, ao se afastar o abuso no plano material, não se cometa uma ignomínia no plano processual. Por isso deve haver cautela do julgador em verificar se aqueles que, no pólo passivo, ficarão sujeitos aos efeitos da sentença, isto é, serão atingidos pela desconsideração, estão presentes na demanda, sob pena de que, em relação a eles, a sentença deixe de fazer coisa julgada (art. 472 do CPC). [61]
Acerca da necessidade de se respeitar os limites subjetivos da coisa julgada, quando da aplicação da desconsideração, já se manifestou o Superior Tribunal de Justiça, conforme ementa abaixo transcrita:
EMBARGOS À EXECUÇÃO DE MULTA COMINATÓRIA. DESCONSIDERAÇÃO DA PERSONALIDADE JURÍDICA PARA ATINGIR EMPRESA QUE NÃO FOI PARTE NA AÇÃO ANTERIOR. IMPOSSIBILIDADE. Nula, a teor do artigo 472, CPC, a decisão que estende a coisa julgada a terceiro que não integrou a respectiva relação processual.A desconsideração da pessoa jurídica é medida excepcional que reclama o atendimento de pressupostos específicos relacionados com a fraude ou abuso de direito em prejuízo de terceiros, o que deve ser demonstrado sob o crivo do devido processo legal. Recurso especial conhecido e provido. [62]
Assim, a inobservância do preceito contido no art. 472 do CPC implica a violação de garantias processuais asseguradas na Constituição Federal, o que compromete a própria legitimidade e justiça do procedimento realizado.
Uma vez reconhecida a necessidade de os sócios ou administradores da sociedade integrarem o pólo passivo da demanda cognitiva, já que, na hipótese de demonstrar-se a ocorrência de abuso do direito à personificação societária, são os patrimônios destes que o credor social almeja alcançar, é relevante ressaltar que, para viabilizar esta participação, o credor deve-se utilizar do instituto do litisconsórcio facultativo eventual.
Para a perfeita compreensão deste instituto, convém tecer sucintas considerações a respeito de litisconsórcio.
Como é cediço, o litisconsórcio corresponde a pluralidade de partes ou litigantes em um ou em ambos os pólos da relação jurídica processual. Nesse sentido, leciona Cândido Rangel Dinamarco: "Litisconsórcio é a presença de duas ou mais pessoas na posição de autores ou réus [Chiovenda]; é um fenômeno de pluralidade de partes, em que o esquema da relação jurídica substancial vai além do mínimo indispensável para ter mais de uma pessoa no pólo ativo, ou passivo, ou em ambos...". [63]
O litisconsórcio pode ser classificado de diversas formas: a) quanto ao pólo da relação jurídica processual: litisconsórcio ativo, passivo ou misto, se a pluralidade for de autores, réus ou ambas as partes, respectivamente; b) quanto ao momento de formação do litisconsórcio: inicial ou ulterior, conforme tenha sido constituído no início ou no curso do processo; c) quanto à natureza do laço que prende os co-litigantes: necessário, quando a formação do litisconsórcio é indispensável, seja por expressa determinação legal, seja pela natureza da relação jurídica material posta em juízo, ou facultativo, quando o litisconsórcio se forma pela livre vontade da parte; d) quanto aos efeitos da sentença: unitário, quando a sentença produz um só efeito para todos os litisconsortes, ou simples (ou comum), quando a sentença pode produzir efeitos diversos para os diferentes litisconsortes.
Para o desenvolvimento deste trabalho, contudo, é relevante a análise apenas do litisconsórcio facultativo passivo, ou seja, aquele caracterizado pela cumulação de vários sujeitos no pólo passivo da demanda, em decorrência da simples vontade de quem propôs a ação. Neste, não há obrigatoriedade de formação do litisconsórcio, que é constituído por melhor adequar-se à pretensão que o autor deseja deduzir em juízo, – frise-se - segundo seu exclusivo juízo de valor.
O litisconsórcio facultativo poderá ser eventual ou alternativo quando "... o autor, estando em dúvida razoável sobre a identificação do sujeito legitimado passivamente, tem a faculdade de incluir dois ou mais réus em sua demanda, com o pedido de que a sentença se enderece a um ou a outro conforme venha resultar da instrução do processo e da convicção do juiz". [64]
O litisconsórcio eventual distingue-se do litisconsórcio alternativo [65] apenas pelo fato de que neste o autor restringe-se a deduzir seu pedido indiferentemente a qual das partes será condenada, já naquele o autor manifesta preferência pela condenação de um dos réus.
No caso da desconsideração da personalidade jurídica requerida na fase de conhecimento do processo, o litisconsórcio de que se serve o credor da sociedade é o eventual.
Apesar de não existir previsão legal expressa autorizando o litisconsórcio eventual, ele vem sendo admitido pela doutrina com base numa interpretação extensiva do art. 289 do CPC [66], que faculta a parte, ao ajuizar a sua ação, formular mais de um pedido em ordem sucessiva, para que um seja atendido, na hipótese de o outro não ser, admitindo, assim, o cúmulo eventual de demandas.
É o que ocorre no caso do litisconsórcio facultativo eventual. Contudo, neste, além de uma cumulação eventual objetiva [67], também teremos uma cumulação eventual subjetiva, tendo em vista que o autor pleiteia que, sendo julgado improcedente o pedido formulado em relação a uma parte, seja apreciado o pedido formulado em relação a outra.
Dinamarco, ao explicar este tipo de litisconsórcio, assevera:
Na realidade, quando comum o litisconsórcio facultativo, o que se vê são os dois fenômenos ao mesmo tempo: cúmulo de pessoas como autores ou réus e cúmulo de demandas, no sentido de que com referência a cada uma dessas partes plúrimas se porá um pedido em juízo. Pois é precisamente isso que sucede quando é eventual ou alternativo o litisconsórcio, dando-se então, como em todos os casos de litisconsórcio facultativo comum, o cúmulo subjetivo e também objetivo de demandas. [68]
Pronuncia-se, ainda, sobre sua admissibilidade no ordenamento jurídico nacional:
Já se vê, portanto, que nem o litisconsórcio eventual, nem o alternativo, repugnam à nossa ordem jurídico-processual. Por mais de um caminho, chega-se à conclusão de que é lícito ampliar a potencialidade do processo, para a tutela jurisdicional mais rápida, econômica e coerente através de cúmulos dessas espécies.
[...]
Se fosse negada a admissibilidade de demandas conjuntas, em casos como esses, nem por isso ficaria afastado o litisconsórcio, que provavelmente se formaria depois, por força da conexidade, através da reunião de processos. [69]
Dessa forma, não restam dúvidas quanto à admissibilidade do litisconsórcio facultativo eventual ou alternativo no sistema jurídico brasileiro. Em abono a tese ora esposada, já se manifestou a jurisprudência pátria, conforme se verifica na ementa in verbis:
Em ação movida, contra seguradora e contra o banco intermediário do seguro admite-se o litisconsórcio passivo alternativo, pois não sabe o autor a quem será imputada a responsabilidade e, sendo um exonerado da obrigação de reparar, pode ser condenado o outro. (1ª TACSP – 5ª C – AP 327.860 – Rel. Scarance Fernandes – j. em 15.08.84) [70]
Sendo assim, o credor social, ao ajuizar sua demanda, deverá promover a citação dos sócios juntamente com a da pessoa jurídica, pela formação de um litisconsórcio passivo facultativo eventual, pois, acaso se verifique no caso sub judice a prática de fraude ou abuso de direito por meio da utilização indevida da personificação societária, poderá de logo ser decretada a responsabilidade patrimonial dos sócios que nela incorreram.
Nesse sentido, manifestou-se Flavia Lefrèvre Guimarães, ao dissertar sobre o procedimento de aplicação da desconsideração no âmbito do direito do consumidor:
O consumidor deve ser cauteloso no momento de ajuizar a ação, e buscar, nos órgãos públicos competentes, os documentos societários da pessoa jurídica contra a qual vá litigar e procure, desde o início, vincular todos os possíveis responsáveis, previstos nos parágrafos do art. 28, ao resultado da sentença, fazendo uso dos institutos processuais que regulam o litisconsórcio, a fim de garantir um grau de aproveitamento e otimização do processo. [71]
Assim, com a formação do litisconsórcio passivo facultativo eventual, os sócios ou administradores sociais responsáveis integrarão o titulo judicial resultante do processo de conhecimento e contra eles poderá ser proposta legitimamente a execução, resguardando-se, dessa forma, o devido processo legal, o contraditório e a ampla defesa.
Importante destacar, ainda, que Fábio Ulhoa Coelho, numa posição extremista, defende que o credor deverá ajuizar uma ação autônoma de conhecimento específica para o reconhecimento do abuso da personalidade jurídica e a conseqüente decretação da desconsideração. Além disso, sustenta que esta ação deverá ser proposta apenas em face dos sócios que o credor pretende responsabilizar, não sendo imperativa, portanto, a participação da pessoa jurídica no processo. Nas palavras do autor:
Ora, se assim é, o juiz não pode desconsiderar a separação entre a pessoa jurídica e seus integrantes senão por meio de ação judicial própria de caráter cognitivo, movida pelo credor da sociedade contra os sócios ou seus controladores. Nessa ação, o credor deverá demonstrar a presença do pressuposto fraudulento. Em outros termos, quem pretende imputar a sócio ou sócios de uma sociedade empresária a responsabilidade por ato social, em virtude de fraude na manipulação da autonomia da pessoa jurídica, não deve demandar esta última, mas a pessoa ou as pessoas que quer ver responsabilizadas. Se a personalização da sociedade empresária será abstraída, desconsiderada, ignorada pelo juiz, então a sua participação na relação processual como demandada é uma impropriedade. [72]
É possível verificar na jurisprudência pátria julgados que se manifestam nesse mesmo sentido, conforme demonstra ementa abaixo transcrita:
AGRAVO DE INSTRUMENTO - EXECUÇÃO -PENHORA DE PARTE DO FATURAMENTO DA EMPRESA - MEDIDA EXCEPCIONAL E EXTREMA - NÃO COMPROVAÇÃO DA AUSÊNCIA DE OUTROS BENS PASSÍVEIS DE CONSTRIÇÃO - DESCONSIDERAÇÃO DA PERSONALIDADE JURÍDICA - NECESSIDADE DE INSTAURAÇÃO DE PROCESSO COGNITIVO - DECISÃO MANTIDA - RECURSO DESPROVIDO. A penhora sobre o faturamento da empresa é medida excepcional porquanto a restrição apontada na lei se dá em obediência ao princípio de que a execução se fará pelo modo menos gravoso ao executado, sendo permitida a penhora sobre o rendimento somente quando não houver outros bens passíveis de penhora. Para aplicação da teoria da desconsideração da personalidade jurídica é indispensável a dilação probatória, pela propositura de processo de conhecimento, no qual se busca comprovar que os sócios agiram, alternativamente, com abuso de direito, desvio de poder, fraude à lei, violação aos estatutos ou ao contrato social ou em palmar prejuízo a terceiros. [73]
Todavia, tal posicionamento não deve ser prestigiado, tendo em vista que implicaria uma demora excessiva na satisfação do direito do credor da sociedade, já que este, além de propor uma ação em face da sociedade para que seja declarado o seu direito, posteriormente teria que ajuizar nova ação cognitiva específica contra os integrantes da pessoa jurídica, para demonstrar que houve prática de fraude ou abuso de direito por estes, motivo pelo qual deverão ser responsabilizados pelas dividas formalmente imputadas à sociedade.
Assim, acreditamos que, quando o credor toma conhecimento da existência de abuso do direito de personificação societária antes de ajuizar a ação contra a pessoa jurídica, deve utilizar o litisconsórcio passivo facultativo eventual, para requerer a desconsideração, tendo em vista ser um procedimento mais célere e, por isso, mais indicado, em atenção aos princípios da economia e da celeridade processuais. Além disso, assegura a validade do processo, uma vez que atende aos princípios e normas processuais que o regem, sobretudo os princípios do contraditório e da ampla defesa.
A corrente em destaque, contudo, não está imune a apreciações desfavoráveis. Nesse sentido, há quem defenda que a utilização do litisconsórcio facultativo eventual para a aplicação da desconsideração não é seguramente eficaz, tendo em vista que o juiz, ao apreciar o pedido, poderá entender pela ilegitimidade passiva do sócio, já que a obrigação objeto do processo é de titularidade exclusiva da sociedade. Assim, a demanda ajuizada pelo credor social ficaria sujeita a possibilidade de declaração de carência da ação por ausência de ilegitimidade ad causam no que tange aos sócios.
No entanto, conforme assevera Araken de Assis, apesar de existir uma delicada questão de ilegitimidade nessas demandas, é impossível identificar, no início, segundo os exatos termos da inicial apresentada, quem ostenta a condição de parte legítima ad causam. [74]
4.2.2 Decisão nos próprios autos do processo de execução
4.2.2.1 Generalidades
Esta corrente entende que a desconsideração da personalidade jurídica pode ser decretada por meio de uma simples decisão nos próprios autos do processo de execução.
Segundo seus defensores, uma vez constatada pelo credor a ausência de bens da sociedade para satisfazer o seu crédito, este poderá, caso tenha conhecimento de qualquer abuso do direito à personificação societária perpetrado pelos sócios ou administradores sociais, fazer uma petição simples requerendo ao juízo em que se processa a execução a aplicação da desconsideração da personalidade jurídica da sociedade executada e a conseqüente responsabilização dos seus sócios pelos débitos sociais.
Caso deferido o pedido de superação da autonomia patrimonial da pessoa jurídica, os sócios ou administradores da sociedade responsáveis pelo abuso verificado integrarão o pólo passivo da demanda e de logo serão determinadas as suas citações e as penhoras dos seus bens para a satisfação do crédito do exeqüente. [75]
Em favor da efetivação da desconsideração nos próprios autos do processo de execução, leciona Calixto Salomão Filho:
A desconsideração não precisa ser declarada nem obtida em processo autônomo. No próprio processo de execução, não nomeando o devedor bens à penhora ou nomeando bens em quantidade insuficiente, ao invés de pedir a declaração de falência da sociedade (art. 2°, inc. I, do decreto-lei 7.661, de 21.6.1945), o credor pode e deve, em presença dos pressupostos que autorizam a aplicação do método da desconsideração, definidos acima, pedir diretamente a penhora em bens do sócio (ou da sociedade, em caso de desconsideração inversa). [76]
O argumento utilizado pelos juristas que defendem esta forma de aplicação da desconsideração é de que o processo deve ser célere e eficaz, para atender satisfatoriamente o direito do credor. Asseveram que a morosidade de um processo de conhecimento destinado a reconhecer a existência das circunstâncias legitimadoras da desconsideração pode acarretar a inviabilidade do exercício do direito do credor, ou seja, a falta de efetividade da tutela jurisdicional prestada.
No entanto, é possível identificar várias irregularidades neste procedimento, consoante será exposto.
A primeira crítica feita a esta corrente é a inobservância dos limites subjetivos da coisa julgada, em evidente afronta ao princípio do devido processo legal. Isso porque, embora os sócios ou administradores da sociedade não integrem o título judicial objeto da execução, por não terem participado do processo de conhecimento no qual ele se formou, eles sofrerão diretamente os efeitos deste título, já que, diante da ausência de patrimônio da sociedade para adimplir a obrigação nele contida, o magistrado decreta a desconsideração da personificação societária e determina a penhora de bens do sócio.
Por conseguinte, haverá evidente cerceamento dos direitos constitucionalmente assegurados ao contraditório e à ampla defesa, pois o sócio não teve e não terá oportunidade de manifestar-se acerca da existência ou não do débito exeqüendo, nem a respeito do seu conteúdo, sobre o qual - frise-se – já incide a imutabilidade da coisa julgada material. Além disso, a responsabilidade do sócio é declarada sem que este possa exercer seu direito de defesa, a fim de impugnar as condutas abusivas ou fraudulentas que lhe foram imputadas e produzir as provas necessárias para comprovar suas afirmações.
Fredie Didier Jr., ao analisar o problema do cerceamento do direito de defesa na aplicação da desconsideração, assevera:
O cerne da questão é o seguinte: é possível desconsiderar a existência da pessoa jurídica sem prévia atividade cognitiva do magistrado, de que participem os sócios ou outra sociedade empresária, em contraditório? A resposta é negativa: não se pode admitir aplicação de sanção sem contraditório. [77]
Diante disso, é possível constatar que a decretação da desconsideração da personalidade jurídica no processo de execução por meio de uma simples decisão atenta contra a ordem constitucional, na medida em que transgride os princípios do devido processo legal, do contraditório e da ampla defesa.
Esta situação também se verifica quando o título que está em execução é extrajudicial, pois este somente reconhece como devedor a sociedade, todavia, os sócios são incluídos no pólo passivo da execução, sem que tenham a oportunidade de manifestar-se sobre os fatos que lhe são imputados.
Os autores que defendem a aplicação deste procedimento [78] sustentam que o sócio poderá defender-se e impugnar as alegações de fraude ou abuso de direito através da manipulação da pessoa jurídica no momento apropriado do processo de execução, por meio da oposição de embargos de terceiro ou à execução. Todavia, como já afirmado, é necessário que o sócio possa manifestar-se acerca da desconsideração antes que esta seja decretada, a fim de que lhe seja devidamente assegurado o contraditório e o devido processo legal.
Além disso, pode ocorrer de o sócio não possuir patrimônio suficiente para efetuar a garantia do juízo - pressuposto necessário para a oposição de embargos - o que impossibilitaria o exercício do seu direito de defesa e a prova de eventual inexistência de conduta abusiva ou fraudulenta de sua parte.
É importante ressaltar, ainda, que a desconsideração da personificação societária requer, para a sua legítima aplicação a realização de instrução probatória capaz de comprovar de forma cabal a existência das circunstâncias autorizadoras previstas na legislação material. Contudo, o procedimento de execução é incompatível com a realização de uma ampla instrução probatória, em virtude do que a desconsideração decretada por decisão interlocutória nos próprios autos do processo executivo muitas vezes baseia-se em uma cognição perfunctória dos fatos. [79]
Acrescente-se o fato de que a penhora, apesar de ser um ato executivo agressivo ao patrimônio individual, que somente se legitima em virtude da existência de uma obrigação consignada num título executivo certo, líquido e exigível, também é deferida com base apenas em uma cognição superficial dos fatos apresentados pelo exeqüente para fundamentar o seu pedido de desconsideração.
Assim, tendo em vista que os sócios não constam do título que fundamenta a execução e que não é possível efetuar uma cognição exauriente acerca da sua eventual responsabilidade patrimonial, a aplicação da desconsideração na forma defendida por esta corrente revela-se um procedimento ilegítimo e contrário aos ditames de um Estado Democrático de Direito, que consagra os princípios do devido processo legal, do contraditório e da ampla defesa.
Não obstante todas as irregularidades susomencionadas, tem-se ainda a redistribuição do ônus da prova, já que caberá ao sócio, em sede de impugnação, embargos à execução ou de terceiros, demonstrar que não praticou qualquer abuso ou fraude por meio da manipulação da autonomia da pessoa jurídica, tendo que produzir, além disso, uma prova negativa. Esta redistribuição do ônus da prova é ilegal, uma vez que o dispositivo processual que rege a distribuição do ônus probante, qual seja o art. 333 do CPC, estabelece que cabe a parte autora comprovar o fato constitutivo do seu direito, no caso, o direito de invadir o patrimônio do sócio para satisfazer seu crédito.
Oportuno transcrever um trecho do parecer emitido por Candido Rangel Dinamarco, em resposta a consulta feita por uma empresa que teve penhorado um bem valioso de sua propriedade em razão da execução forçada de uma sentença condenatória proferida em processo de conhecimento do qual não fizera parte:
Nessa situação, parece-me inteiramente destoante do sistema técnico-processual vigente e sobretudo das garantias constitucionais que ele reflete, essa prática que foi adotada no caso examinado: penhorar primeiro para discutir depois, criando para a consulente (a) o ônus de embargar, com seu edifício-sede sob penhora e (b) o ônus de provar que não houve fraude. [80]
Acompanhando o entendimento ora esposado, Fábio Ulhoa Coelho, ao dissertar a respeito da aplicação da desconsideração por meio de decisão no próprio processo de execução, salienta:
Quer dizer, se o credor obtém em juízo a condenação da sociedade (e só dela) e, ao promover a execução, constata o uso fraudulento da sua personalização, frustrando seu direito reconhecido em juízo, ele não possui ainda título executivo contra o responsável pela fraude. (...) Não é correto o juiz, na execução, simplesmente determinar a penhora de bens do sócio ou administrador, transferindo para eventuais embargos de terceiros a discussão sobre a fraude, porque isto significaria uma inversão do ônus probatório." [81]
Em virtude de tudo o que foi exposto, nota-se que o procedimento de aplicação da desconsideração por meio de uma simples decisão nos próprios autos do processo de execução está eivado de vícios processuais, razão pela qual não deve ser adotado.
É importante ressaltar que, embora seja necessário contemplar os princípios da efetividade, da economia e da celeridade processuais, não se pode admitir a mitigação ou supressão total da segurança processual, a ponto de permitir que o indivíduo seja submetido a um procedimento destoante do previsto na Lei.
Observe-se, ainda, que a falta de efetividade da tutela jurisdicional não é argumento capaz de ensejar a violação de diversas garantias processuais constitucionalmente asseguradas, tendo em vista principalmente que o credor, a fim de assegurar o adimplemento do seu direito de crédito, poderá utilizar-se das providências cautelares previstas na legislação processual civil, desde que haja fundado receio de grave lesão e de difícil reparação ao seu direito.
4.2.2.2. Meios de impugnação da decisão de desconsideração proferida nos próprios autos do processo de execução.
A despeito das irregularidades verificadas no procedimento de aplicação da desconsideração da personalidade jurídica nos próprios autos do processo de execução, este vem sendo aplicado freqüentemente por considerável parte dos juízes nacionais [82]. Em virtude disso, convém analisar os meios processuais aptos a impugnar esta decisão.
Inicialmente, convém analisar os meios que podem ser utilizados para prevenir a incidência dos efeitos da decisão de desconsideração da personalidade jurídica.
O juiz, ao deferir o pedido de desconsideração formulado pela parte, em processo de execução, determinando a citação e a penhora de bens do sócio, estará proferindo uma decisão de natureza interlocutória, em razão do que poderá o sócio atingido interpor o recurso de agravo de instrumento contra este ato judicial, com pedido de efeito suspensivo, a fim de que a decisão impugnada não produza efeitos, e conseqüentemente não seja efetivada a penhora de bens do sócio, até a decisão final do agravo.
Convém ressaltar que, embora a Lei n°. 11.187/2005 tenha promovido modificações na disciplina do recurso de Agravo, estabelecendo, aparentemente, como regra geral a interposição de agravo retido contra qualquer decisão interlocutória e, excepcionalmente, nas hipóteses expressamente previstas no art. 522 do CPC [83], a interposição de agravo de instrumento, esta alteração não alcança o processo de execução, pois o agravo retido é incompatível com a sistemática deste processo, que visa apenas a satisfação do direito ao crédito já certificado. [84]
Já no que tange aos meios de defesa de que poderá servir-se o sócio atingido pela desconsideração da personalidade jurídica, pode-se notar que a doutrina e a jurisprudência nacionais são muito oscilantes a este respeito.
Gilberto Gomes Bruschi sustenta que o sócio poderá defender-se por meio de uma simples petição, comprovando a existência de bens da sociedade e invocando o art. 596 do CPC, para requerer que sobre eles incida a penhora; pela apresentação de exceção de não-executividade, a fim de demonstrar a inexistência de responsabilidade em virtude de não ter participado da administração da sociedade ou de não mais integrá-la ao tempo em que o ato legitimador da desconsideração foi praticado; ou pela oposição de embargos de terceiro, em sede do qual poderá provar que inexistência dos pressupostos autorizadores da desconsideração. [85]
Há divergências, contudo, quanto ao cabimento dos meios indicados pelo referido autor, conforme será analisado a seguir.
Primeiramente, cumpre ressaltar que o benefício de ordem previsto no art. 596 do CPC não se aplica ao presente caso, mas sim aos casos em que a sociedade e o sócio são solidariamente responsáveis pelo cumprimento da obrigação. Na desconsideração da personalidade jurídica, a separação patrimonial existente entre a pessoa jurídica e seus membros é afastada para que o sócio responda isoladamente pelas obrigações que foram formalmente imputadas à sociedade, em virtude dos atos abusivos ou fraudulentos que ele praticou, e não juntamente com a pessoa jurídica.
A respeito da aplicabilidade do art. 596 do CPC, leciona Fredie Didier Jr.: "O beneficio de ordem, mencionado no art. 596 da CPC, aplica-se aos casos em que o sócio, juntamente com a pessoa jurídica, é também responsável pela obrigação, limitada ou ilimitadamente. Nesses casos, uma vez executado o sócio, que é responsável, poderá ele requerer primeiro sejam executados os bens da sociedade para que, só então, em caso de insucesso na satisfação do crédito, sejam os seus próprios bens sujeitos à execução." [86]
A exceção de não-executividade seria restrita aos casos em que a demonstração de que o sócio não participou de qualquer ato abusivo ou fraudulento seja possível por meio de prova pré-constituída, tendo em vista que a dilação probatória não é compatível com o procedimento desta exceção.
Já no que se refere à possibilidade de oposição de embargos de terceiro, é necessário abordar previamente se a decisão de desconsideração da personificação societária implica ou não a inclusão do sócio no pólo passivo da execução.
Conforme explicado em capítulo anterior, a declaração da desconsideração da personalidade jurídica do ente coletivo decorre da comprovação de que este foi manipulado indevidamente pelos sócios ou administradores da sociedade, para atingir fins diversos daqueles vislumbrados pelo ordenamento jurídico quando da sua instituição. Assim, a desconsideração estabelece a responsabilidade pessoal do sócio ou administrador da sociedade pela obrigação formalmente imputada a sociedade, ou seja, aquele passa a ser responsável pelo cumprimento da obrigação.
Pode-se inferir, portanto, que, uma vez que foi declarada a responsabilidade do sócio pelo adimplemento da obrigação que é objeto da execução, este passará a integrar o pólo passivo da demanda, assumindo a posição de executado, e não de terceiro estranho à lide.
Sendo assim, embora muitos autores se posicionem no sentido de que será cabível, quando declarada a superação da autonomia patrimonial da pessoa jurídica, a oposição de embargos de terceiro, é relevante esclarecer que este não é o meio apropriado para que o sócio atingido pela desconsideração possa se defender, mas sim a oposição de embargos à execução.
A esse respeito convém conferir posicionamento do Superior Tribunal de Justiça:
PROCESSO CIVIL. CIVIL. LOCAÇÃO. DESCONSIDERAÇAO DA PERSONALIDADE JURIDICA. INCLUSAO DOS SÓCIOS NO POLO PASSIVO DA EXECUÇAO. EMBARGOS DE TERCEIROS. NÃO-CABIMENTO. PRECEDENTES. AUSENCIA DE CONDUTA CULPOSA POR PARTE DO SÓCIO MINORITÁRIO. REEXAME DE MATÉRIA FÁTICO-PROBATÓRIA. IMPOSSIBILIDADE. SÚMULA 7/STF. AGRAVO REGIMENTAL IMPROVIDO.
1. Havendo desconsideração da personalidade jurídica, os sócios passam a ser parte no processo de execução, pelo que se mostra cabível o oferecimento de embargos do devedor, e não de terceiros. Precedentes.
2. É impossível, na estreita via do recurso especial, analisar a existência, ou não, de conduta culposa da sócia minoritária a autorizar a despersonalização da personalidade jurídica da sociedade, por demandar o reexame do conjunto probatório. Óbice súmula 7/STJ.
3. Agravo regimental improvido. [87]
Cumpre observar, contudo, que o manejo dos embargos à execução somente é possível quando tratar-se de execução de título extrajudicial, tendo em vista que a promulgação da Lei n°. 11.232/2005 alterou o procedimento executivo no caso de título judicial que impõe o pagamento de quantia certa, estabelecendo como meio de defesa do executado o oferecimento de impugnação.
O novo procedimento previsto nesta Lei é ainda mais rigoroso, pois o não cumprimento voluntário da obrigação contida no comando sentencial acarretará o acréscimo de uma multa de dez por cento sobre o valor devido. Além disso, o oferecimento da impugnação, que deverá se dar no prazo de quinze dias da intimação do auto de penhora e avaliação, em regra, não tem efeito suspensivo, mas poderá o juiz atribuir-lhe tal efeito, se o prosseguimento da execução for suscetível de causar grave dano de difícil ou incerta reparação ao executado.
Diante do exposto, pode-se concluir que o sócio ou administrador da sociedade atingido pela decisão de desconsideração da personalidade jurídica nos próprios autos do processo de execução deverá oferecer impugnação à execução, no prazo de quinze dias, no caso de execução de título judicial, ou embargos à execução, no prazo de dez dias, no caso de execução de título extrajudicial.
4.2.3. Instauração de um incidente processual na fase de execução
Na tentativa de resolver os conflitos apresentados pelas atuais formas de aplicação da desconsideração, a doutrina e a jurisprudência vêm desenvolvendo uma solução intermediária, capaz de atender aos princípios da celeridade e da efetividade processuais, e respeitar os princípios do contraditório e da ampla defesa, garantindo a segurança jurídica nas relações processuais.
A solução consiste na aplicação da desconsideração da personalidade jurídica do ente coletivo por meio da instauração de um incidente processual no curso do processo de execução.
Para permitir uma melhor compreensão dessa proposta, convém tecer algumas considerações acerca do que é e de como se processa um incidente processual.
Leciona Dinamarco que:
Incidentes do processo, ou do procedimento, são procedimentos menores, anexos e paralelos ao principal e dele dependentes. Eles são compostos por uma série de atos coordenados como dispuser a lei, todos endereçados à pronuncia de uma decisão judicial sobre algum pedido ou requerimento das partes, referente ao processo principal. [88]
O incidente processual poderá ser processado em autos apartados e apensos ao processo principal ou nos próprios autos deste, além disso, a sua instauração poderá ou não suspender o curso do processo principal. Na hipótese de o incidente ter efeito suspensivo, não poderão ser praticados atos processuais no bojo do processo principal até que aquele seja decidido. Em verdade, trata-se de uma suspensão imprópria, já que os atos do incidente são atos do próprio processo principal. [89]
No caso da desconsideração da personalidade jurídica do ente coletivo, o incidente versará sobre a possibilidade de responsabilizar os membros ou administradores da sociedade por dívidas formalmente imputadas a esta, em face de eventual fraude ou abuso de direito praticados por aqueles através da manipulação indevida da pessoa jurídica.
A instauração do incidente de desconsideração, em atenção ao disposto no art. 50 do CC-2002, dar-se-á por meio de requerimento do credor da sociedade ou do Ministério Público, nas hipóteses em que couber sua intervenção. Este incidente será processado em autos apartados e apensos ao processo de execução e suspenderá o seu prosseguimento até a decisão final do incidente.
No incidente, haverá oportunidade de os sócios que o credor social pretende sejam responsabilizados conhecerem os fatos que lhes são imputados e manifestarem-se sobre esses mesmos fatos. Além disso, haverá espaço para a produção das provas que as partes e o juiz considerarem pertinentes, podendo, assim, o juiz formular seu livre entendimento acerca da existência ou não do abuso da personificação societária legitimador da superação da autonomia patrimonial da pessoa jurídica. Somente depois de decidido o incidente processual de desconsideração, poderá ser efetuado qualquer ato constritivo do patrimônio dos sócios, ressalvada a hipótese de deferimento de medida cautelar.
De acordo com este procedimento, os sócios podem se manifestar, antes que o juiz profira decisão a respeito do pedido de desconsideração formulado pelo exeqüente, exercendo de forma plena o seu direito ao contraditório e à ampla defesa. Ademais, a aplicação da desconsideração por incidente processual é célere, efetivando-se dentro da mesma relação jurídica processual, o que o torna compatível com os princípios da celeridade e da economia processuais.
É relevante destacar, ainda, que este procedimento respeita a excepcionalidade e a cautela características da decretação da superação do princípio da autonomia patrimonial do ente coletivo, tendo em vista que esta somente pode ser efetivada após a comprovação cabal dos requisitos legais necessários para tanto.
Gilberto Gomes Bruschi, ao manifestar-se sobre a possibilidade de aplicação da desconsideração por meio da instauração de um incidente processual na fase de execução, sugere que o procedimento a ser utilizado poderá seguir o trâmite previsto nos artigos 390 a 395 do CPC para o processamento do incidente de falsidade documental. Nesse sentido, assevera:
1. O exeqüente faz a alegação de que estão preenchidos os requisitos autorizadores da aplicação da teoria da desconsideração da personalidade jurídica, anexados os documentos balizadores desse pedido;
2. O juiz recebe tal petição e ordena a autuação em apenso ao processo de execução, do incidente de desconsideração da personalidade jurídica, intimando-se o(s) executado(s) e os terceiros interessados que serão aqueles contra os quais o exeqüente pretende que se faça a constrição dos bens, concedendo-lhes prazo de 10 (dez) dias para manifestação sobre as alegações feitas pelo exeqüente;
3. Após a resposta sobre o pedido de desconsideração da personalidade jurídica, ou ter decorrido o prazo para tanto, deverá o juiz, caso seja necessário designar audiência para oitiva de testemunhas dos fatos alegados, e após sua realização, decidir por sentença, no prazo de 10 (dez) dias, se acatará ou não tal pedido. Caso não necessite ouvir as testemunhas, bastando aquelas provas carreadas aos autos pelas partes e interessados, deverá prolatar sentença em igual prazo;
4. Caso seja deferida a desconsideração, ensejará a penhora dos bens dos terceiros que não faziam parte do pólo passivo da execução, e continuarão a não integrá-lo, pois apenas será feita a penhora de seus bens, não deixando de existir a pessoa jurídica;
5. Contra a sentença que deferir ou indeferir o pedido de desconsideração caberá apelação, sem efeito suspensivo, devendo subir ao tribunal apenas e tão-somente o incidente processual e desconsideração da personalidade jurídica, extraindo-se uma cópia da decisão para que seja juntada aos autos do processo de execução;
[...] [90].
É de adotar-se o procedimento apresentado pelo referido autor em analogia ao art. 392 do CPC, porém, com ressalvas especificamente no que tange à natureza da decisão que resolve o incidente processual de desconsideração e à inclusão dos sócios no pólo passivo da execução.
Ao contrário do que afirma Bruschi, o juiz, ao compor o conflito deduzido no incidente, proferirá uma simples decisão interlocutória e não uma sentença, já que não põe fim ao processo de execução, mas sim há uma questão incidente que surgiu nos autos deste [91]. Assim, contra esta decisão caberá o recurso de agravo e não de apelação.
Ademais, é relevante esclarecer que, uma vez decretada a desconsideração da personalidade jurídica da sociedade, a responsabilidade pelo cumprimento das obrigações formalmente imputadas a sociedade é atribuída ao sócio, em virtude do que este passa a integrar o pólo passivo da execução, deixando de ser um terceiro estranho à lide.
Esta forma de aplicação da desconsideração da personalidade jurídica é defendida por diversos doutrinadores, dentre os quais podemos destacar Fredie Didier Jr.:
Também entendemos possível a citação do sócio já no processo de execução, desde que se instaure um incidente cognitivo – o que não é raro nem esdrúxulo – no processo executivo, para que se apure, em contraditório, o preenchimento dos requisitos legais que autorizam a aplicação da teoria, bem como se lhe permita o exercício da sua ampla defesa. [92]
No mesmo sentido, têm-se posicionado alguns autores que defendem a aplicação da desconsideração na fase de execução, levando em consideração a possibilidade de o credor somente tomar conhecimento das circunstâncias autorizadoras da desconsideração depois de já ter sido proposta a ação de conhecimento contra a sociedade. A exemplo, pode-se citar Pablo Stolze Gagliano:
Todavia, se a pessoa jurídica, no momento do processo de conhecimento, estava "saudável financeiramente", mas os fatos autorizativos da desconsideração da personalidade jurídica – que, repita-se, prescindem do elemento subjetivo – surgem posteriormente, parece-nos que é extremamente razoável admitir-se um procedimento incidental na própria execução – que permita o contraditório e a ampla defesa assegurados constitucionalmente – para levantar o véu corporativo neste momento processual, sob pena de se fazer tábula rasa da própria coisa julgada e pouco caso da atividade jurisdicional. [93]
Há de notar-se, contudo, que mesmo no procedimento em espeque haveria cerceamento do direito de defesa da parte atingida pela desconsideração, tendo em vista que, embora lhe seja concedida a oportunidade de se manifestar acerca da existência ou não das circunstâncias legitimadoras da desconsideração, não poderá discutir a dívida em si, uma vez que esta constitui objeto de título judicial transitado em julgado e em execução.
No entanto, Fredie Didier Jr., ao constatar a existência deste problema, sustenta que: "Se a desconsideração por incidente ocorrer em execução de título judicial, tendo em vista que o sócio não participou do processo de conhecimento, a ele será permitido formular defesa ampla, podendo rediscutir a existência da dívida". [94]
É extremamente plausível que o sócio ou administrador da sociedade, ao apresentar sua manifestação no incidente processual, realize a sua defesa em relação ao conteúdo do título judicial que está sendo executado, uma vez que não teve a oportunidade de fazê-la no momento processual adequado, qual seja em sede de contestação no processo de conhecimento.
Ressalte-se que este problema não se verifica quando a desconsideração é aplicada por meio de incidente instaurado em execução por título executivo extrajudicial, já que o art. 745 do Código de Processo Civil [95] já contempla a possibilidade de o devedor aduzir em sua manifestação matérias típicas de defesa no processo de conhecimento.
Impende observar, ainda, que alguns autores afirmam que a aplicação da superação da autonomia patrimonial da pessoa jurídica por meio de incidente processual pode comprometer a efetividade do processo, devido a influência negativa da morosidade deste procedimento para a satisfação do crédito. Contudo, tal afirmação não pode prosperar, tendo em vista que o risco de insatisfação do direito do credor pode ser remediado pela utilização das providências cautelares previstas na legislação processual civil, desde que preenchidos os requisitos necessários para tanto.
Diante de tudo que foi exposto, entendemos que, quando o credor social somente toma conhecimento das circunstâncias autorizadoras da desconsideração depois de já ter sido proposta a ação de conhecimento contra a sociedade, a instauração de um incidente processual no curso do processo de execução para a decretação da desconsideração da personalidade jurídica é um procedimento legítimo e seguro, tendo em vista que observa as normas e os princípios que regem o sistema jurídico processual brasileiro.
4.3. PROJETO DE LEI N°. 2.426/2003
No intuito de preencher as lacunas existentes no direito positivo nacional quanto à forma e ao momento de aplicação da desconsideração da personalidade jurídica e de estabelecer diretrizes para evitar a aplicação abusiva do instituto previsto no art. 50 do Código Civil de 2002, o Deputado Ricardo Fiúza apresentou um projeto de lei federal sobre a matéria.
Vejamos, assim, o inteiro teor deste projeto:
Art. 1º. A desconsideração da personalidade jurídica, para fins de imputar obrigação passiva da pessoa jurídica a seu membro, instituidor, sócio ou administrador obedecerá aos preceitos desta lei.
Parágrafo único. Aplica-se, também, o disposto nesta lei às decisões da justiça comum, federal e estadual, e da justiça do trabalho que implicarem na responsabilização direta, em caráter solidário ou subsidiário, do membro, instituidor, sócio ou administrador pelos débitos da pessoa jurídica.
Art. 2º. A parte que postular, no processo de execução, a desconsideração da personalidade jurídica ou a responsabilidade pessoal de membro, instituidor, sócio ou administrador por débito da pessoa jurídica, indicará, necessária e objetivamente, em requerimento específico, quais os atos praticados e as pessoas deles beneficiados, o mesmo devendo fazer o Ministério Público nos casos em que lhe couber intervir na lide.
Parágrafo único. Nas hipóteses em que a execução puder ser promovida de oficio pelo juiz, a decisão que declarar a desconsideração da personalidade jurídica ou aquela cujos efeitos implicarem na responsabilização pessoal de terceiros por débitos da pessoa jurídica, além de nominar as pessoas atingidas, deverá indicar, objetivamente, quais os atos por elas praticados, sob pena de nulidade.
Art. 3º. Antes de declarar que os efeitos de certas e determinadas obrigações sejam estendidos aos bens particulares dos membros, instituidores, sócios ou administradores da pessoa jurídica, o juiz estabelecerá o contraditório, facultando-lhes o prévio exercício da ampla defesa.
§ 1°. O juiz, ao receber a petição, ou mesmo nos casos em que verificar, de oficio, a presença dos pressupostos que autorizem a desconsideração da personalidade jurídica ou a responsabilização direta dos membros, instituidores, sócios ou administradores da pessoa jurídica, mandará instaurar o incidente, em autos apartados, determinando o chamamento dos terceiros eventualmente atingidos em seus patrimônios pessoais para se defenderem no prazo de 05 dias, facultando-lhes a produção de provas. Em seguida, decidirá o incidente, e dessa decisão, de natureza interlocutória, caberá recurso ao tribunal competente.
§ 2º. Sendo várias as pessoas eventualmente atingidas, os autos permanecerão em cartório e o prazo de defesa para cada um deles contar-se-á a partir da respectiva citação, quando não figuravam na lide como parte, ou da intimação pessoal se já integravam a lide, sendo-lhes assegurado o direito de obter cópia reprográfica de todas as peças e documentos dos autos ou das que solicitar, e juntar novos documentos.
§ 3º. Nos casos de citação por edital ou com hora certa, aplicar-se-á o disposto no art. 9°, inciso II, da Lei n° 5.869/73 (Código de Processo Civil).
Art. 4º. Sempre que constatar a existência de simulação ou de fraude à execução, o juiz, depois de declarar a ineficácia dos atos de alienação e constringir os bens alienados em fraude ou simulação, poderá determinar a responsabilidade pessoal dos membros, instituidores, sócios ou administradores que hajam concorrido para fraude, observado o disposto no artigo anterior, sendo vedado o chamamento de outras pessoas antes de esgotados todos os meios de satisfação do crédito por parte dos fraudadores.
Art. 5º. O juiz somente pode declarar a desconsideração da personalidade jurídica ouvido o Ministério Público e nos casos expressamente previstos em lei, sendo vedada a sua aplicação por analogia ou interpretação extensiva.
Parágrafo único. A mera inexistência ou insuficiência de patrimônio para o pagamento dos débitos contraídos pela pessoa jurídica não autoriza a desconsideração da personalidade jurídica quando ausentes os pressupostos legais.
Art. 6º. Os efeitos da declaração de desconsideração da personalidade jurídica não atingirão os bens particulares de membro, instituidor, sócio ou administrador que não tenha praticado ato abusivo da personalidade em detrimento dos credores da pessoa jurídica ou em proveito próprio.
Art. 7º. As disposições desta lei aplicam-se imediatamente a todos os processos em curso perante quaisquer dos órgãos do Poder Judiciário referidos no art. 92 da Constituição Federal, em qualquer grau de jurisdição, sejam eles de natureza cível, fiscal ou trabalhista.
Art. 8º. Não se aplicam os dispositivos desta lei quando, pela expressão percentual da participação atual de um sócio, verificável na data em que requerida a desconsideração, a pessoa jurídica devedora, que haja regularmente sido chamada a integrar a lide de conhecimento, se identificar com a pessoa física.
Art. 9º. Esta lei entra em vigor na data de sua publicação.
O primeiro ponto importante do projeto de lei em comento foi ter contemplado a diferença entre a desconsideração da personalidade jurídica e a responsabilidade direta dos sócios ou administradores pelas dívidas da sociedade, embora, como estudado em capítulo anterior, muitos doutrinadores, a jurisprudência e até mesmo algumas legislações confundam estes instrumentos jurídicos.
O projeto reafirmou a legitimidade da parte interessada (credor) e do Ministério Público para requerer a desconsideração da personalidade jurídica, estabelecendo a necessidade de que sejam indicados objetivamente, no requerimento, os atos praticados e as pessoas que dele se beneficiaram.
Ademais, previa a possibilidade de aplicação da desconsideração de ofício pelo juiz, nos casos em que a execução poder ser promovida ex officio, devendo também ser observadas as exigências impostas ao requerimento realizado pela parte interessada ou pelo Ministério Público. Ocorre que esta possibilidade não se aplica ao processo civil, tendo em vista que a instauração do processo de execução de titulo judicial que impõe obrigação de pagar quantia certa neste depende da iniciativa da parte exeqüente, conforme se depreende do disposto no §5° do artigo 475-J e do art. 614 do CPC [96].
Nesse sentido, leciona Fredie Didier Jr.:
Como a desconsideração é útil principalmente na execução de prestação pecuniária, e essa somente pode começar ex officio no âmbito da Justiça do Trabalho, a incidência deste parágrafo único [do art. 2º] ficará restrita à execuções destes créditos. Obviamente, essa realidade normativa pode ser alterada com a edição de lei federal que generalize a possibilidade de o magistrado dar início de ofício à execução para pagamento de quantia. [97]
É contemplada, ainda, a necessidade de assegurar-se previamente o pleno exercício do contraditório e da ampla defesa pelas pessoas que poderão ser atingidas pela desconsideração, a fim de garantir a legitimidade e a regularidade do procedimento.
A respeito da garantia do contraditório, advertem Pablo Stolze e Rodolfo Pamplona:
Tal garantia do contraditório, todavia, em nosso sentir, não poderá impedir a concessão de medida liminar, quando verificados os pressupostos da tutela de urgência, pois tal entendimento, a par de absurdo, vulneraria o princípio da inafastabilidade do controle judicial, prejudicando a efetividade do processo. [98]
Observe-se que o projeto estabelece expressamente, no parágrafo primeiro do art. 3°, as diretrizes que deverão orientar a aplicação da superação da autonomia patrimonial da pessoa jurídica. Nesse sentido, prevê um procedimento próprio para a decretação da desconsideração, que se realizará mediante a instauração de um incidente processual de desconsideração da personalidade jurídica, em autos apensos ao processo de execução, no qual deverão ser citadas ou intimadas as pessoas que podem ser atingidas pelos efeitos da decretação da desconsideração, a fim de que apresentem sua defesa no prazo de cinco dias, bem como requeiram a produção das provas que entenderem necessárias.
A decisão que solucionar o incidente terá a natureza de decisão interlocutória, em razão do que o recurso contra ela cabível será o agravo de instrumento.
Assim, o projeto em espeque consagra uma das formas de aplicação da desconsideração defendida neste trabalho, contudo comete uma impropriedade ao exigir a participação obrigatória no incidente de desconsideração do Ministério Público, na condição de custus legis, tendo em vista que nesses casos trata-se de interesses patrimoniais e disponíveis, não configurando, portanto, hipótese de intervenção compulsória do Ministério Público.
Ressalte-se que o projeto contribui ainda para resolver os dilemas existentes em relação ao alcance subjetivo da desconsideração, pois estabelece, em seu art. 6°, que os efeitos da desconsideração não atingirão membros, sócios ou administradores da pessoa jurídica que não tenham praticado ato abusivo do direito à personificação societária em detrimento de terceiros ou em proveito próprio.
Outra contribuição importante deste projeto é consolidar na lei a impossibilidade de a simples ausência de bens da pessoa jurídica, por si só, ensejar a aplicação da desconsideração da separação patrimonial entre a pessoa jurídica e os seus membros ou administradores. Ratifica, assim, a necessidade de preencher os pressupostos previstos na legislação material e elimina a possibilidade de aplicação abusiva da desconsideração.
Contudo, o projeto comete um equívoco ao autorizar que, nos casos em que a pessoa jurídica, pela expressão percentual da participação de um sócio, identificar-se com a pessoa física, não sejam aplicados os seus dispositivos, tendo em vista que, por mais evidente que seja o ato abusivo ou fraudulento cometido pelo sócio ou administrador da sociedade, a todos é assegurado constitucionalmente o contraditório e a ampla defesa. Dessa forma, independentemente do grau da fraude ou do abuso de direito, deve se respeitar os princípios do contraditório e da ampla defesa, como pressupostos para a realização de um processo válido e legitimo.
A esse respeito, professora Fredie Didier Jr.:
Não se reputa conveniente a restrição, que é muito perigosa, pois pressupõe que há situações "obviamente fraudulentas", que dispensariam o contraditório, e outras não tão escancaradas, para as quais o contraditório se impõe. Em toda discussão judicial, a única certeza que devem ter os litigantes é a da previsibilidade dos meios, pois o resultado do debate é sempre incerto [LUHMANN]. [...] Não se deve aceitar que o "óbvio" dispense o contraditório. Trata-se de precedente assaz perigoso. [99]
Registre-se também que o projeto não regulamentou a desconsideração inversa, segundo a qual o juiz pode desconsiderar a personalidade da pessoa jurídica para responsabilizá-la por obrigações assumidas pelos seus sócios.
Diante de tudo que foi exposto, é possível constatar a existência de uma tendência legislativa no sentido de considerar a decretação da desconsideração nos próprios autos da execução um procedimento equivocado, tendo em vista que, ao contrário das implicações decorrentes deste procedimento, o projeto de lei em enfoque fixa a necessidade de garantir o exercício prévio do contraditório e da ampla defesa pelas pessoas que podem ser atingidas pela desconsideração.
Por outro lado, a aplicação da desconsideração por instauração de um incidente processual no processo de execução é expressamente prevista no projeto como a forma pela qual a superação da autonomia patrimonial da pessoa jurídica deverá ser decretada.
Embora o projeto não faça qualquer referência à possibilidade de a desconsideração ser decretada em sede de processo de conhecimento, através da utilização do litisconsórcio facultativo eventual, entende-se ser admissível tal procedimento, uma vez que ele respeita os princípios do devido processo legal, do contraditório e da ampla defesa, e não contraria nenhuma norma processual vigente.
Ressalte-se, contudo, que o projeto de lei em espeque foi arquivado em 31 de janeiro de 2007, nos termos do artigo 105 [100] do regimento interno da Câmara dos Deputados.
Sendo assim, resta-nos esperar que outras iniciativas legislativas sejam tomadas, no intuito de acabar com a multiplicidade de entendimentos existente na ordem jurídica pátria acerca da forma de aplicação da desconsideração da personalidade jurídica, observando os aspectos positivos do projeto arquivado e corrigindo os equívocos analisados. Registre-se que somente assim poderá ser assegurada segurança jurídica às relações processuais, além de garantir que a desconsideração não será aplicada de forma abusiva.