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Direito penal do inimigo e controle social no Estado Democrático de Direito

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Agenda 27/02/2008 às 00:00

Resumo: O presente trabalho analisa brevemente o direito penal do inimigo como forma de controle social, de modo a concluir que o direito penal do inimigo é incompatível com o Estado democrático de direito e com o respeito aos direitos da pessoa humana.

Palavras-chave: Direito penal do inimigo; Controle social; Estado democrático de direito.

Title: Criminal law for the enemy and social control in the democratic State of law.

Abstract: This essay makes a brief analysis on the criminal law for the enemy as a kind of social control, in a way to conclude that the criminal law for the enemy is incompatible with the democratic State of law and with the respect to the rights of the human person.

Keywords: Criminal law for the enemy; Social control; Democratic State of law.


1. DIREITO PENAL E CONTROLE SOCIAL

Winfried Hassemer [01], em conferência proferida na Universidade de Salamanca, disse, muito acertadamente, que a abolição do direito penal não é de forma alguma uma opção agradável aos seres humanos e muito menos para os seus direitos humanos. É que a existência da pena é de grande relevância para o controle social da vida quotidiana: os seres humanos necessitam do direito penal, do direito processual penal e das penas para a sua própria proteção.

A observância do direito penal a partir do prisma do controle social implica no fato de que as sanções penais resultam da necessidade de se manter a ordem, a paz e o equilíbrio quotidianos ou, melhor, da sociedade. Francesco Carrara [02] ensina que o delito se constitui como "a infração da lei do Estado, promulgada para proteger a segurança dos cidadãos, resultante de um ato externo do homem, positivo ou negativo, moralmente imputável e politicamente danoso". Sob essa perspectiva, o delito é um comportamento contrário à ordem social, tendente a prejudicá-la, de modo que se faz necessária uma repressão: a sanção penal.

A sanção penal, ao lado das sanções cíveis (ou não-criminais), é uma das formas de controle social, o qual, teoricamente, é o mesmo para todos, ou, como deixa entrever Fernando da Costa Tourinho Filho [03]: todo ser humano está sujeito à existência da pena, a qual se constitui em uma reação estatal à violação de bens e interesses tutelados pelas normas penais. É que o Estado, como representante da sociedade, detém o direito de punir (ius puniendi), de modo que o deve utilizar corretamente, vale dizer: a infração que supostamente tenha violado bem ou interesse tutelado pela ordem legal penal deverá receber a devida apuração, com respeito a todos os procedimentos processuais penais e a todas as garantias da pessoa humana.

Entende-se, assim, que a sanção penal é uma forma de controle social e que deve ser limitada e regulamentada, haja vista constituir forma "de invasão do Poder Estatal na liberdade" do ser humano [04], de modo que há que se respeitar o rol de garantias e de direitos estabelecidos pelo Estado democrático de direito. A aplicação da sanção penal mediante o correto procedimento e com respeito às garantias que todo indivíduo possui é interesse de toda a sociedade, tanto daqueles que sofrem os delitos quanto daqueles que os praticam: "naturalmente, os delinqüentes também estão interessados em que o ordenamento jurídico continue a ter vigência [05]", isto é, uma pessoa que se apropria indevidamente do dinheiro de outra não há de querer que terceiro se aproprie do dinheiro seu ou de familiar seu; do mesmo modo que um sujeito inocente acusado de ter matado outrem quer que seja devidamente processado e julgado, para, muito provavelmente, caso não haja algum acidente de percurso, como queima de arquivo ou erro do judiciário, ser absolvido. O direito penal, considerado em seus aspectos material e processual, afora as garantias de praxe contempladas, de regra, pelo Estado democrático de direito, serve para punir (condenar) e para absolver.

É por isso que não se pode pretender abolir o direito penal, haja vista este promover, ao lado de outras normas sociais (não-jurídicas), o controle social, de modo a manter a sociedade em equilíbrio e ordem: "o direito penal não é somente uma realização das necessidades punitivas da sociedade, ele é ao mesmo tempo também seu rompimento; ele é controle social e, ao mesmo tempo sua formalização [06]". Ao que diz Francesco Carrara [07]:

O fim da pena não é que se faça justiça, nem que seja vingado o ofendido, nem que seja ressarcido o dano por ele sofrido; ou que se amedrontem os cidadãos, expie o delinqüente o seu crime, ou obtenha a sua correção. Podem, todas essas, ser conseqüências acessórias da pena, algumas delas desejáveis; mas a pena permaneceria como ato inatacável mesmo quando faltassem todos esses resultados.

O fim primário da pena é o restabelecimento da ordem externa da sociedade.

O fim primeiro da sanção penal é restabelecer, após uma condenação ou uma absolvição, a ordem, a sensação de segurança da coletividade como um todo, e, reflexamente, caso seja possível, a sensação da parte que foi vítima do delito ou que foi vítima de acusação infundada de ter sido feita justiça. E aí está a necessidade de um direito penal enquanto controle social voltado para o devido processo legal, com fulcro nos direitos humanos fundamentais, para se aplicar, ou não, uma sanção.

Nesse sentido é que será desenvolvido o seguinte breve ensaio, de se dizer: todo ser humano, sem qualquer tipo de distinção, possui todas as garantias e todos os direitos que lhes são conferidos pelo Estado democrático de direito, dentre eles, um principal, a dignidade da pessoa humana.


2. ESTADO DEMOCRÁTICO DE DIREITO E CONTRATO SOCIAL

O Estado democrático de direito funda suas bases, de acordo com Reinhold Zippelius [08], no que se chama de Constituição material, a qual conforme lição de Paulo Bonavides [09] é vista como o conjunto de normas que permite uma melhor e mais organizada convivência social e que cujo conteúdo básico se refere "à composição e ao funcionamento da ordem política"; e, dentro desse conteúdo básico, se situam os direitos da pessoa humana, os quais são assegurados a todos. Portanto, não permite o Estado democrático de direito que existam indivíduos que não tenham, para si, assegurados os direitos inerentes a toda e qualquer pessoa humana. Como bem destaca Bernardo Feijoo Sánchez [10], não é possível dizer, como quer Jakobs, que cidadão, ou pessoa é aquela que se mostra fiel ao direito, haja vista que isso equivaleria a dizer: "o inimigo não seria um sujeito de direito, e sim apenas um objeto deste". Ou seja: a conclusão jakobsiana é incompatível com o Estado democrático de direito atual.

Pela formulação teórico-descritiva de Jakobs, o direito penal moderno poderia ser dividido em dois ramos: o direito penal do cidadão, para pessoas, e o direito penal do inimigo, para não-pessoas. Deve-se, a princípio, levar em conta que a doutrina mais recente considera não haver distinção entre cidadãos e pessoas, direitos do cidadão e direitos humanos fundamentais, de modo que cidadãos são pessoas e vice-versa, e direitos do cidadão e direitos humanos fundamentais são a mesma coisa. Assim, voltar-se-ia o direito penal do cidadão para as pessoas, sujeitos de direitos, e o direito penal do inimigo para as não-pessoas, objetos de direito.

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Bernardo Feijoo Sánchez [11] destaca que Jakobs, ao desenvolver sua distinção entre cidadão e inimigo, toma por espeque a doutrina contratualista de Hobbes. Nesse aspecto, destaca Elisangela Melo Reghelin [12]:

Jakobs parte [...] de um contrato individual, quando na realidade ele é social, aproximando-se da concepção individualista de Hobbes, para quem eram inimigos aqueles contrários ao contrato social, ou seja, aqueles que manifestam condutas próprias de um estado de natureza, e que, portanto, podiam ser punidos com as regras deste mesmo estado de natureza, onde todos são inimigos entre si; Jakobs também parte da existência dos grupos humanos paralelos: uma sociedade civil por um lado, e um grupo de inimigos em estado de guerra por outro (ou seja, de um lado os que assumiram o pacto; de outro, aqueles que não o fizeram).

Pela concepção hobbesiana, o contrato social surge da necessidade de haver harmonia e paz na relação entre os seres humanos, de maneira que cada indivíduo, para atingir esse fim, deve renunciar a seu direito de fazer tudo que quiser: quando todos renunciarem ao seu direito a todas as coisas, de fazer o que quiser fazer, estará presente a condição inicial e essencial para que se possa firmar um acordo; ou seja, a renúncia mútua a um mesmo direito pelos seres humanos permite que se elabore um contrato [13]. Portanto, o contrato hobbesiano visa pôr fim ao conflito estabelecido pela guerra de todos contra todos, de modo que, uma vez estabelecido o contrato, cabe aos contratantes cumprir cada um com sua parte, isto é, observar o contrato, de modo a renunciarem a seu direito conforme haviam prometido. E Jakobs [14] cita o entendimento de Hobbes que corrobora o modelo do direito penal do inimigo:

Hobbes distingue entre o cidadão delinqüente e o autor de alta traição; aquele é condenado segundo as leis promulgadas, este, ao contrário, é combatido enquanto inimigo, e a razão dessa distinção é patente, haja vista que aquele busca uma vantagem particular, o que não deve ser tolerado, apesar de não prejudicar a sociedade, enquanto que este, o traidor, combate o fundamento da sociedade, o qual, em Hobbes corporifica-se no domínio concreto.

Desta forma, a teoria jakobsiana instiga a sempre se ter em mente a formulação contratualista de aceitação ou não do contrato social: aqueles que não aceitavam o contrato social tal qual posto pela maioria dos indivíduos, seriam à margem deste considerados, e, por conseguinte, à margem da sociedade. Contudo, é evidente a incompatibilidade com o Estado democrático de direito, haja vista que, além de haver uma classificação entre as pessoas, como fiéis ou não ao direito, há a errada formulação de que, segundo sua fidelidade ao direito, isto é, se constituem ou não fonte presente e futura de perigo para a sociedade: as pessoas serão julgadas de acordo com leis diferentes, embora estejam sujeitas a um mesmo Estado democrático de direito.

Evidencia-se, assim, a diferença entre direito penal do cidadão e direito penal do inimigo, ou melhor: há na proposta de Jakobs uma importante e inconstitucional diferença entre a forma de controle social dispensada ao cidadão e aquela dispensada ao inimigo. O cidadão, portanto, sabe que sofrerá um processo penal, no qual estarão, em tese, assegurados seus direitos, e que poderá vir a ser condenado ou absolvido; ou seja, o cidadão tem pelo menos uma chance. Já o inimigo sabe que sofrerá um processo penal, o qual servirá apenas para cumprir as comuns "burocracias" do Estado democrático de direito, haja vista já estar previamente condenado; ou seja, o inimigo não tem chances.

Essa falta de chances que o inimigo suporta, ou é obrigado a suportar por não ter opção diversa, choca-se com o princípio da presunção de inocência, pelo qual o acusado só pode ser considerado culpado quando contra ele pesar uma sentença condenatória definitiva, e fundamentada em provas veementes da culpabilidade (não-inocência) do indivíduo. Portanto, constitui-se a presunção de inocência no impedimento de ser a liberdade de determinado sujeito restringida até se ter a certeza de sua responsabilidade, o que não quer dizer não poder o acusado ter sua liberdade restringida, e sim que tal restrição só pode ocorrer em situações excepcionais, como é o caso, por exemplo: da prisão preventiva e da prisão temporária.

Gustavo Henrique Righi Ivahy Badaró [15] destaca que "o princípio da presunção de inocência é reconhecido, atualmente, como componente basilar de um modelo processual penal que queira ser respeitador da dignidade e dos direitos essenciais da pessoa humana". Deste modo, é de se dizer que o desrespeito ao princípio da presunção de inocência anda de mãos dadas com o desrespeito ao princípio da dignidade da pessoa humana. Eduardo Reale Ferrari [16] bem observa:

De acordo com o princípio da dignidade da pessoa humana, nenhum cidadão pode ser sancionado desnecessária ou ilimitadamente, devendo haver restrições temporais máximas quanto à sua punição, respeitando-se o homem e seus atributos no instante da enunciação e aplicação dos preceitos primários bem como das sanções penais.

Assim, a dignidade da pessoa humana, enquanto princípio máximo do Estado democrático de direito, deve ser sempre respeitada, sob a possibilidade de que se o poder estatal não a respeitar seja nula qualquer condenação, a tomar por base o brocardo nulla poena sine humanitate.


3. EXCLUSÃO DO ESTADO DE PESSOA OU DE CIDADÃO

O direito penal do inimigo trabalha, pois, com o ponto de vista de que o cidadão é pessoa e, assim, sujeito de direitos, enquanto que o inimigo é não-pessoa, e, assim, objeto do direito. Tal entendimento promove o que se pode chamar de exclusão do estado de pessoa (status personae). Escreve Jakobs [17] que "todo aquele que prometa de modo mais ou menos confiável fidelidade ao ordenamento jurídico tem direito a ser tratado como pessoa de direito". De acordo com o próprio Jakobs [18]: "ser pessoa significa ter de representar um papel". Assim é que aquele que não quiser representar um determinado papel na sociedade, qual seja, o de prometer de modo credível que será fiel ao ordenamento jurídico será privado de seus direitos; e, se assim o for, não há que ser tratado como pessoa de direito. Aliás, Jesús-María Silva Sánchez [19] destaca o que seria para Jakobs o inimigo:

[...] o inimigo é um indivíduo que, mediante seu comportamento, sua ocupação profissional ou, principalmente, mediante sua vinculação a uma organização, abandonou o Direito de modo supostamente duradouro e não apenas de maneira incidental. É, assim, alguém que não garante a mínima segurança cognitiva de seu comportamento pessoal e manifesta este déficit por meio de sua conduta.

Pode-se perceber que a idéia de Jakobs muito se parece com o princípio básico do ostracismo helênico: aquele sujeito que não se compromete de maneira crível a não interferir na organização da cidade (polis), de modo a se comportar como um mal em potencial para a ordem estatal sofrerá exílio político pelo período de dez anos, durante os quais não terá seus direitos e só poderá retornar caso não mais se apresente como um mal social.

A idéia do inimigo segue o mesmo princípio básico do ostracismo: o inimigo é excluído da sociedade, de modo que lhe é aplicada uma lei totalmente distinta daquela aplicada ao cidadão e o prazo que tem para se retratar é o mesmo que tem para fornecer uma garantia cognitiva credível de que será fiel ao direito. Escreve, aliás, Silva Sánchez [20] que não há concepção teórica contemporânea (nem a do próprio Jakobs) que trate o delinqüente inimigo "como uma absoluta não-pessoa". Ou seja, o inimigo não é visto nem por Jakobs como um ser que não possua algumas garantias do Estado democrático de direito, o que não quer dizer, entretanto, que haja compatibilidade entre o direito penal do inimigo e o Estado democrático de direito.

Mesmo a não se falar em exclusão do status personae, mas em exclusão do estado de cidadão (status civitatis), como procura fazer Silva Sánchez, inexiste a possibilidade de haver uma compatibilização entre o direito penal do inimigo e o Estado democrático de direito: como dito mais acima, encontra-se, embora ainda haja alguma pouca voz em sentido contrário, superada a distinção pretendida entre pessoa humana e cidadão; assim, excluir-se o status civitatis é mesma coisa que se excluir o status personae. Ou seja: o direito penal do inimigo não se pode tornar de forma alguma, com espeque em nenhuma das duas argumentações, compatível com o Estado democrático de direito. Escreve com razão Luigi Ferrajoli [21] que: "a razão jurídica do Estado de direito não conhece inimigos e amigos, e sim apenas culpados e inocentes", de modo que "quando se fala em direito penal do inimigo se está a falar de um oximoro, de uma contradição terminológica, a qual representa, de fato, a negação do direito penal: a dissolução de seu papel e de sua íntima essência".

Refere-se Ferrajoli ao fato de ser impossível haver um direito penal do inimigo, haja vista ser o direito penal um só, isto é, ou é direito penal ou não é; de maneira que o que pode haver, em verdade, é o direito penal e os seus inimigos (diritto penale e i suoi nemici), conforme, ao que o próprio autor faz remissão, a expressão utilizada por Zaffaroni. Todavia, mesmo a mudar a expressão, não se pode dizer ter o direito penal inimigos, o que, se fosse aceito, ensejaria dizer ter o direito penal amigos, o que traria a questão de se saber que indivíduos seriam tidos como amigos e se bastaria, para tanto, serem não-inimigos. Portanto, como bem se expressou Luigi Ferrajoli, para o direito penal existem apenas indivíduos culpáveis e indivíduos inocentes, de maneira a permitir que a uns e outros seja aplicado o mesmo tipo de controle social: mesmas normas jurídico-penais e sanções, e mesmo respeito aos direitos humanos fundamentais.

Indubitável o acerto de Ferrajoli ao se posicionar pela indivisibilidade do direito penal e ao defender a opinião de que o direito penal não possui amigos nem inimigos, mas seres humanos, pessoas inocentes ou culpadas. Ora, o direito penal tem um objetivo precípuo: manter a ordem e a paz sociais, ao dividir o direito penal em duas esferas, uma voltada para os inimigos e outra voltada para os amigos do Estado democrático direito, nega-se não apenas o direito penal como o próprio Estado democrático de direito: se o Estado de direito é marcado por ser democrático, não se pode conceber uma diferenciação entre as pessoas.


4. RESPEITO AOS DIREITOS HUMANOS FUNDAMENTAIS

Assim, respeitar os direitos humanos fundamentais tem um sentido muito importante na atualidade: proteger o ser humano enquanto sujeito de direitos, de modo a efetivar a dignidade da pessoa humana. Os direitos da pessoa humana se encontram inseridos em todos os âmbitos da vida civil, de modo que precisam ser realizados, ou melhor, de maneira que o seu núcleo essencial precisa ser realizado, a fim de que se possa falar em respeito da dignidade da pessoa humana. No passo em que no presente ensaio se vem a referir, há que se falar em direitos fundamentais penais materiais e procedimentais, isto é, de se compreender, como destaca Jorge Miranda [22], os direitos fundamentais "não só estaticamente, ou da perspectiva de seu conteúdo, mas também dinamicamente, através das formas de sua efectivação, através do procedimento". Em suma, não basta simplesmente dizer-se que os indivíduos possuem direitos, é preciso que haja a efetivação desses direitos garantidos, e a primeira manifestação disso é um processo penal adequado, ou, como se acostumou dizer, um devido processo legal.

A crítica cá posta em relação ao direito penal do inimigo, ou mesmo na expressão de Ferrajoli direito penal e seus inimigos, encontra esteio na necessidade de, no controle social decorrente do direito penal material e processual, haver respeito pelo menos a um núcleo essencial de direitos humanos fundamentais; tal núcleo, como se pode extrair das palavras de Ana Paula de Barcellos [23], é "um conjunto formado por uma seleção desses direitos, tendo em vista principalmente sua essencialidade, dentre outros critérios". Como dito no início deste ensaio, quando se fez referência à conferência do professor alemão Winfried Hassemer: a todas as pessoas, sem quaisquer distinções, são assegurados direitos e garantias fundamentais, ou seja, independente do crime cometido e da reincidência, ocorra esta antes ou após o cumprimento da pena imposta ao indivíduo, o indivíduo mantém um mínimo essencial de seus direitos, a fim de que tenha respeitada sua dignidade humana.

É interessante como o enfoque do etiquetamento (labeling approach) muito se aproxima do criticado direito penal do inimigo, no passo que este tem por finalidade grudar a etiqueta de inimigo em alguns indivíduos, é um código de barras difícil, senão impossível, de retirar, e que muito lembra o delinqüente nos modelos de Cesare Lombroso.

Alessandro Baratta [24], ao se referir à abordagem do etiquetamento afirma que "a criminalidade não é um comportamento de uma restrita minoria, [...] mas, ao contrário, o comportamento de largos estratos ou mesmo da maioria dos membros de nossa sociedade"; de modo que, continua o professor italiano [25]:

[...] não se pode compreender a criminalidade se não se estuda a ação do sistema penal, que a define e reage contra ela, começando pelas normas abstratas até a ação das instâncias oficiais (política, juízes, instituições penitenciárias que as aplicam), e que, por isso, o status social de delinqüente pressupõe, necessariamente, o efeito da atividade das instâncias sociais de controle social da delinqüência, enquanto não adquire esse status aquele que, apesar de ter realizado o mesmo comportamento punível, não é alcançado, todavia, pela ação daquelas instâncias.

Escreve Winfried Hassemer [26] que "as teorias do labeling approach afirmam, em suas distintas versões, que a questão de que uma pessoa possa escapar ou não de uma sanção penal encontra sua resposta simplesmente na capacidade dessa pessoa em se livrar da justiça penal". Assim, pela abordagem do etiquetamento, os etiquetados são aqueles que não conseguem escapar da justiça penal, e, por conseguinte, são por ela punidos.

É ainda mais interessante o fato de que só é considerado inimigo, conforme coloca Silva Sánchez [27]: "para o Direito penal é inimigo aquele ser humano, e só aquele ser humano, a quem, na medida em que se considere fonte de mal-estar para aqueles que têm o poder jurídico de definição, nega-se-lhes a protecção penal".

Nesse prisma, é de se lembrar de as caçadas comandadas pelo governo norte-americano pelas cabeças de Osama bin Laden e de Saddam Hussein. Após os atentados terroristas de 11 de setembro de 2001, os Estados Unidos da América iniciaram sua política externa de guerras contra um suposto "eixo do mal", ou, a melhor dizer, inimigos dos Estados Unidos, de modo a burlar recomendações das Nações Unidas e a forjar documentos, como restou comprovado no caso da (in)existência de armas de destruição em massa no Iraque. A política de ataques ao Afeganistão, por tentar encontrar Osama bin Laden, o mentor intelectual dos ataques de 11 de setembro de 2001, e ao Iraque, por tentar encontrar Saddam Hussein, o "dono" de poços de petróleo cobiçados pelo governo norte-americano, tem seus efeitos a serem sentidos até a atualidade: os civis de ambos os países foram os mais prejudicados, bem como os soldados americanos, os quais continuam a morrer por causa da ambição expansionista bushiana de "querer fazer chegar a democracia a tais países", ou, nas palavras de um conhecido personagem de desenho animado: tentar dominar o mundo.

O exemplo acima não é único de como têm sido julgados, processados e condenados os inimigos do direito penal, mas é exemplo mundialmente conhecido. Tal como realizar cruzadas para eliminar infiéis, ou, ainda, eliminar a judeus e homossexuais em campos de concentração, e, até, quem sabe, dizer que homens negros não têm alma, e por isso podem ser utilizados como escravos.

Todos esses exemplos giram em torno de um eixo comum, qual seja o de se considerar determinados indivíduos como objetos, e não sujeitos de direito, o que, como dito mais acima, é a tônica da abordagem do direito penal do inimigo. De se dizer, uma verdadeira dissolução do direito penal material e processual e suas respectivas garantias, um enorme desrespeito aos direitos fundamentais dos seres humanos e uma tremenda violação à dignidade da pessoa humana.

Sobre o autor
Julio Pinheiro Faro Homem de Siqueira

Mestre em Direitos e Garantias Fundamentais pela Faculdade de Direito de Vitória (FDV). Diretor Secretário-Geral da Academia Brasileira de Direitos Humanos (ABDH). Membro do Comitê de Pesquisa da Faculdade Estácio de Sá, Campus Vitória (FESV). Professor de Introdução ao Estudo do Direito, Direito Financeiro, Direito Tributário e Processo Tributário, no Curso de Direito da FESV. Pesquisador vinculado ao Programa de Pós-Graduação Stricto Sensu da FDV. Consultor de Publicações; Advogado e Consultor Jurídico sócio do Escritório Homem de Siqueira & Pinheiro Faro Advogados Associados. Autor de mais de uma centena de trabalhos jurídicos publicados no Brasil, na Alemanha, no Chile, na Bélgica, na Inglaterra, na Romênia, na Itália, na Espanha, no Peru e em Portugal.

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

SIQUEIRA, Julio Pinheiro Faro Homem. Direito penal do inimigo e controle social no Estado Democrático de Direito. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 13, n. 1701, 27 fev. 2008. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/10989. Acesso em: 18 nov. 2024.

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