A Crítica
Tem-se visto muitas críticas ao sobredito projeto de lei, mormente por instituições e associações voltadas à defesa dos "direitos da mulher".
O argumento mais repetido por essas entidades se relaciona à possibilidade do aborto legal, reconhecida pelo Código Penal pátrio desde 1940. Sustentam que o projeto de lei seria um retrocesso, pois estaria na contramão de um direito reconhecido à mulher desde a primeira metade do século XX.
Outro argumento se refere à dignidade da mulher que estaria sendo comprada pelo preço de um salário mínimo mensal.
O Escopo
Todavia, é forçoso dizer que tais argumentos estão, na realidade, comprometidos com outra questão, qual seja, a atinente à liberação total e irrestrita do aborto, independentemente de sua motivação.
Não há dúvida, sob o pálio da defesa dos direitos da mulher, mais especificamente do direito à liberdade de escolha entre manter ou não a gravidez na hipótese prevista no artigo 128, inc. II do Código Penal, o que se tem em mira é tão-somente a abertura do caminho (ou a sua manutenção) para a descriminalização total e irrestrita do aborto.
O "problema" todo é que o referido projeto, embora não traga qualquer obstáculo ou restrição à figura do aborto legal já existente, aponta na direção da valorização da vida humana e de sua proteção desde a concepção. E isso causou incômodo aqui e acolá.
Os Argumentos Pífios
A denunciar o precitado escopo está a indigência, data maxima venia, do argumento segundo o qual o projeto de lei 1763/07 obstaria às vítimas de estupro a possibilidade do aborto nos termos em que é autorizado na legislação penal em vigor.
Ora, é de todo evidente que o referido projeto de lei em rigorosamente nada obsta à mulher a realização do aborto ao amparo da excludente de antijuridicidade prevista no art. 128, inc. II do Código Penal. Para que não reste dúvida, eis o teor do projeto:
"Art. 1º Os crimes de estupro terão investigação e persecução penais prioritárias.
Art. 2º Na hipótese de estupro devidamente comprovado e reconhecido em processo judicial, com sentença transitada em julgado, de que tenha resultado gravidez, deverá o Poder Público:
I – colocar gratuitamente à disposição da mulher toda assistência social, psicológica, pré-natal e por ocasião do parto e puerpério;
II – orientar e encaminhar, através da Defensoria Pública, os procedimentos de adoção, se assim for a vontade da mãe;
III – conceder à mãe que registre o recém nascido como seu e assuma o pátrio poder o benefício mensal de um salário mínimo para reverter em assistência à criança até que complete dezoito anos.
Art. 3º O pagamento será efetuado pelos Conselhos dos Direitos da Criança e do Adolescente, com recursos oriundos do Fundo Nacional de Amparo à Criança e ao Adolescente.
Art. 4º A fraude engendrada para caracterizar o estupro, para qualquer finalidade, será punida com reclusão de um a quatro anos e multa, sem prejuízo da devolução da importância recebida de má-fé, corrigida monetariamente.
Art. 5º As delegacias de polícia ficam obrigadas a informar às vítimas de estupro os direitos assegurados por esta lei, bem como as penalidades previstas em caso de fraude.
Art. 6º Esta lei entra em vigor no prazo de noventa dias a partir da data de sua publicação."
Conforme se nota, em cerca de dois minutos (tempo estimado para uma leitura pausada da íntegra do projeto de lei) é possível extrair uma certeza: a proposta do legislador em absolutamente nada prejudica o quanto previsto no inciso II do art. 128. do Código Penal, cuja transcrição se faz oportuna.
"Art. 128. - Não se pune o aborto praticado por médico:
(...)
Aborto no caso de gravidez resultante de estupro
II - se a gravidez resulta de estupro e o aborto é precedido de consentimento da gestante ou, quando incapaz, de seu representante legal".
Outrossim, não procede a alegação de compra da dignidade da mulher, ou da imoralidade dessa suposta compra. À mulher que eventualmente considere o benefício do projeto 1763 ofensivo à sua dignidade sempre restarão outras opções como o aborto legal ou a manutenção da gravidez sem a percepção da referida verba.
O Projeto
As críticas mais comuns ao projeto, as de maior repercussão na mídia, se ocupam, conforme visto, de um tema correlato, porém alheio, tal seja, a liberação irrestrita do aborto, ou a "preparação do terreno" para tanto. Mas o busílis – claro – está na própria questão.
Como sói acontecer, o tema central, o ponto nevrálgico, se revela numa "pergunta que não quer calar": deve o Estado, ou não, oferecer apoio financeiro às mulheres que se encontram na situação prevista no art. 128, inc. II do Código Penal, com vistas à preservação da vida?
A nosso ver, em princípio, a resposta seria parcialmente afirmativa.
Parcialmente, porque seria recomendável que esses recursos fossem direcionados à parcela mais necessitada da população. Referimo-nos às gestantes em situação de penúria, bem como às classes mais baixas, e, quiçá, à classe média-baixa. Contudo, esses fatores sócio-econômicos foram olvidados na redação do projeto de lei, o qual oferece auxílio financeiro indiscriminadamente, abrangendo, destarte, das desvalidas às mais abastadas vítimas.
Afirmativa, por nos afigurar de todo razoável que o Estado – o qual, no mais das vezes, já falhou em sua obrigação de oferecer segurança à cidadã vítima do crime de estupro – procure amparar a mulher assim vitimada.
A Nossa Crítica
O art. 1º do projeto estabelece prioridade na investigação e persecução penal dos crimes de estupro. Curiosamente, este artigo não chamou a menor atenção da mídia, não obstante o seu absurdo.
E é exatamente por absurdo, não por desinteresse ou muito menos por irrelevância que pouco nos ocuparemos deste tema. Basta dizer a respeito que falece razoabilidade, lógica, senão siso, à prioridade prevista no citado artigo 1º.
O art. 2º, por sua vez, fala em "sentença transitada em julgado". Isso significa que o benefício só virá (se vier) após o nascimento da criança, sempre. Cite-se ainda a corriqueira hipótese de prescrição.
Desse modo, cria-se um problema insolúvel, pois, se a exigência do trânsito em julgado, por um lado, é necessária em virtude de uma questão basilar de responsabilidade no trato de verbas públicas, por outro se mostra totalmente incompatível com a concessão de um benefício que tem na urgência uma de suas características essenciais, benefício, aliás, de natureza nitidamente alimentar.
Os incisos I e II do art. 2º merecem aplausos, sendo pouco provável ou relevante a eventual discordância a esse respeito. O mesmo não se pode dizer, todavia, do inciso III, que estabelece benefício mensal de um salário mínimo a ser pago até a maioridade da criança.
De início, parece-nos que o projeto peca pelo excesso, pois o benefício não cessa após o parto ou algum tempo depois deste evento, o que talvez seja o mais razoável, ao contrário, estende-se até a maioridade.
Essa extensão do benefício até a maioridade encerra uma virtude e um pecado. A virtude está no seguinte raciocínio: o Estado tem muitas incumbências, dentre elas interessa mencionar a de oferecer segurança aos cidadãos, coibir o crime, preservar a vida, prestar assistência social etc. Quando uma mulher é estuprada é sinal de que o Estado provavelmente falhou em sua tarefa de oferecer segurança e de coibir o crime.
Pois bem, se o Estado já incorreu nas falhas mencionadas no parágrafo anterior, isso não significa que deva incorrer nas demais, claro. É dizer, se não foi capaz de oferecer a segurança devida, se não foi capaz de impedir o crime, então, ao menos, que seja diligente no que tange à preservação da vida (do feto) e à assistência social.
E é esta a virtude e a justiça do projeto de lei 1763/2007, pelo qual o Estado praticamente "assumiria a paternidade" da criança gerada em circunstância tão adversa. Infelizmente, porém, há o outro lado da moeda.
A "Indústria do Estupro"
Ao estender o benefício até a maioridade da criança corre-se o "risco" (eufemismo para certeza) da criação de uma "indústria do estupro", fomentada por recursos públicos. Como diria a sabedoria popular, seria um "atirar no que viu e acertar no que não viu", ou não se quis ver(?).
Com a devida vênia, é ingenuidade, senão leviandade, crer que a sanção contida no art. 4º do projeto irá inibir a "indústria do estupro". Essa perversa indústria – que certamente existirá caso aprovado o projeto – criará um novo flagelo representado pelos pseudo-estupradores.
Ora, não é preciso mencionar os danos irreparáveis que um homem (com o "detalhe" eventual da inocência) certamente sofrerá se lançado em nossas prisões (verdadeiras sucursais do inferno), sobretudo em casos de estupro. Ninguém em sã consciência e de boa-fé pretende ver aumentado o número de inocentes presos, mas essa será a conseqüência se a denúncia for remunerada.
A só perspectiva da criação da mencionada "indústria" nos afigura terrível, tamanha a sua perversidade e o seu potencial danoso. Apenas num rápido e desagradável esboço, teríamos:
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O aumento do número de processos com acusações falsas;
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O conseqüente aumento dos crimes de calúnia;
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A sobrecarga da já combalida máquina do Judiciário;
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A sujeição de um maior número de inocentes ao constrangimento de uma ação penal, ainda por cima desta natureza;
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Danos morais e a busca de reparações no âmbito civil – mais processos;
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As condenações de inocentes que, pelos meandros do processo, não lograssem demonstrar a respectiva inocência;
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O descrédito que, com o passar do tempo, fatalmente sobreviria às alegações de estupro (mormente nas classes economicamente desfavorecidas) e o conseqüente prejuízo às verdadeiras vítimas.
Outra questão, secundária, mas não irrelevante, alude a uma segunda e permanente humilhação a que em regra estariam sujeitas as vítimas do estupro, qual seja, o constrangimento com hora e local marcados nas filas de pagamento do "bolsa estupro". Uma pecha, um estigma que, além de indesejável, per se, ainda se mostra discriminador, pois só atingirá a mulher carente que desejar levar adiante a gravidez, porquanto a que desfrutar de melhor condição financeira poderá mais facilmente abrir mão do citado "benefício".
Conclusão
Com certeza e insatisfação, concluímos que os contras superam os prós do projeto de lei 1763/2007. Entretanto, nenhuma dessas razões contrárias se relaciona ou de qualquer forma se mostra imbricada com o disposto no inciso II do artigo 128 do Código Penal, que estabelece uma excludente de antijuridicidade para a hipótese de aborto nos casos de gravidez decorrente de estupro.
A iniciativa do legislador, no intuito de preservar a vida desde a concepção, merece encômios, mas não assim o resultado de sua obra. Nesta, ao contrário, somente se desincumbiu a contento nos dois primeiros incisos do art. 2º.
Assim, se o Estado pretende cumprir seu dever social na hipótese sob comento, que o faça não em pecúnia, mas com serviços dignos e eficientes na área de saúde (serviços médico-hospitalares), com orientação psicológica e acompanhamento social, bem como com a agilização dos processos de adoção.