4. O caso dos servidores cedidos para o exercício de cargo em comissão
Sob ângulo complementar, a tese do ressarcimento à União de valores repassados pelo Fundo Constitucional, na hipótese de cessão de servidores ou investidura em cargos comissionados, mais ainda revela sua improcedência diante da igual situação em que se aplicaria a pretendida devolução de valores, no que concerne ao pessoal da Secretaria de Educação e de Saúde do Distrito Federal, serviços públicos também contemplados por dinheiro remetido pelo Tesouro da União.
Calha transcrever o quanto reza a Lei federal nº 10.633/2002 (negrito nosso):
Art. 1º Fica instituído o Fundo Constitucional do Distrito Federal – FCDF, de natureza contábil, com a finalidade de prover os recursos necessários à organização e manutenção da polícia civil, da polícia militar e do corpo de bombeiros militar do Distrito Federal, bem como assistência financeira para execução de serviços públicos de saúde e educação, conforme disposto no inciso XIV do art. 21 da Constituição Federal.
Inequivocamente, não há jurista que defenda que a Secretaria de Saúde ou de Educação do Distrito Federal sejam órgãos federais, nem que seus servidores sejam funcionários públicos da União, nem menos ainda que o Governador do Distrito Federal, em se tratando de agentes administrativos distritais, não possa decidir acerca da lotação, cessão ou eventual nomeação em cargos comissionados da Administração Pública local dos aludidos servidores distritais, dentro do seu poder hierárquico.
É preciso que o Excelentíssimo Senhor Governador do Distrito Federal peça autorização ao Excelentíssimo Senhor Presidente da República para escolher um médico da Secretaria de Saúde e nomear o servidor distrital em cargo em comissão da estrutura da Administração Pública do DF? É o Chefe do Poder Executivo da União quem possui competência para deliberar em que órgão e em quais circunstâncias convém, ou não, que um professor seja lotado num centro de ensino, e não em outro da rede educacional pública do DF, ou que o mesmo agente público seja relotado em estabelecimento de ensino diverso? Pode o Presidente da República impedir que o Governador do DF nomeie certa professora, servidora pública do DF, no cargo de diretora de colégio da rede oficial?
Deve o Governador do DF primeiro pedir a autorização federal para depois resolver sobre a investidura de médico, servidor distrital, em cargo comissionado de outro órgão diverso da Secretaria de Saúde, como o próprio Gabinete da Governadoria?
Se o Chefe do Poder Executivo do Distrito Federal conceder a cessão de um professor para a Câmara Legislativa do DF, por exemplo, deve haver a devolução parcial de valores repassados pelo Fundo Constitucional para o serviço de educação distrital?
A resposta a todas as perguntas precedentes é manifestamente não, maiormente em face da autonomia administrativa constitucional do Distrito Federal para dispor sobre o funcionamento de sua Administração Pública, no que se insere a discricionariedade acerca da investidura de servidores em cargos comissionados, a relotação, a cessão, a remoção e todos mais atos inerentes à gestão administrativa distrital, seara em cujo contorno não há como se invocar qualquer possibilidade de ingerência da União, sob pena de intolerável desacato ao princípio federativo.
Mais ainda, nem sequer as regras sobre cessão inseridas no direito positivo federal podem incidir em torno da matéria, no que concerne aos servidores públicos distritais da Secretaria de Educação e de Saúde, os quais são regidos pelo Estatuto do Funcionalismo estabelecido pela Lei distrital 197/1991, incorporado ao ordenamento jurídico distrital sem as alterações posteriores promovidas por leis federais supervenientes, exceto pelas leis distritais que trataram da matéria, no caso a Lei distrital n. 2.649, de 21-10-1999.
A Constituição Federal consagrou a autonomia político-administrativa ao Distrito Federal como ente federativo (art. 18, caput) e lhe reservou as competências legislativas conferidas aos Estados e Municípios (art. 32, §1º, c/c art. 25, caput), do que segue que o DF se rege pelas leis que queira adotar, observados os princípios constitucionais mandatórios, motivo por que é da alçada da pessoa política distrital estatuir o regime jurídico de seus servidores públicos por meio de lei própria, afigurando-se inconstitucional e manifesta violação ao Pacto Federativo compeli-la a se sujeitar às normas legais editadas pela União, e pelas outras entidades federadas. Nesse sentido, reza a Lei Orgânica do Distrito Federal:
"Art. 15. Compete privativamente ao Distrito Federal:
.............................................................................................................................................
XIII - dispor sobre a organização do quadro de seus servidores; instituição de planos de carreira, na administração direta, autarquias e fundações públicas do Distrito Federal; remuneração e regime jurídico único dos servidores;" (grifamos)
Calha a lição de José Afonso da Silva:
Já observamos noutro lugar que a Federação brasileira adotou o sistema de execução dos serviços, que consiste no fato de cada entidade autônoma (União, Estados, Distrito Federal e Municípios) executar seus serviços públicos diretos com seus próprios servidores. Por isso existem quadros de servidores federais, quadros de servidores estaduais, quadros de servidores distritais e quadros de servidores municipais. Todas essas entidades têm autonomia para estabelecer a organização e o regime jurídico de seus servidores, mas todas elas adstritas à observância dos princípios a esse respeito estatuídos nos arts. 37 a 42 da Constituição. [06]
Com efeito, embora o Distrito Federal tenha competência para legislar sobre o regime jurídico de seus servidores, ainda não editou o seu estatuto próprio, haja vista que, por força da Lei distrital nº 197 [07], de 04 de dezembro de 1991, entendeu por bem aplicar, no que couber, o texto original da Lei nº 8.112/90, que dispõe sobre o regime jurídico dos servidores civis da União, de suas autarquias e fundações públicas federais, de sorte que o estatuto federal adquiriu o status de lei local no âmbito do DF.
Ocorre que, desde então, a Lei federal nº 8.112/90 sofreu sucessivas alterações em seu texto original, cujos dispositivos modificados ou acrescentados não têm automática aplicabilidade no ordenamento jurídico distrital enquanto não recepcionados por lei própria editada pelo DF, o que ainda não sucedeu.
Estender ao Distrito Federal regra de regime jurídico fixado por leis editadas por outros entes federativos viola a autonomia constitucional, legislativa e administrativa do DF, consubstanciando atentado ao pacto federativo.
Portanto, se o Distrito Federal não está obrigado a se curvar à União no que concerne às medidas administrativas próprias da gestão de pessoal distrital, nem se admite que o Chefe do Poder Executivo do DF não possa decidir, como lhe convenha, sobre a cessão de servidores públicos distritais ou a escolha de professores ou médicos para investidura em cargos comissionados em órgãos da Administração Pública do DF diversos das Secretarias de Educação ou de Saúde, ou mesmo para a Câmara Legislativa do Distrito Federal, deflui que não cabe a pretensão de devolução de dinheiro público repassado pelo Fundo Constitucional para fins de serviços de saúde e educação.
Só porque o Fundo Constitucional repassa dinheiro para fins de despesas com saúde e educação, tem a União a prerrogativa de determinar ao Governador do DF, imperativamente, onde devam ser instalados postos de saúde ou hospitais no território do Distrito Federal? O Presidente da República pode ordenar ao Governador do DF que mantenha tantos professores em certas escolas da rede pública de ensino distrital, impedindo a respectiva relotação, concessão de licença-prêmio pelo mesmo motivo de transferência de dinheiro da União, ou exigir de volta os valores nessas hipóteses?
Se o Governador do DF nomear professor como seu assessor, em cargo comissionado vago no Gabinete da Governadoria, deve primeiramente consultar o Presidente da República, ou mesmo devolver parte proporcional de recursos federais, transferidos pelo Fundo Constitucional? Deve haver a restituição dos sobreditos valores repassados em caso de cessão? Compete ao Presidente da República demitir, por acumulação ilegal de cargos públicos distritais, professor ou médico, servidores do Distrito Federal, apenas por causa da transferência de recursos do Fundo?
Para que se abonasse a procedência da equivocada tese da Controladoria-Geral da União, no sentido da devolução de dinheiro repassado pelo Fundo Constitucional, ter-se-ia que admitir, por absurdo, que seria necessária a restituição nesses casos, negando-se vigência à autonomia administrativa e constitucional do Distrito Federal.
A ilustração da situação sob a ótica dos servidores das Secretarias de Educação e de Saúde do DF, mantidas em parte pelo Fundo Constitucional, bem revela o total descabimento da tese do órgão federal, que não procede, data maxima venia.
5. Conclusão
Conclui-se, pois, que o Distrito Federal não está obrigado a ressarcir valores repassados pelo Fundo Constitucional na hipótese de cessão de pessoal da segurança pública, saúde ou educação para ter exercício em outros órgãos administrativos distritais ou para investidura em cargo em comissão.
Notas
01 Art. 42 Os membros das Polícias Militares e Corpos de Bombeiros Militares, instituições organizadas com base na hierarquia e disciplina, são militares dos Estados, do Distrito Federal e dos Territórios.
02 Art. 144..............................................................................................
§ 6º - As polícias militares e corpos de bombeiros militares, forças auxiliares e reserva do Exército, subordinam-se, juntamente com as polícias civis, aos Governadores dos Estados, do Distrito Federal e dos Territórios.
03Art. 21. Compete à União:
XIV - organizar e manter a polícia civil, a polícia militar e o corpo de bombeiros militar do Distrito Federal, bem como prestar assistência financeira ao Distrito Federal para a execução de serviços públicos, por meio de fundo próprio
04 Art. 62. Aos funcionários do Serviço de Polícia Federal e do Serviço Policial Metropolitano aplicam-se as disposições da legislação relativa ao funcionalismo civil da União no que não colidirem com as desta Lei.
05 Art. 93. O servidor poderá ser cedido para ter exercício em outro órgão ou entidade dos Poderes da União, dos Estados, ou do Distrito Federal e dos Municípios, nas seguintes hipóteses: (Redação dada pela Lei nº 8.270, de 17.12.91) (Regulamento) (Vide Decreto nº 4.493, de 3.12.2002) (Regulamento)
I - para exercício de cargo em comissão ou função de confiança; (Redação dada pela Lei nº 8.270, de 17.12.91)
II - em casos previstos em leis específicas.(Redação dada pela Lei nº 8.270, de 17.12.91)
§ 1º Na hipótese do inciso I, sendo a cessão para órgãos ou entidades dos Estados, do Distrito Federal ou dos Municípios, o ônus da remuneração será do órgão ou entidade cessionária, mantido o ônus para o cedente nos demais casos. (Redação dada pela Lei nº 8.270, de 17.12.91)
06 DA SILVA, José Afonso. Curso de Direito Constitucional Positivo. 22 ed., São Paulo: Malheiros Editores, 2003, p. 670.
07 Art. 5º - A partir de 01 de janeiro de 1992, aos servidores da Administração Direta, Autárquica e Fundacional do Distrito Federal aplicar-se-ão, no que couber, as disposições da Lei Federal nº 8.112, de 11 de dezembro de 1990 e legislação complementar, até a aprovação do Regime Jurídico Único dos Servidores Públicos do Distrito Federal pela Câmara Legislativa.